«O Império Britânico não esteve, e os Estados Unidos não estão preocupados apenas com o equilíbrio de poder num canto particular do mundo, mas também [se preocupam] com a evolução daquilo a que chamamos hoje “ordem mundial”.»
Walter Russell Mead, Special Providence
«A política de hoje é a política da restauração, a política da promessa de ressuscitar ordens perdidas.»
Patrick Porter, The False Promise of Liberal Order
A transição de poder em curso
Joe Biden parece ter chegado à Casa Branca com uma certeza: o sistema internacional está em fase de transição de poder e os Estados Unidos, se não quiserem deixar de ter peso no sistema internacional, não só têm de aceitar este facto, como posicionar-se relativamente a ele.
A velhinha teoria realista das Relações Internacionais - bem como as suas novas interpretações - encontra um conjunto de regularidades em todos estes momentos de «disjuntura entre o sistema internacional existente e os ganhos potenciais que Estados particulares teriam em caso de mudança de sistema»1. As transições de poder são estados de crise que envolvem não só o reconhecimento do declínio e ascensão de determinados Estados, como a reforma das regras que compõem a ordem internacional, tendo em conta os interesses dos Estados (de statu quo ou revisionistas) que conseguem alcançar uma posição de primazia em relação aos restantes2. E «embora a resolução das crises por ajustamento pacífico do desequilíbrio sistémico seja possível»3, o principal mecanismo de mudança, através da história, tem sido a guerra, ou o que devemos chamar a «guerra hegemónica» (i. e., uma guerra que inclui todas as potências do sistema internacional e que determina que um Estado ou alguns Estados serão dominantes e governarão o sistema daí em diante)4.
Teoricamente, a guerra começa de uma de duas maneiras: ou o(s) Estado(s) que deté[ê]m o statu quo ataca(m) preventivamente o(s) Estado(s) em ascensão para que estes não cheguem a ter capacidades suficientes para se tornarem grandes potências; ou os Estados revisionistas - especialmente aqueles, como a China, que ganharam poder à custa do seu próprio desenvolvimento económico5 - desencadeiam a guerra contra as potências conservadoras para transformar o sistema e a ordem internacionais num modelo mais conveniente para si. Há características dos Estados em disputa que podem atenuar o revisionismo - o mesmo tipo de regime, o mesmo tipo de modelo económico -, mas a guerra é a regra e não a exceção6.
Não é ou não era. A verdade é que, com o advento do armamento nuclear, a guerra total7 deixou de ser alternativa8. Assim, as guerras hegemónicas foram substituídas por longas «guerras de desgaste», as quais poderão ter, pelo menos do ponto de vista teórico, um de dois desfechos: i) ou os Estados em disputa acabam por se entender e criar uma ordem internacional com base num mínimo denominador comum, o que é mais provável acontecer em sistemas em que há mais de dois polos de poder9; ii) ou um dos contendores acaba por colapsar - o cenário mais consentâneo com um sistema bipolar em que médias potências e pequenos Estados se alinham com uma das grandes potências10.
Neste contexto, este artigo considera que a Guerra Fria foi a primeira guerra da transição de poder disputada nestes moldes. Em vez de uma guerra total, impossível devido ao facto de as duas grandes potências terem armamento nuclear, assistimos a quarenta anos de uma «guerra de desgaste», em que cada lado procurou pacientemente derrotar o outro através de um número significativo de instrumentos políticos, de ameaça do uso da força - ou do uso da força por procuração -, diplomáticos, económicos, culturais e ideológicos. A principal razão por que esta Guerra Fria poderá ser considerada uma guerra de transição de poder, é que nenhuma das potências teve alguma vez vontade política de criar um entendimento com a outra; pelo contrário, durante décadas, usaram todas as armas possíveis para que o outro não prevalecesse. Nunca nenhuma aceitou o statu quo de um sistema internacional de reconhecimento de legitimidade relativamente à outra11.
A segunda guerra de transição de poder desta nova natureza foi lançada por Donald Trump contra a China. O anterior Presidente dos Estados Unidos reconheceu implicitamente que Pequim é o inimigo central de Washington, não porque tenha havido confrontos diretos entre os dois Estados, mas «devido ao reconhecimento de que há uma estratégia global revisionista e uma estratégia regional hegemónica da parte da China»12. Consequentemente, pôs no centro da política externa norte-americana o desacoplamento das economias americana e chinesa. O que poderia ser só uma estratégia de autonomização da China desenvolveu-se numa multiplicação dos elementos de contenção de Washington a Pequim. Ao início, a Administração Trump parecia querer manter o equilíbrio entre o retraimento estratégico iniciado por Barack Obama13 e o início de uma guerra de transição de poder contra Pequim com elementos militares, diplomáticos, económicos e tecnológicos. Mas este equilíbrio é tão difícil de obter, que a Administração Biden, ignorando os conselhos dos «restauracionistas»14, chegou à Presidência trazendo consigo um novo papel de liderança para os Estados Unidos, deixando cair a estratégia que era considerada mais sensata, e substituindo-a por uma estratégia de «dissuasão»15.
Este artigo argumenta que o Presidente Joe Biden segue as pisadas do seu antecessor, mas fá-lo com duas diferenças fundamentais. A primeira é que é mais explícito. Se nos discursos iniciais de política externa houve uma certa hesitação sobre a hierarquia de inimizades norte-americanas, na «Estratégia Interina de Segurança Nacional», publicada no dia 3 de março deste ano, o novo Presidente declara que «a China, em particular, tornou-se muito mais assertiva nos últimos anos»16 (leia-se, desde o início da liderança de Xi Jinping). E que é «o único competidor potencialmente capaz de combinar o seu poder económico, diplomático, militar e tecnológico para construir um desafio sustentado a um sistema internacional estável e aberto»17. A China (a par com a Rússia) «tem investido fortemente em esforços para conter as vantagens norte-americanas e para evitar que defendamos os nossos interesses e os dos nossos aliados por todo o mundo»18. Por outras palavras, há um reconhecimento implícito que Pequim está a desafiar Washington quer na sua liderança internacional, quer no modelo de ordem internacional que Washington quer (continuar) a construir.
A segunda diferença é que o novo Presidente pretende levar a cabo a sua «guerra hegemónica» de uma forma marcadamente diferente do seu antecessor: imprimindo-lhe o cunho liberal internacionalista que tinha desaparecido com Donald Trump.
Biden escolhe as suas referências da grande panóplia de fases (e ambiguidades) pelas quais o liberalismo internacionalista norte-americano, que normalmente designamos por «wilsonianismo», passou. Resgata um conjunto de valores enunciados pelo próprio Woodrow Wilson - dos quais o mais importante é a divisão do mundo entre democracias e autocracias; reencaminha os Estados Unidos para as organizações internacionais constituídas por Franklin Delano Roosevelt, mas numa perspetiva reformista como aconteceu com um conjunto de antecessores, especialmente, por razões diferentes, Richard Nixon e Bill Clinton; reformula o papel dos Estados Unidos no sistema internacional à maneira de Harry Truman, declarando Washington como o «líder do mundo livre», que está disposto a criar uma nova ordem a um tempo defensiva da forma de vida das democracias e ofensiva relativamente ao comportamento das autocracias19, e rejeita a ordem expansionista dos seus antecessores dos anos 199020. Biden parece ter um entendimento do mundo em que a «missão» internacional mais importante dos Estados Unidos é «dissuadir»21 a China de se transformar numa grande potência, ao mesmo tempo que fortalece o mundo livre de forma a que este seja hegemónico outra vez. Em suma, Biden é um cold warrior wilsoniano moderado, que pretende reestabelecer a liderança americana em termos favoráveis à continuação (mais ou menos extensiva) de uma ordem liberal, mais inclusiva geograficamente, por razões de crença e necessidade, com instrumentos do passado adaptados aos desafios atuais22.
No que se segue, estudamos as origens teóricas da ordem Biden e a forma como o novo Presidente está a pôr a herança centenária em prática. Na primeira parte, faz-se um enquadramento teórico-histórico. Procura-se analisar as diferentes interpretações do legado de Woodrow Wilson (o presidente norte-americano que tentou criar a primeira ordem liberal norte-americana) para apurarmos de que forma Biden se encaixa nesta tradição.
A segunda parte centra-se na ordem internacional liberal que Joe Biden está a construir - tendo em conta o cruzamento entre a distribuição de poder e a mundivisão do Presidente norte-americano. Para fazer esta reconstrução, usam-se os principais documentos e discursos publicados ou proferidos na campanha eleitoral e na curta presidência.
Também se observa a política externa americana para a Europa e para a Ásia, consideradas neste artigo uma espécie de duas faces da mesma moeda. Joe Biden elege estes dois espaços geográficos como «áreas de interesse vital norte-americano»23. Como veremos em detalhe, há uma dupla vertente que se aplica aos dois casos: procura-se unir as democracias em torno dos Estados Unidos como que para defender o mundo livre e conter a China. A forma como se organizam politicamente as relações com as duas regiões varia, bem como a resposta que os aliados e parceiros estão a dar à mudança na política externa norte-americana.
Finalmente, conclui-se que a estratégia Biden é profundamente arriscada, mas talvez seja a única que poderia ser construída tendo em conta os objetivos fundamentais do Presidente: i) voltar a unir a América polarizada - em torno de um inimigo comum;ii) recuperar aliados tradicionais, criando novas relações produtivas, fundamentais para travar a longa guerra de transição de poder; iii) e «dissuadir» a China das suas intenções de se tornar uma grande potência global.
As múltiplas interpretações do liberalismo internacionalista e os seus críticos
No seu livro mais recente, John Ikenberry faz a seguinte observação:
«A visão de Wilson da ordem pós-guerra é muitas vezes vista como ousada e original - os primeiros sinais da imaginação liberal internacionalista. Mas, na verdade, [Wilson] estava a dar voz a ideias que estavam a ser debatidas há décadas na Europa e nas Américas. A sua contribuição foi menos intelectual que política. Foi a de cristalizar o liberalismo internacionalista como projeto político.»24
Seja através de conversas e debates entre filósofos e decisores britânicos, europeus e norte-americanos, seja através de ativistas políticos dos dois lados do Atlântico, seja mesmo pela política externa britânica que construiu a primeira ordem internacional liberal - enquadrada numa ordem internacional universalista mais vasta que permitia às grandes potências exercerem a sua política externa como bem entendessem se isso não significasse imiscuir-se nos interesses das restantes grandes potências25 -, o liberalismo internacionalista foi, desde meados do século XIX, uma tradição filosófica com raízes firmes26, uma ideologia do progresso aplicada a algumas sociedades27, um projeto político28, um guia de política externa para Estados democráticos, especialmente para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos29.
Este artigo começa na transformação wilsoniana relacionada com o liberalismo internacionalista. Não o faz por falta de reconhecimento da importância dos «antecessores» ideológicos e políticos de Wilson, fá-lo porque o liberalismo internacionalista americano tem especificidades que são aquelas que estão relacionadas com o tema deste artigo.
Desde Wilson que os Estados Unidos - com pouquíssimas exceções - imprimiram na sua política externa este traço distintivo com sucessivas transformações até aos dias de hoje30. Diz Tony Smith, historiador do legado deste presidente, que uma das mais importantes consequências da Primeira Guerra Mundial foi «o nascimento do liberalismo internacionalista como conceito de importância dinâmica graças, em grande medida, à herança de Woodrow Wilson, presidente dos Estados Unidos entre 1913 e 1921»31.
No entanto, como todos os projetos políticos subsidiários do iluminismo e do liberalismo, a herança de Wilson é ambígua. Há quem destaque a sua herança institucionalista e há quem prefira olhar para ela do ponto de vista teleológico. Há quem lhe encontre as raízes de uma ordem internacional benigna e quem a veja como uma forma de imperialismo coercivo. Há quem encontre no liberalismo internacionalista a razão do sucesso do Ocidente e quem acredite que foi essa mesma a fonte do declínio norte-americano. Há quem considere o wilsonianismo um projeto de matriz civilizacional e racista. Ainda há quem acredite que o projeto internacionalista liberal deve ser fortemente defensivo e quem diga que, pela sua vertente universalista, só pode ser um projeto ofensivo expansionista. O facto é que praticamente todas estas apreciações têm um fundo de verdade, ainda quem em graus desiguais. É que a apreciação depende muito da geografia e da mundivisão de quem a analisa e da severidade com que julga os erros e os triunfos. De qualquer forma, este projeto político está inscrito no ADN da política externa norte-americana, o que explica, em grande parte, a agenda internacional de Joe Biden32.
O que fazemos de seguida é uma breve incursão pelo wilsonianismo americano33, tendo em conta o sistema internacional vigente em cada período. Também olhamos para as diversas heranças que a teoria e a prática deixaram, heranças essas que são modelos possíveis para a Administração Biden, que quer reavivar esta tradição política, doméstica e internacionalmente.
Wilson e as suas ambiguidades
Woodrow Wilson transforma um conjunto de ideias em políticas efetivas. Mas, talvez ainda mais importante, o 28.º Presidente dos Estados Unidos transformou, de uma forma definitiva, a política externa norte-americana. A Presidência de Wilson foi excecional por dois motivos: i) porque os Estados Unidos estavam à procura do seu papel como ator internacional - os debates decorriam há cerca de duas décadas34 -, e ii) devido à ocorrência da Grande Guerra, que levou os Estados Unidos a envolverem-se no conflito do continente europeu. Por outras palavras, Woodrow Wilson beneficiou da possibilidade de testar as suas políticas, uma vez que foi forçado a participar na guerra europeia35, o que lhe concedeu uma oportunidade única para negociar a paz.
Quando a Primeira Guerra Mundial terminou, os Estados Unidos eram a única potência vencedora não devastada pela destruição do conflito e cuja economia permanecia forte e saudável. Ora, essas condições deram a Washington a possibilidade de levar a cabo uma experiência política inédita: transformar a ordem europeia que tinha por base o equilíbrio de poder36 numa ordem institucional que tinha no seu centro a ideia de segurança coletiva37.
Wilson estava convencido que a ordem internacional construída pelos Estados europeus estava obsoleta e era geradora de conflitos. A única forma de transformar esta realidade era transpor os princípios da sociedade norte-americana para a realidade internacional38. Não só porque considerava que estes princípios estavam envoltos numa superioridade moral a que hoje chamamos excecionalismo39 - o que frequentemente acontece com potências emergentes -, mas também por razões de ordem prática.
As instituições americanas funcionavam independentemente da diversidade da população, porque todos estavam unidos pela ideia de democracia; essas mesmas instituições tinham como característica as leis do Estado de direito e a transparência, o que facilitava as relações entre todos; a prosperidade americana devia-se à economia de mercado e à liberdade de circulação de bens e produtos. Do ponto de vista de Wilson, a sociedade norte-americana era pacífica, industrializada e moderna. E a «modernidade», uma palavra muito cara ao Presidente, precisava de regras progressistas capazes de transpor este conjunto alargado de conceitos com base nas condições do presente, mas também com o olhar no futuro. Wilson, como muitos liberais, via o progresso como uma linha contínua de desenvolvimento, e o seu tempo como um momento crucial para a o avanço da democracia e do liberalismo.
No entanto, era preciso resolver um problema. Se as instituições norte-americanas podiam ser exportáveis para o sistema internacional, era preciso sintetizar conceitos que pareciam antagónicos. Wilson encontrou a resposta em Giuseppe Mazzini, um pensador e político italiano, que visitou no caminho para Versalhes, que vinha promovendo três ideias interligadas: i) o nacionalismo democrático (cada indivíduo tinha o direito de eleger os seus representantes onde se sentisse confortável com a língua, a religião e os costumes); ii) as nações democráticas deviam combinar-se numa espécie de sociedade internacional; iii) que tivesse por base um passado histórico partilhado, valores comuns e perspetivas semelhantes do que deveria ser o futuro. Como explica Mark Mazower, Mazzini quebrou o paradoxo que opunha o nacionalismo ao internacionalismo40 através do desenvolvimento da ideia de que Estados que pensassem da mesma forma tinham capacidade de criar uma comunidade internacional preocupada com o bem comum e capaz de produzir segurança coletiva. Mazzini era visto como um proscrito, estando Wilson em muito melhores condições de pôr estas ideias em prática.
Usando as instituições americanas como guião e aplicando a leitura dos Princípios da Paz Perpétua de Kant ao seu tempo, Wilson declarou guerra à Alemanha41 para proteger a democracia e a autodeterminação dos povos, provando, na prática, que as democracias não fazem guerra entre si42, que lutam lado a lado contra Estados autocráticos, e que as autocracias são os rivais naturais das democracias, não só porque são atores internacionais opacos, agressivos e belicosos, mas também porque punham em risco a existência dos Estados liberais43, literal e politicamente44. Assim, o projeto liberal internacionalista de Woodrow Wilson ficou consagrado nos seus «14 Pontos» enunciados em Versalhes45, dos quais constavam: o fim da diplomacia secreta; a liberdade de navegação; a redução dos armamentos; a criação da Sociedade das Nações - como coração da segurança coletiva.
Finalmente, importa dizer que, na conceção wilsoniana, os Estados Unidos tinham um papel central na nova organização internacional46. Ainda que todos os Estados fossem iguais perante a lei, Washington era uma espécie de líder natural desta estrutura. A legitimidade norte-americana emanava essencialmente da sua história democrático-liberal e da sua capacidade de ter construído um conjunto de instituições internas bem-sucedidas, bem como uma sociedade autoconsciente dos seus deveres e direitos.
Como sabemos, a Liga das Nações foi um duplo fracasso. Por um lado, porque o Senado norte-americano vetou a pertença do país à instituição, amputando-a, imediatamente, da liderança que requeria. Não só pela tradição isolacionista47, mas pela irascibilidade do próprio Presidente que se recusou a fazer compromissos com a Câmara Alta. Como referiu Charles Kupchan, «o Senado acabou por rejeitar a participação dos Estados Unidos na Sociedade das Nações - a criação de Wilson para a construção de uma ordem pós-Guerra. Os seus excessos idealistas abriram caminho para outra reação isolacionista e recolhimento estratégico»48.
A expressão «excessos idealistas» pode não ser a mais adequada. Como foi referido acima, Wilson não viveu para ver a sua herança e, mais importante, nunca esclareceu um conjunto de ambiguidades, que se tornaram imediatamente aparentes. A mais importante tem a ver com o tema de Kupchan. É certo que Wilson era um «idealista», no termo popularizado por E. H. Caar49, que acreditava que os Estados Unidos tinham uma missão e um conjunto de obrigações para com o resto do mundo50. Como foi referido acima, a sua agenda detinha uma série de pressupostos que ainda não tinham sido testados: a ideia de que os Estados, se autodeterminados51, escolheriam a democracia como regime e a economia de mercado como modelo, e que a modernização industrial e tecnológica levaria as nações a desenvolverem-se no sentido da liberalização. Wilson acreditava no «trabalho orgânico e gradual do progresso social»52, vulgo, num caminho inevitável rumo à democracia, um «estádio de desenvolvimento» que as nações atingiam num processo paulatino, mas de destino prescrito. O seu projeto liberal estava enquadrado numa espécie de modernidade teleológica que rapidamente foi falsificada pela realidade, mas que criou o precedente perigoso que teria consequências mais tarde.
Mas se esta ideia se tornou popular, há um conjunto de autores que a contestam. É certo que Wilson considerava, quase religiosamente, como muitos dos seus antecessores, que os Estados Unidos tinham uma missão53. No entanto, propôs que ela se materializasse por via institucional, tentando preservar o conceito de soberania, criando um espaço com incentivos e punições para que as «nações» pudessem ter um enquadramento de desenvolvimento rumo à paz e à democracia54.
Em segundo lugar, Wilson concebeu uma ordem assente na oposição entre democracias e autocracias. Sendo o sistema multilateral e não tendo a ordem resultado, houve um questionamento sério se Wilson falava de uma ordem defensiva (as democracias organizadas numa paz separada) ou ofensiva (as democracias a viverem numa paz separada, mas com a intenção de desafiar as autocracias)55. Tendo em conta que Joe Biden vai recuperar esta distinção como uma das traves mestras da sua política, este debate terá de ser feito nesta segunda década do século XXI.
Wilson corrigido
A resposta à primeira ambiguidade veio, de alguma forma, de Franklin Delano Roosevelt, o qual serviu Wilson na Marinha e era seu admirador. E como dizem diversos autores, o 32.º Presidente dos Estados Unidos começou a planear o pós-Segunda Guerra Mundial - muito antes desta terminar - com um grande objetivo: tornar o projeto wilsoniano viável e aceite pela opinião pública norte-americana. Por outras palavras, Roosevelt quis corrigir os erros de Wilson56.
Mas para isso era preciso assegurar, pelo menos, três condições: uma atualização de conceitos legítimos e aceitáveis - os anos 1930 e a Segunda Guerra Mundial tinham deitado por terra algumas convicções wilsonianas -, tornar o liberalismo internacionalista um projeto pragmático, que refletisse a distribuição de poder no sistema internacional57, e assegurar que os Estados Unidos passavam a ser, sem ambiguidades, um produtor de ordem internacional.
Como diz Liah Greenfeld, depois da Segunda Guerra Mundial o «nacionalismo» caiu em desgraça:
«o nacionalismo como tal (não uma forma particular de nacionalismo) ficou associado a instintos primitivos brutais e sanguinários, definidos como opostos à direção progressista da história. Durante 40 anos, o nacionalismo foi banido do discurso […] e considerado completamente irrelevante para a vida das nações»58.
Este «desaparecimento» súbito do nacionalismo - elemento que era central na síntese de Wilson - obrigou a que houvesse uma substituição conceptual na forma de ligar o Estado (democrático) à ordem internacional. Como explica Reinhold Niebour num texto de 1944, o poder norte-americano substitui o nacionalismo pelo individualismo e o internacionalismo pelo universalismo59 (na lógica que todos os seres humanos, pela simples razão de serem seres humanos, têm os mesmos direitos liberais). Ao contrário da era Wilson, estes conceitos são muito mais carregados ideologicamente. Wilson queria um mundo onde a democracia fosse segura; Roosevelt queria um mundo onde o liberalismo - a liberdade - não pudesse ser beliscada. Ironicamente, do ponto de vista conceptual, Franklin Delano Roosevelt é mais idealista que Wilson, embora fosse menos rígido nos conceitos morais60. Em tudo o resto, é mais pragmático.
Roosevelt procurou, pois, criar as «fundações geopolíticas da ordem liberal»61. Percebeu que a ideia de segurança coletiva requeria a partilha de poder num concerto de grandes potências. No entanto, esse concerto, que se veio a chamar Conselho de Segurança das Nações Unidas, estava envolvido por dois novos elementos: uma organização internacional verdadeiramente universalista (isto é, à qual pertenciam praticamente todos os Estados do mundo) e um conjunto de agências especiais que refletiam a nova fórmula dos «direitos humanos», ausente em Wilson. Além do mais, Franklin D. Roosevelt e os seus parceiros - os britânicos, por razões de afinidades e interesse geopolítico, eram os mais entusiastas - construíram um conjunto de instituições de regulação do comércio internacional, acordadas em Bretton Wooods, que não viriam a ter uma duração tão longa na sua conceção inicial, mas que se mantêm até hoje, com as devidas alterações ditadas pela ordem económica internacional. E que, como veremos na última parte, poderão ser alvo de novas alterações num futuro próximo. Como fica claro, aqui refletem-se as mudanças conceptuais entre Wilson e Roosevelt.
O 32.º Presidente dos Estados Unidos estava preocupado com dois outros elementos: o primeiro era a inclusão da União Soviética. Igualmente vencedora da Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas precisava da sua presença para garantir adesão generalizada e legitimidade. Roosevelt previa um sistema internacional multipolar, o que exigia uma forma de poder partilhada, com um mínimo denominador comum aceite pelas grandes potências e um pendor liberal que as grandes potências não democráticas pudessem ignorar. Este é o princípio das Nações Unidas e das organizações económicas internacionais. Ultrapassada essa barreira - a urss aceitou pertencer ao Conselho de Segurança -, era preciso garantir que a liderança desta organização pertencia, ainda que informalmente, aos Estados Unidos. Essa garantia era dada pela própria estrutura (liberal) das organizações.
É neste contexto que o conceito de «hegemonia» começa a ser considerado. Como explica G. John Ikenberry no seu livro Liberal Leviathan,
«esta atualização da versão wilsoniana de ordem liberal deu origem a um conjunto de processos mais complexos e abrangentes. O resultado foi uma ordem mais centralizada no Ocidente, com múltiplos níveis e profundamente institucionalizada, mais do que se antecipava originalmente. O que levou os Estados Unidos a uma gestão direta dos sistemas político e económico. A fraqueza da Europa, o pairar da ameaça soviética e os requerimentos práticos desta tarefa lançaram os Estados Unidos na construção da ordem. A atualização da versão wilsoniana da ordem liberal transformou-se numa verdadeira ordem liberal hegemónica.»62
Os Estados Unidos passaram a ser, conscientemente, produtores de ordem internacional.
Wilson agrilhoado
A ordem rooseveltiana foi pensada e negociada ainda decorria a Segunda Guerra Mundial. No entanto, tudo mudou - e tudo ficou na mesma - com o início da Guerra Fria. Tudo ficou na mesma, porque Harry Truman, então Presidente dos Estados Unidos, não transformou a ordem Roosevelt. Manteve-a intacta, apesar de ter consciência de que o Conselho de Segurança ficaria paralisado daí para a frente. Mas entendeu que o cariz universal da Organização das Nações Unidas, o seu pendor liberal e as suas agências especiais poderiam ser úteis no novo papel de distribuidor de bens comuns que os Estados Unidos entendiam que deviam ter. Um mundo com «ordem» significava, entre outros elementos já descritos, a providência de paz, um sistema de comércio livre, a segurança suficiente para que a riqueza e a democracia pudessem prosperar.
Mas tudo mudou, porque o sistema internacional se tornou bipolar e o 33.º Presidente foi obrigado a adaptar-se a esta realidade. Truman construiu uma ordem democrática separada, em sistema de complementaridade com a ordem universal. No centro deste acrescento estavam quatro conceitos: i) o que emanou da Doutrina Truman, que ditou que os Estados Unidos passariam, daí em diante, a ser os «líderes dos povos livres»; ii) mas que para levar a sua missão hegemónica em frente era crucial criar alianças permanentes entre Estados democráticos; iii) essas alianças permanentes constituiriam o centro de um novo conceito de segurança coletiva; iv) porque a União Soviética constituía uma ameaça existencial quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista ideológico para Washington e seus aliados.
No centro desta aliança de democracias estava a Aliança Atlântica,
«um clube de democracias capitalistas (pelo menos se tivermos em conta os seus 12 membros fundadores) que reproduzia com maior exatidão o tipo ideal de organização multilateral que Wilson gostaria de ter visto […] ainda que a sua missão fosse limitada geograficamente e em termos de substância»63.
A NATO, além de ter como principal missão conter a União Soviética (e vigiar a Alemanha), também tinha uma dimensão interna fundamental que se traduzia no reforço dos valores democráticos e na primeira - e até agora única - verdadeira experiência de segurança coletiva.
As alianças permanentes, incluindo em tempo de paz, não eram exatamente uma novidade - foi um conceito criado pela Grã-Bretanha no seu período hegemónico64, mas a sua fórmula de segurança coletiva (o artigo v, que obriga todos os membros a entrarem em guerra se algum for agredido), e a comunalidade do tipo de regime são uma invenção wilsoniana que Truman levou à prática. E mesmo que a Aliança Atlântica tenha passado por muitos altos e baixos ela é, ainda hoje, considerada um dos maiores triunfos do liberalismo americano aplicado à política externa65.
O aspeto mais problemático da ordem americana no sistema bipolar é precisamente a Doutrina Truman. Em teoria, e segundo o próprio Truman, tratar-se-ia de uma ordem internacional eminentemente defensiva66. Aliás, seria isso que a estratégia de contenção pedia. Mas dois obstáculos transformaram o propósito inicial: a ordem valorativa estava contida, por intransigência soviética, e, muito rapidamente, o objetivo central deixou de ser guiar outros Estados no caminho da democracia e passou a ser «a luta contra o comunismo»67. que trouxe consigo todo um conjunto de cedências à causa liberal norte-americana.
Apesar de serem «o líder do mundo livre», os Estados Unidos foram obrigados a uma nova assertividade na sua força militar, usando-a para «guerras de credibilidade simbólicas»68, viram-se na contingência de apoiar ditaduras (anticomunistas), depor regimes inimigos, encorajar revoltas de insurgentes contra regimes comunistas, criando grande desconforto entre diversos países e acusações de «hipocrisia política» e «subversão do liberalismo para fins liberais»69.
Mas como diz Charles Kupchan foi preciso chegar à Segunda Guerra Mundial para que «Franklin Roosevelt e os seus sucessores modelassem as suas políticas com o liberalismo internacionalista - a marca do envolvimento americano no mundo que se tornou sustentável porque tinha na sua base fundações realistas e idealistas»70. No entanto, a ordem vigente - e eficaz - que perdurou durante a Guerra Fria, ia perder algumas das suas características, precisamente devido ao triunfalismo da vitória norte-americana.
Wilson teleológico
O expansionismo wilsoniano que teve início nos anos 1990 está muito ligado, na nossa imaginação coletiva, à invasão do Iraque em 2003 e à influência neoconservadora na Administração de George W. Bush71. Percebe-se porquê: este ato de guerra por parte dos Estados Unidos corresponde ao momento mais alto da conjugação de três fatores: i) o triunfalismo resultante da vitória na Guerra Fria72; ii) a existência, desde o Império Britânico, de uma narrativa teleológica partilhada por um conjunto significativo de decisores no mundo anglo-americano; e iii) as condições sistémicas para transformar essa narrativa em política - depois do colapso da União Soviética, os Estados Unidos tornaram-se a única grande potência do sistema internacional. Pela primeira vez desde o Império Romano, apenas um Estado tinha poder suficiente para ditar as regras da política internacional.
Por outras palavras, o triunfo na Guerra Fria, convenceu os Estados Unidos que estavam do lado certo da história. Assim, tornava-se lógica a aplicação daquilo que Walter Russell Mead chama a «narrativa Whig», da qual a última encarnação foi o «fim da História» de Francis Fukuyama. Esta narrativa consiste numa expectativa permanente do «iminente triunfo da justiça e da paz»73 pela ação das potências liberais.
Este sentimento de húbris começou nas páginas das revistas especializadas, mas rapidamente tomou conta dos decisores políticos em Washington. Afinal, os Estados Unidos tinham derrubado as ideologias rivais - primeiro o fascismo, depois o comunismo -, o que significava que a democracia liberal deixava de ter qualquer rival ideológico. Concretizava-se o sonho wilsoniano: Washington tinha chegado finalmente a um sistema internacional onde se gerou um consenso (entre os vencedores da guerra) que o liberalismo e a economia de mercado eram as únicas formas legítimas de governo doméstico e internacional74. Ainda que este movimento tenha começado timidamente75, rapidamente se tornou o centro da nova ordem americana. Porque, como lembrou Andrew Williams, para a elite americana,
«o que distingue um Estado liberal dos seus pares iliberais é que estes acreditam muito sinceramente na criação do mundo melhor e que são exemplo do que esse mundo melhor deve ser. […] Mesmo não estando imunes à procura e manutenção do poder, acreditam que o estão a fazer em nome do bem comum»76.
Essa legitimidade autoatribuída associada ao sentimento teleológico da narrativa bicentenária traduziu-se numa agenda transformadora e expansionista. Aquilo a que Tony Smith chama «neo-wilsonianismo», que critica duramente por ter corrompido o que, na sua opinião, eram os verdadeiros princípios wilsonianos, que tinham transformado os Estados Unidos numa potência benigna e quase um século depois contribuíram grandemente para o seu declínio relativo77.
Bill Clinton, assessorado por Anthony Lake, que terá sido o mentor desta nova estratégia, criou o conceito de «novo democrata», que não só se referia à «terceira via» económica e à importância da integração dos Estados não democráticos pela via económica (erro que se havia de pagar caro)78, mas também a uma nova política externa que faria uso do poder norte-americano para transformar o mundo. Clinton protagonizaria um «internacionalismo robusto» que se «traduzia em políticas que sublinhavam uma defesa forte e que estavam enraizadas em valores liberais, enfatizando a disseminação da democracia». Não apenas porque a unipolaridade constituía uma oportunidade única para transformar o mundo à imagem norte-americana, mas porque era um «tema que agradava a conservadores e liberais», solidificando um apoio bipartidário na política externa. Além disso, «também trazia o propósito definidor do papel da América no mundo pós-Guerra Fria»79.
Clinton abraçou sem hesitações a política open door como forma de acomodação pacífica da China e de outras potências e Estados fora da ordem liberal da Guerra Fria e começou a usar a força militar norte-americana para transformar aquilo que era visto pelos Estados Unidos como injustiças internacionais. Apoiado pela Europa, montou formidáveis operações de state-building em territórios onde a comunidade internacional travava guerras civis pela força. Alterou o direito internacional público, colocando o indivíduo no lugar do Estado, condicionando a soberania e legitimando um conjunto de operações de paz80. Ao mesmo tempo criou as condições necessárias para alargar organizações internacionais em tamanho e alcance para assegurar a disseminação dos valores americanos pelo mundo81. Clinton fez a síntese da interpretação institucional e defensiva, e da interpretação militarista e ofensiva ambas atribuídas a Woodrow Wilson.
As políticas de Clinton, seguidas pelos seus sucessores (que tiveram o seu apogeu em George W. Bush e que foram ainda seguidas por Barack Obama, ainda que de forma mais prudente), começaram a dar mostras da sua sobre-extensão e da sua falibilidade moral com a invasão do Iraque82. Mas foi tarde de mais. Poucos anos após a chegada das tropas americanas a Bagdade, com o objetivo de começar ali a transformação do Grande Médio Oriente, já a China dava mostras de ter capacidade e vontade de se tornar uma grande potência e a Rússia fazia a sua primeira guerra de delimitação de esfera de influência na Geórgia83. O mundo tinha mudado e, em parte, porque os Estados Unidos tinham gerido mal a sua supremacia.
Washington, no seu triunfalismo, tinha-se esquecido de duas questões cruciais: que o liberalismo expansionista ia ser visto, por amigos e adversários, como uma nova forma de imperialismo84; e que havia outra ideologia do progresso, o nacionalismo, que nunca tinha verdadeiramente desaparecido85 - apesar de ignorada pelos poderes instituídos desde os anos 1940 - e que se preparava para voltar em força sob as mais diversas formas (inclusivamente sob a forma nativista, conduzida por Donald Trump, dentro dos próprios Estados Unidos). E, com ele, veio também um intervalo na ordem liberal internacional que estava em franca decadência. Joe Biden vai tentar recuperá-la, juntando ideias dos seus vários predecessores e adequando-as aos anos 2020, em que a própria democracia americana não se encontra de boa saúde86, em que valores liberais internacionais há muito não eram tão questionados87 e em que o mundo se encontra num momento de profunda instabilidade e incerteza devido à transição de poder em curso.
Traves mestras: a ordem internacional proposta por Joe Biden
Referindo-se à ordem liberal e a Joe Biden como candidato presidencial, Patrick Porter pergunta:
«esta atitude [pró-liberal] reflete-se na generalidade do Partido Democrata, onde há pouco debate sobre ideias novas sobre política externa e onde a elegibilidade ensombra questões de substância. E se Biden estiver errado? E se a ordem em si própria tiver grandes problemas, que levaram a estas revoltas? E se a ordem política não puder ser desfeita por um voto?»88
Se Porter tem razão relativamente a parte importante da sua crítica - que se dirige à ordem liberal criada nos anos 1990 -, esquece-se de um conjunto de pressupostos que a Administração Biden parece ter tido em conta. Em primeiro lugar, que as grandes potências têm uma identidade89. E a identidade norte-americana está espelhada no liberalismo internacionalista, independentemente da modalidade e conceitos que cada presidente escolhe em cada conjuntura crítica como a que estamos a viver hoje. Este pressuposto tem dupla importância em Biden devido à iniciativa de Trump de abandonar o liberalismo internacionalista90 como a estratégia «por defeito»91 dos Estados Unidos e às mudanças substanciais do sistema internacional.
Em segundo lugar, e ao contrário do que sugeriam os primeiros comentários de analistas de política externa americana92, a estratégia de Biden não é uma continuação da de Obama. Ao contrário. A nova Administração admite que o mundo se transformou nos últimos anos e que não é possível voltar às propostas de 201693. Este pormenor pode parecer de somenos importância, mas não é; significa que Obama ainda via o sistema internacional no seu formato unipolar, ainda que admitisse que este poderia não se manter assim muito tempo e que Biden já o vê, sem ambiguidades, em transição.
Em terceiro lugar, a Administração reconhece - em continuidade com Donald Trump, que teve o mérito de securitizar a China - que Pequim é o principal rival dos Estados Unidos94. Não o dizendo abertamente, como convém do ponto de vista político, a Administração Biden reconhece que a potência revisionista é a China.
O que nos leva a um quarto elemento. A ordem liberal internacional teve um dos seus momentos mais nefastos nas últimas duas décadas, mas o liberalismo internacionalista tem servido bem os propósitos americanos no que concerne à organização do sistema internacional a seu favor. E o objetivo desta Administração é recorrer a diversas premissas dos modelos anteriores, cada um adequado ao sistema internacional vigente na sua época, e desenhar uma ordem internacional liberal competitiva que sirva um sistema internacional em transição.
A ordem Biden tem um duplo objetivo: tentar impedir que a China se torne uma grande potência global e simultaneamente criar uma ordem liberal separada. Os objetivos concorrem para o mesmo fim, mas caso Pequim se mantenha em ascensão a ordem democrática é um bem em si mesma. Devido à herança de Donald Trump e devido à constatação de que o sistema internacional está em mudança, a nova Administração - ao contrário do que é habitual - começou a sua política externa pelas fundações: expondo de que forma os Estados Unidos pretendem levar a cabo a sua liderança internacional.
A dimensão cooperativa da ordem Biden
Essa liderança tem duas dimensões: uma cooperativa, que os Estados Unidos usam para voltarem a ser produtores de ordem e distribuidores de bens comuns; e uma competitiva, que usam para tentar impedir a emergência chinesa, coadjuvada por outras autocracias.
A ordem cooperativa consta na liderança da tentativa de resolução de um conjunto de problemas transnacionais à maneira rooseveltiana, isto é, ou através das organizações ou dos regimes internacionais já existentes. Veja-se, por exemplo, o regresso dos Estados Unidos à Organização Mundial da Saúde e ao Acordo de Paris. Outra forma encontrada pela Administração é a criação de iniciativas congregadoras dos Estados mais importantes do sistema internacional. Veja-se a Cimeira do Clima que Biden organizou no passado mês de abril, independentemente das fortes tensões por que estava a passar com a Rússia de Putin. Ambas as fórmulas têm um alcance universalista, tal como projetado por Roosevelt.
Há ainda uma terceira forma, também inspirada em Roosevelt e no conceito de hegemonia benigna discutido acima. Mas esta é mais surpreendente: trata-se da tentativa de voltar à distribuição de bens comuns internacionais, considerado pelos especialistas uma das mais marcadas características dos Estados Unidos enquanto «hegemonia» internacional95. Aqui enquadra-se o recente anúncio que Biden apoia o levantamento temporário das patentes das vacinas da covid-1996. Ainda que este processo tenha tido origem na tragédia indiana - e de os Estados Unidos precisarem da Índia como parceiro privilegiado -, é uma decisão que não deixa de estar relacionada com o desejo norte-americano de voltar a ter um papel central no sistema internacional97.
De acordo com a Administração, este tipo de cooperação é o mais indicado para resolver questões relacionadas com a pandemia global, crises económicas internacionais, crises de justiça racial, emergências climáticas98, migrações em massa, disrupções tecnológicas e terrorismo99. Esta vertente, que Biden tem acentuado significativamente, serve também para reunir o Partido Democrata em torno de causas comuns. A ala mais progressista do partido, que tende a ser mais isolacionista100, valoriza questões como as alterações climáticas e a prevalência do racismo101. Esta síntese era necessária não só para o relançamento norte-americano no plano externo, como para o apaziguamento da ala mais à esquerda do Partido Democrata.
A dimensão competitiva da ordem Biden
A dimensão competitiva é mais complexa. Por um lado, Joe Biden herdou uma América profundamente polarizada102 e um Partido Democrata fraturado. Por outro lado, esta Administração encontrou um sistema internacional em transição de poder, no qual os Estados Unidos veem a sua posição internacional efetivamente ameaçada e os seus aliados centrais alienados pelos quatro anos de governação Trump. A síntese encontrada pela Administração Biden para tentar unir todas estas partes desavindas foi a ameaça nacional e internacional posta pela China103.
Donald Trump foi bem-sucedido na securitização de Pequim, ajudado pela má gestão que o regime de Xi Jinping fez da pandemia. O número de norte-americanos que passou a ver a China como a maior ameaça dos Estados Unidos cresceu 22% no último ano104. Números semelhantes espalham o sentimento das populações noutros países do mundo. Por um lado, Pequim serve como «inimigo comum», uma estratégia clássica de união de Estados e de populações polarizadas; por outro, a China também acaba por ser uma potência em ascensão que, pela sua natureza, pede uma política externa wilsoniana.
Se para a ordem cooperativa Biden escolheu o modelo rooseveltiano - pragmático, centrado em relações de poder, tendencialmente universalista e de pendor de distribuição de bens comuns internacionais -, para a dimensão competitiva da ordem escolheu algumas ideias originais wilsonianas, conceitos fundamentais de Truman e rejeitou, quase completamente, os excessos liberais dos anos 1990 e 2000.
De Wilson vieram quatro ideias centrais: a divisão do mundo entre democracias e autocracias, Estados com características tão diferentes que é quase impossível fazerem parte da mesma ordem internacional. Como disse Wilson,
«um concerto para a paz nunca poderá ser mantido a não ser através de uma parceria de nações democráticas. Não é possível confiar num governo autocrático para manter a fé nos desígnios assinados em tratados […] Apenas povos livres mantêm a sua honra e propósito consistentes com o objetivo comum e preferem os interesses da humanidade aos seus interesses nacionais»105.
Se hoje já ninguém vê as democracias como atores desinteressados dos seus desígnios nacionais, Biden - tal como Wilson antes dele (esta é a segunda ideia) - valoriza as virtudes democráticas e acredita na sua like-mindedness como via para uma grande cimeira de democracias com os objetivos de confrontar nações que estão a retroceder nesse campo e criar uma agenda internacional comum106. Dessa agenda devem constar a luta (outra vez, interna e externa) contra a corrupção, a defesa contra os Estados autoritários, a criação de condições para a defesa e a solidificação das democracias e o avanço na proteção dos direitos humanos, doméstica e internacionalmente107.
A Wilson, Biden ainda vai buscar duas premissas mais subtis, mas importantes: a importância crucial dos Estados Unidos no sistema internacional e a leitura, não explícita mas subentendida, de que o que se criar hoje politicamente não pode estar apenas radicado no presente - tem também de ter em conta o futuro da política internacional.
Se os quatro princípios wilsonianos podem parecer utópicos, esta vertente mais idealista é contornada não só pelas ideias rooseveltianas consideradas acima (o contexto estrutural da ordem que é reforçado pela presença hegemónica norte-americana), mas também por uma operacionalização que parece inspirada em Henry Truman, que teve de se reajustar a um novo sistema internacional, tal como Biden. Esta vertente à maneira de Truman fica clara no primeiro grande discurso de política externa que Joe Biden proferiu no dia 4 de fevereiro deste ano, na sede do Departamento de Estado108.
O discurso tem quatro elementos fundamentais. O primeiro é o retorno norte-americano à liderança internacional. Biden deixa cair o retraimento estratégico abraçado pelos seus antecessores109, e anuncia que os compromissos militares são para manter. O mais interessante está, contudo, na razão que evoca para justificar a liderança: «os valores dos Estados Unidos são imprescindíveis ao mundo»110. Biden vai deixar cair expressões muito em voga nos anos 1990, como «democratização» ou mesmo «multilateralismo». Passa a caracterizar os «valores democráticos americanos» como o «aproveitamento de oportunidades» para os fazer valer; fala de «direitos universais», mas escolhe salientar o «respeito pelo Estado de direito» e pelo «tratamento de todas as pessoas com dignidade»111, tentando assim demarcar-se do vocabulário usado pelo wilsonianismo teleológico. A América quer estar no mundo como um líder liberal, mas desta vez sem pretensões de expansão democrática para outros cantos do mundo. O discurso de Biden, de alguma forma assemelha-se ao da Doutrina Truman112: há uma espécie de pretensão de liderança do mundo livre que assinala o início de uma nova era para a política externa norte-americana.
O segundo ponto está diretamente relacionado com este. Esta liderança é necessária porque os Estados Unidos e os seus aliados atravessam um momento determinante em que ainda podem controlar a ameaça autocrática; os inimigos são: a China, pelos seus abusos económicos e ações coercivas, ataques aos direitos humanos, à propriedade intelectual e governança global; a Rússia, pelas suas atitudes agressivas, interferências nas eleições americanas, ciberataques, e envenenamento dos seus cidadãos; e os crescentes autoritarismos, que tendem a insuflar os rivais americanos e a enfraquecer os Estados Unidos113. Se no início do mandato houve alguma hesitação relativamente à hierarquia de rivalidades, esta dissipou-se na estratégia interina referida acima e publicada cerca de um mês depois deste discurso, em que, como já foi referido, a China é inequivocamente identificada como o challenger dos Estados Unidos114. Já em abril deste ano, esta ideia é repetida de uma forma ainda mais enfática no «Annual Threat Assessment», que dedica as três primeiras páginas a Pequim, afirmando, logo no início, que o «Partido Comunista Chinês vai continuar os seus esforços para disseminar a influência chinesa e travar a dos Estados Unidos, criar atritos entre Washington e os seus aliados e parceiros, e avançar novas normas internacionais que favoreçam o sistema autoritário chinês»115.
Estes dois elementos bipolarizam o sistema internacional. Biden, que se formou politicamente durante a Guerra Fria, terá consciência desta divisão do mundo provocada por si, das suas vantagens e dos seus riscos. Toda a sua retórica sugere dois motivos: por um lado, a necessidade interna de unir os americanos em torno de um inimigo comum. A Administração está consciente de que a divisão da América é insustentável interna e externamente, e que uma das mais eficazes estratégias de unificação é unir forças contra uma entidade exterior. Nas contas de Biden esta é também uma tentativa de unir as democracias em torno dos Estados Unidos. Desde a campanha eleitoral que há um reconhecimento de que «a América não pode enfrentar os seus inimigos sozinha»116 e precisa de encontrar uma forma de recuperar os aliados perdidos no tempo de Donald Trump. A bipolarização do mundo entre democracias e autocracias cria essa oportunidade: os Estados passam a ter uma espécie de papel natural no sistema internacional que lhes é atribuído pelo tipo de regime.
É esse o terceiro elemento do discurso de Biden, relacionado precisamente com a recuperação das alianças, especialmente na Europa e na Ásia. A tentativa de recuperação dos aliados não está relacionada apenas com a agenda liberal; é também uma questão de realismo político. Tal como Truman, Biden percebeu que, para travar a longa guerra de transição de poder em curso, é imprescindível a solidez das alianças permanentes. Porque os Estados Unidos já não têm o poder que tinham e precisam efetivamente de aliados (especialmente asiáticos) para fazer travar o crescimento de Pequim; porque o liberalismo democrático é a chave para a legitimidade que Biden procura para se impor internacionalmente; porque é preciso regressar à identidade perdida nos anos Trump, uma vez que uma potência sem identidade é uma coisa que não existe; e porque há organizações internacionais obsoletas - especialmente as que regulam a economia - e são necessários apoios firmes para as transformar. Nos últimos três pontos o papel da Europa é determinante.
A Europa
Há, aliás, diferenças fundamentais na estratégia de alianças com a Europa e a Ásia. Com o velho continente, a Administração Biden quer reavivar e reforçar os laços construídos por Roosevelt e Truman - e postos em questão por Trump. O Presidente não podia ter sido mais claro no seu discurso dirigido aos líderes dos Estados europeus na Conferência de Segurança de Munique que ocorreu a 19 de fevereiro deste ano. Depois de afirmar a importância do artigo v do Tratado do Atlântico Norte e da segurança coletiva, Biden declarou que «a parceria entre a Europa e os Estados Unidos […] tem de se manter o centro de tudo o que esperamos conseguir atingir no século XXI, tal como foi no século XX»117. Este gesto político coloca a Europa no centro da política externa norte-americana, o que não acontecia desde o 11 de Setembro, e é verdadeiramente demonstrativo do empenhamento americano na relação transatlântica118.
Há várias razões para Biden ter escolhido este papel para a Europa. Em primeiro lugar, passará pela convicção ideológica do Presidente e da sua Administração. Para eles, a relação transatlântica é um dos maiores a mais duradouros sucessos da política externa norte-americana.
Em segundo lugar, como já foi sugerido acima, passa por uma questão de legitimidade internacional. A visão de Biden do sistema internacional dividido entre democracias e autocracias não teria sustentação se o berço da comunidade das democracias não fosse o ponto de partida para uma ordem democrática mais vasta.
Em terceiro lugar, encontra-se a questão económica: ainda que não esteja no centro do discurso, a nova Administração considera, como a anterior, que os princípios e as organizações internacionais que governam a ordem económica favorecem a China. Sendo a União Europeia uma potência económica, qualquer reforma dessas instituições tem de ter o apoio da União Europeia, caso contrário terá sempre um impacto reduzido.
Finalmente, há o aspeto geopolítico. Embora a Europa possa não ser o mais forte aliado em termos militares é o conjunto formado pelo triângulo Estados Unidos-Europa-Indo-Pacífico que permite uma estrutura sólida e duradoura para enfrentar o desafio formidável que constitui uma guerra de transição de poder.
É certo que a Europa tem sido algo ambígua em relação à proposta de Biden, especialmente no que respeita ao desejado desacoplamento económico da China (outra vertente de continuidade entre Biden e Trump). Possivelmente, a Europa terá de tomar decisões mais firmes relativamente aos sistemas tecnológicos mutuamente exclusivos que estão a ser criados em Washington e Pequim e que terão um papel fundamental no futuro do alinhamento dos Estados com as grandes potências119. Mas a lógica por detrás desta centralidade atlântica que os antecessores tinham rejeitado, apontando todas as baterias para a Ásia, é justificada pelas razões descritas acima.
O Indo-Pacífico
Já o laço com as democracias asiáticas vem de Donald Trump e, curiosamente, tem sido muito menos ambíguo que o europeu120.
Em 2017, o anterior Presidente reavivou o QUAD (Diálogo Quadrilateral de Segurança), uma parceria que junta os Estados Unidos ao Japão, à Austrália e à Índia121, reforçando-o a propósito da pandemia de covid-19. Rapidamente estes Estados passaram a fazer exercícios militares conjuntos, especialmente navais, demonstrando a Pequim que estão dispostos a defender posições nos mares do Sul e do Leste da China, o espaço geográfico onde poderá haver maior conflitualidade, devido à tentativa chinesa, até agora relativamente bem-sucedida, de dominar aquele território marítimo.
Joe Biden elevou esta estrutura para um novo patamar. A sua Administração organizou a primeira cimeira ao nível de chefes de Estado a 12 de março de 2021. Se o Japão e a Austrália já são alianças antigas, do ponto de vista diplomático deve ter sido difícil convencer a Índia - com a sua permanente tentação de ter boas relações com todos os Estados e não depender de nenhum - a assinar a declaração conjunta que caracteriza esta parceria. São quatro Estados com «perspetivas diversas unidas por uma visão comum de um Indo-Pacífico livre e aberto […] inclusivo, ancorado em valores democráticos e sem constrangimento coercivo»122. Os parceiros também estão dispostos a «enfrentar os desafios de segurança que a região tem pela frente»123. Esta declaração ilustra mais uma vez a síntese de Biden, aplicando Truman à Ásia: uma coligação informal - por enquanto de democracias like-minded que fortalecem os seus laços comuns enquanto dissuadem a China de chegar aos seus objetivos de poder.
O QUAD também tem uma dimensão cooperativa regional, mas, mais uma vez, na lógica da distribuição de bens comuns internacionais. O projeto emblemático é o da distribuição de vacinas pelos países mais desfavorecidos do Sudeste Asiático. Vacinas essas, possíveis através do know-how americano e japonês, fabricadas na Índia e distribuídas pela Austrália. A Coreia do Sul também é um aliado central de Washington na região que parece estar a tentar que esta e o Japão resolvam as suas divergências para que Seul venha também a pertencer a este grupo124.
As estratégias para a Europa e a Ásia complementam-se: a primeira empresta legitimidade internacional e poder institucional para reformar organizações internacionais que favorecem a China; a segunda é a linha da frente da estratégia de «dissuasão»125 de Pequim.
O quarto ponto do discurso de 4 de fevereiro prende-se essencialmente com a estratégia: conflito armado só em último recurso e em situações em que os Estados Unidos tenham muita probabilidade de atingir os seus objetivos, estes também muito bem definidos - uma espécie de regresso à Doutrina Powell. O principal instrumento político será a diplomacia. Uma diplomacia musculada que mais uma vez lembra o tom do período bipolar. Não há contemplações nas críticas aos adversários, mas há espaço para negociar com eles questões fundamentais para manter o mundo em segurança. Um exemplo é o primeiro telefonema que Joe Biden fez a Vladimir Putin. O tom do Presidente norte-americano terá sido bastante duro, criticando Moscovo pelo atropelamento dos direitos humanos no caso Navalny e na repressão dos manifestantes, bem como pela ciberespionagem de que Estados Unidos terão sido alvo. Mas nesse mesmo telefonema Washington e Moscovo acordaram a extensão de cinco anos do START, o acordo de controlo de armamento nuclear entre os dois países, que expiraria em breve126.
Há elementos da ordem Biden que ainda estão por esclarecer. Dois deles são especialmente importantes para o futuro do sistema internacional. O primeiro está relacionado com a divisão do mundo entre democracias e autocracias. Se, por um lado, esta agenda pode significar um reforço significativo da segurança coletiva e da comunidade das democracias, o que parece ser um dos objetivos centrais de Joe Biden, a insistência neste aspeto terá um impacto significativo no comportamento da China e da Rússia. Aqui a questão é essencialmente da importância e da graduação desta dicotomia. Caso seja muito vincada, tal como aparenta neste momento, o sistema internacional tenderá para uma bipolarização. Não é necessário que estejamos a falar de uma nova Guerra Fria, uma vez que os conflitos apresentam diferenças significativas. Mas há cada vez mais aspetos que indiciam que se caminha em direção a um sistema internacional dominado pela rivalidade Estados Unidos-China.
O segundo está relacionado à qualidade da ordem. Se logo no início do mandato parecia que o acento tónico estava na paz separada entre democracias e numa ordem liberal defensiva, cada vez mais esta ordem parece ofensiva. Os indícios estão na crescente assertividade dos documentos estratégicos, no tom da diplomacia, em ações políticas concretas, como o fortalecimento do QUAD, que a China já considera ser a «NATO da Ásia»127 ou o exercício militar Euro Defender 2021, muito perto do mar Báltico, considerado uma «manobra de clara orientação anti-russa» por Moscovo128.
As respostas a estas duas indefinições vão ter profundas implicações no nosso futuro internacional. Neste momento, parece poder afirmar-se que Joe Biden é um cold warrior, ainda que moderado, que se inspirou nos seus antecessores para criar uma arquitetura internacional que se poderá manter para além do seu mandato. Parece estar convencido que é preciso criar raízes sólidas para uma ordem liberal fundada numa comunidade de democracias com aspetos cooperativos universalistas, e aspetos competitivos particularistas. Em nome de uma guerra de transição de poder que, tudo indica, se vai prolongar no tempo.
Notas finais
Joe Biden começou a construir a sua política externa pelas fundações, ou seja, antes de agir politicamente, começou por enunciar os seus planos gerais para a reorganização do sistema internacional e para o papel que os Estados Unidos querem desempenhar no mundo. Todos os presidentes norte-americanos tendem a fazer este exercício, nomeadamente através da «Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América», um documento publicado uma vez por mandato com as linhas de orientação para os quatro anos seguintes, mas não com a urgência com que a Administração Biden o está a fazer. Biden já fez um conjunto de discursos definidores do seu posicionamento internacional e preferiu publicar uma «Estratégia de Segurança Nacional Interina», como forma de enunciar e clarificar as suas intenções. Não é costume ser assim.
Esta invulgaridade prende-se com três razões essenciais. Por um lado, Donald Trump retirou deliberadamente os Estados Unidos do seu papel de produtor e protetor de ordem. «Ao contrário de todos os seus antecessores desde Truman, [Trump] não via a liderança global como a solução para o que adoecia a América. Pelo contrário. Via a [liderança global americana] como o problema.»129 Por isso, suprimiu todas as características liberais que, como vimos acima, constituem o traço distintivo dos Estados Unidos como ator internacional:
«Há um número de princípios que eram dados como adquiridos - os que compunham a ordem internacional - que são simplesmente eliminados da política Trump: caem a segurança coletiva, a importância do tipo de regime, as alianças permanentes, o tipo de aliados preferenciais, esvaziam-se as organizações internacionais e formas de defesa dos direitos humanos ou qualquer tipo de programa de desenvolvimento.»130
O Presidente Joe Biden assumiu a agenda liberal com uma energia renovada, por um lado para apaziguar os aliados tradicionais, por outro porque entendeu que era preciso restituir à política externa norte-americana a sua identidade central131.
Segundo, e mais importante, porque na visão de Biden há uma transformação do sistema internacional em curso. Tal como Henry Truman, que transformou abruptamente a sua política externa para responder à Guerra Fria e ao novo enquadramento sistémico que se tornou incontornável no seu mandato, com uma resposta firme e liberal, Joe Biden parece igualmente decido em que a forma de combater esta guerra de transição de poder começa precisamente por adaptar a ordem liberal internacional132. E essa posição é nada menos que a que Truman também escolheu para os Estados Unidos: a de líderes do mundo livre133.
Há semelhanças entre os dois momentos: ambos os presidentes se encontram no início de um longo conflito em que aparentemente os agentes mais poderosos são dois, configurando um sistema bipolar; ambos têm ambições de rever a ordem do sistema internacional com projetos incompatíveis - Washington quer reconstruir o seu modelo de ordem liberal, enquanto Pequim gostaria de impor o seu modelo vertical de hierarquia política no sistema internacional134.
Finalmente, em terceiro lugar, o próprio Biden, tal como Roosevelt e Truman antes dele, parece estar a tentar criar uma clivagem que bipolarize democracias e autocracias.
Se a clareza da agenda Biden tem aspetos muito positivos, é no que falta explicar que estão os maiores riscos. A bipolarização político-ideológica que Biden propõe tende, pela natureza da política internacional, a tornar-se cada vez mais ofensiva. O exemplo de Truman e dos seus antecessores mostra a dificuldade de manter uma ordem liberal defensiva e uma paz separada tendo adversários formidáveis como a China. Muito facilmente os Estados Unidos poderão cair na tentação da Guerra Fria de entrar na contradição entre serem um exemplo para a humanidade e, ao mesmo tempo, recorrerem a estratégias que desvirtuam os seus próprios princípios.
Mais, uma estratégia que se torne cada vez mais ofensiva tenderá a criar um número crescente de tensões entre os Estados envolvidos na transição de poder. A China e, especialmente, a Rússia, já deram mostras de estarem insatisfeitas com as políticas da nova Administração e cada uma delas, da sua forma particular, tem vontade política de lhe fazer frente.
No entanto, Joe Biden percebeu que há dois elementos essenciais para a reconstrução da unidade da América: o reforço da classe média - daí que esteja sempre a repetir que a política externa norte-americana tem como principal objetivo fortalecê-la - e um novo papel para os Estados Unidos no sistema internacional, na liderança e, de preferência, com inimigos comuns. Nada une tanto uma nação do que uma ameaça que diga respeito a todos.
E ignorar as mudanças no sistema internacional e ser inativo perante as mesmas não seria possível. A agenda Biden tem as virtudes de ser clara, explícita e adequada ao sistema internacional de hoje. Tem o mérito de poder aglutinar os norte-americanos à volta de um inimigo comum e ser inclusiva de um conjunto de aliados cuja alienação se tinha tornado uma fraqueza para os Estados Unidos. Tem ainda como característica central a procura dos princípios adequados no passado americano, como garantia de que os Estados Unidos voltam a ser uma potência com identidade e princípios definidos.
A chave do sucesso desta agenda não está apenas nas mãos dos Estados Unidos. Mas ter começado a sua política pelas fundações e através de uma clarificação de objetivos coloca a Administração Biden na posição necessária de quem entende que é preciso travar, antes que seja tarde, uma guerra que não permita à China atingir os seus objetivos internacionais.