«America is back. The transatlantic alliance is back. And we are not looking backward; we are looking forward, together.» Joe Biden1
As palavras de Joe Biden que abrem este texto, proferidas em fevereiro de 2021 na Conferência de Segurança de Munique, são ilustrativas da janela de oportunidade que a nova Administração norte-americana representa para a parceria Estados Unidos-União Europeia (UE). Ao longo do discurso, Biden deixou clara a vontade de reavivar as relações com a Europa e, em particular, com a UE. Mas este «regresso» dos Estados Unidos à Europa não isenta a parceria transatlântica de grandes desafios. O relacionamento entre os Estados Unidos e a UE foi, ao longo dos anos, marcado por dinâmicas contraditórias de cooperação e de competição. Se a partilha dos valores fundamentais em que assenta a ordem internacional liberal uniu os dois atores, a rivalidade comercial, as visões diferentes sobre a necessidade do uso da força ou desacordos em relação ao contributo dos Estados europeus para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (nato) constituem apenas alguns exemplos de temáticas que colocaram, não raras vezes, os Estados Unidos e a UE (ou parte da UE) em campos opostos. Não obstante esta alternância entre momentos de maior aproximação e momentos de maior afastamento, o reconhecimento da importância da aliança entre os dois atores por parte das suas lideranças manteve a parceria transatlântica como um elemento constante das respetivas políticas externas. A título de exemplo, relembre-se que a conclusão da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento entre a UE e os Estados Unidos era uma das dez prioridades da Comissão Juncker (2014-2019); também a Estratégia Global da UE (2016) previa explicitamente o aprofundamento da cooperação com os Estados Unidos em inúmeros domínios, que incluíam, entre outros, a relação com a nato, o acordo comercial, a gestão de crises, o combate ao terrorismo, a cibersegurança, a migração, a energia e o clima2. A eleição de Donald Trump em 2016 veio alterar este cenário. Durante os quatro anos do seu mandato, Trump materializou o lema de campanha «America first» numa política externa (neo)isolacionista que retirou os Estados Unidos do palco principal das relações internacionais, ao reduzir drasticamente as suas responsabilidades e compromissos como ator global, e alienou o apoio dos seus aliados tradicionais. A vitória de Biden e as suas declarações (e ações) iniciais fizeram renascer a esperança de um regresso dos Estados Unidos e do seu envolvimento e comprometimento com a solução dos problemas globais. Na Europa, as reações foram de entusiasmo e de abertura à cooperação. A pergunta que se impõe é, no entanto, que tipo de cooperação será esta? A leitura do documento estratégico que a delineia parece permitir concluir que os sobressaltos provocados pela Administração Trump tiveram o efeito de unir a Europa em torno de uma lição que esta tardava a aprender: parceria não é sinónimo de dependência.
O regresso da américa: principais desafios da administração Biden
O regresso da América prometido por Biden encerra inúmeros desafios que vão muito para além do refazer das relações com os velhos parceiros deste lado do Atlântico. Caberá desde logo à Administração Biden a árdua tarefa de recuperar as fundações que suportam o soft power dos Estados Unidos, abaladas pelos ataques de Trump aos valores e práticas americanos3, traduzidos num questionamento permanente sobre a fiabilidade do modelo económico, a imparcialidade e veracidade da informação veiculada pela imprensa, a competência das agências governamentais ou a legalidade de processos eleitorais, incluindo aquele que ditou a sua não reeleição. Na dimensão externa, Trump desvalorizou alguns dos princípios basilares da ordem liberal que os Estados Unidos ajudaram a fundar. Opositor do globalismo e do multilateralismo, criticou duramente instituições centrais na política externa dos Estados Unidos, como a nato e as Nações Unidas, iniciou a retirada dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS) em plena pandemia de covid-19, inverteu a política de controlo de armamento, expandindo o arsenal nuclear dos Estados Unidos4, interrompeu negociações para novas parcerias comerciais com a Ásia e a Europa, retirou os Estados Unidos de tratados internacionais como o Acordo de Paris e o Plano de Ação Conjunto Global (PACG)5 e tomou várias decisões contrárias ao disposto no regime internacional dos direitos humanos.
Ainda assim, como nota Joseph S. Nye, a experiência passada mostra que há razões para esperar que os Estados Unidos possam recuperar o seu soft power depois de Trump6. Biden parece decidido a fazê-lo, mas espera-o um árduo «trabalho de reparação»7. Internamente, Biden terá de dar resposta a um sistema democrático fragilizado, a uma agudização dos conflitos e das divisões sociais e a uma crise com múltiplas dimensões: económica, política, social, a que se soma a ainda crítica dimensão sanitária. Externamente, Biden precisa de fazer regressar os Estados Unidos a um conjunto basilar de organizações e acordos internacionais, restabelecer o comprometimento e a liderança dos Estados Unidos na busca de soluções conjuntas para problemas globais (como alterações climáticas, pandemias, terrorismo, ameaças híbridas, migrações irregulares, para mencionar apenas alguns), recuperar a reputação dos Estados Unidos como parceiro de confiança junto dos aliados tradicionais, particularmente na Ásia e na Europa, sobretudo considerando a assertividade e proeminência da China (em áreas estratégicas como, por exemplo, a inteligência artificial) e a maior belicosidade e interferência da Rússia, que antecipam um regresso à rivalidade entre as grandes potências. As ações de Biden têm demonstrado a sua vontade para dar os passos necessários: os Estados Unidos regressaram ao Acordo de Paris, o processo de saída da OMS foi travado, o programa de admissão de refugiados foi reativado e o diálogo com os aliados foi retomado. Mas o caminho é ainda longo.
A proposta da UE para uma nova agenda transatlântica
Na UE, a eleição de Joe Biden foi recebida com satisfação pelos presidentes das instituições europeias e pelos chefes de Estado e de governo dos Estados-Membros. A presidente da Comissão Europeia (adiante Comissão), Ursula von der Leyen, sublinhou a disponibilidade «para intensificar a cooperação com a nova Administração e o novo Congresso para resolver os problemas urgentes que enfrentamos»8. Reação idêntica teve o alto representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança (adiante, Alto Representante), Josep Borrell, que, embora não escondendo a relação mais complicada dos últimos quatro anos, notou que «estamos agora a olhar para as oportunidades de avançar com a nossa parceria estratégica»9. David Sassoli, presidente do Parlamento Europeu (PE), referiu-se ao relançamento das relações transatlânticas para lidar com os muitos desafios colocados pelos tempos atuais10, e Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, desafiou Biden a, em conjunto com a Europa, construir um «novo pacto fundador», com base em cinco prioridades: aumentar a cooperação multilateral; combater a pandemia de covid-19; combater as alterações climáticas; reconstruir as nossas economias, assegurar o comércio justo e promover a transformação digital; juntar forças para garantir a segurança e a paz11. Ficou claro das intervenções dos líderes europeus que, mais do que «reparar» a antiga relação transatlântica, a nova Administração representa a oportunidade de ir para além dela, para responder aos novos desafios colocados por um mundo em profunda transformação, que deixa antever uma nova realidade geopolítica e económica.
A nova parceria começou a ser desenhada pelos europeus antes mesmo da tomada de posse da Administração Biden. Em 2 de dezembro de 2020, a Comissão e o Alto Representante emitiram uma comunicação conjunta dirigida ao PE, ao Conselho Europeu e ao Conselho intitulada «Uma nova agenda UE-EUA para uma mudança global»12. Começando por recordar a importância da relação entre a UE e os Estados Unidos que, baseada numa história, valores e interesses partilhados, permitiu a construção conjunta de um sistema multilateral baseado em normas, o documento nota que a mudança na Administração dos Estados Unidos, somada a uma Europa mais assertiva e à necessidade de pensar um mundo pós-pandemia de covid-19, abrem uma oportunidade única para desenhar uma nova agenda transatlântica para a cooperação, baseada nos valores e interesses comuns e na capacidade de influência de ambos. A nova agenda transatlântica proposta pela UE identifica quatro domínios em que a liderança dos dois atores será determinante para responder em conjunto aos novos (ou renovados) desafios e oportunidades: saúde; ambiente e alterações climáticas; comércio e tecnologia; segurança, prosperidade e democracia13. No domínio da saúde, a proposta da UE vai no sentido de uma resposta conjunta à pandemia e de uma melhoria da preparação e capacidade de resposta às crises de saúde pública à escala global, incluindo a produção e a distribuição equitativa de vacinas (apostando em iniciativas já existentes como ACTA e COVAX), facilitação do comércio de produtos médicos e de outros tratamentos e uma reforma da OMS que permita reforçar a centralidade do seu papel na gestão de crises de saúde pública globais. O segundo domínio reafirma a centralidade das alterações climáticas como «o desafio dos nossos tempos» (apesar de temporariamente secundarizado pela pandemia), cuja resposta passará por uma «agenda ecológica transatlântica», incluindo uma iniciativa conjunta em matéria de comércio e clima, uma aliança tecnológica ecológica e um quadro regulamentar global para o financiamento sustentável. No terceiro domínio, destaca-se a reforma (há muito bloqueada) da Organização Mundial do Comércio e a criação de um novo Conselho do Comércio e da Tecnologia UE-Estados Unidos, bem como a cooperação, incluindo produção de regulamentação, em áreas estratégicas como a inteligência artificial e os fluxos de dados. No último domínio, a ênfase é colocada na democracia. A UE compromete-se a ter um papel interventivo na Cimeira para a Democracia proposta por Biden, esperando dos Estados Unidos uma parceria mais estreita em diferentes cenários geopolíticos, que permita a defesa dos valores democráticos, bem como a estabilidade, prosperidade e resolução de conflitos a nível regional e global (uma ação concreta é a proposta de estabelecimento de um novo diálogo UE-Estados Unidos sobre segurança e defesa). Pretende-se ainda compromissos conjuntos para combater a expansão do autoritarismo, as violações dos direitos humanos e a corrupção. É neste ponto do documento que são abordadas as relações com atores que se tornaram mais assertivos (e agressivos) na defesa dos seus interesses e valores, como a China ou a Rússia. O fio condutor que une estas propostas é a ideia de que uma ação coordenada entre a UE e os Estados Unidos impulsionará a influência coletiva e reforçará o multilateralismo.
Porventura com exceção do primeiro, que resulta em parte das lições retiradas da pandemia, os domínios de atuação eleitos nesta comunicação conjunta constituem assuntos há muito centrais na agenda europeia, apesar da enfâse colocada no futuro. A nova agenda transatlântica proposta pela UE é, nessa medida, um reconhecimento implícito de que a liderança europeia não tem sido suficiente para fazer avançar satisfatoriamente alguns dos seus objetivos em matéria de política externa e traduz, portanto, um reconhecimento dos limites do poder normativo da UE. Desde logo porque reafirma explicitamente a importância de um parceiro com o peso e a influência dos Estados Unidos para levar mais longe uma reforma das instituições e das normas em que assenta a ordem multilateral advogada pela UE, sobretudo face à ascensão de potências como a China e a Rússia, cujas políticas (interna e externa) se regem por valores e princípios muito diferentes dos valores em que se funda o projeto europeu.
Paradoxalmente, o sucesso desta agenda transatlântica proposta pela UE poderá representar o reafirmar do seu poder normativo. Acresce que há nesta proposta a continuação de uma tendência que se acentuou nos últimos anos. Ao infligirem um prejuízo na reputação e credibilidade dos Estados Unidos como aliado de confiança, as ações de Donald Trump empurraram a Europa para a necessidade de considerar a questão da sua autonomia de forma pragmática. A interdependência dos problemas atuais e das suas soluções torna indispensáveis as parcerias e as redes, qualquer que seja o poder dos atores. Mas, como sublinhou o Alto Representante, para que a relação UE-Estados Unidos possa ser uma verdadeira parceria, a Europa precisa de continuar a reforçar a sua própria «autonomia estratégica»14, isto é, a capacidade para agir autonomamente quando e onde necessário e com os parceiros sempre que possível15. Ao longo do documento fica clara a ideia de que esta parceria será tanto mais produtiva quanto mais fortes forem os dois atores. Sendo este, por si só, um argumento suficiente para a insistência da UE na sua autonomia estratégica, esta é ainda justificada por duas razões adicionais. Por um lado, a Administração Trump mostrou de forma inequívoca que, nas relações internacionais, mesmo os aliados de longa data podem rapidamente passar a «inimigos»16. Para uma parte significativa dos europeus, os Estados Unidos deixaram de ser um aliado confiável do qual a Europa pode depender para a sua defesa17. Inverter este sentimento de desconfiança levará tempo. Por outro lado, se é certo que a resposta da Administração Biden à nova agenda transatlântica proposta pela UE tem sido positiva18, não é de todo provável que haja um alinhamento perfeito entre os interesses dos Estados Unidos e os da UE em todas as matérias. As divergências poderão surgir desde logo em matéria de comércio, domínio em que os analistas questionam o apoio de Biden ao multilateralismo e ao comércio livre, sobretudo considerando as inevitáveis pressões domésticas em sentido contrário19. Um outro exemplo de divergência é o Irão, já que Biden, embora reconhecendo a importância do PACG, hesita em fazer regressar os Estados Unidos ao acordo20. Confirmando a probabilidade de dissenso, algumas ações da UE levantaram igualmente dúvidas à nova Administração americana, nomeadamente o «acordo de princípio» entre a UE e a China sobre investimento21 alcançado em 30 de dezembro de 2020. Também os padrões que a UE procura impor (e exportar), por exemplo, no domínio da proteção de dados e das taxas cobradas a grandes multinacionais, bem como a sua insistência na «soberania digital» da Europa, poderão ser motivo de divergência, considerando que alguns dos seus «alvos» são grandes empresas dos Estados Unidos22.
Considerações finais: «America is back». E a Europa?
Embora alicerçada numa lógica dual de cooperação e competição, a relação da Europa com os Estados Unidos tem sido, ao longo dos anos, uma relação de aliados baseada numa visão do mundo partilhada. O mandato de Donald Trump baralhou as premissas da relação, colocando a UE no campo dos «inimigos». A eleição de Joe Biden representou uma janela de oportunidade para recuperar a parceria transatlântica, que tem estado em suspenso nos últimos quatro anos. Durante a campanha eleitoral, Biden deu todos os sinais de que estava disposto a fazer regressar os Estados Unidos aos seus compromissos como ator global e a reavivar as relações com os seus parceiros tradicionais. A nova Administração dos Estados Unidos tem pela frente um longo «trabalho de recuperação» (nos domínios interno e externo), mas os primeiros passos são encorajadores.
A UE aproveitou a janela de oportunidade e tomou a iniciativa com a proposta de uma nova agenda para a relação transatlântica. Das declarações das lideranças europeias e americana ficou claro que nem a UE nem os Estados Unidos desejam um regresso ao passado. O objetivo é uma parceria que torne os dois atores mais fortes na resposta aos complexos desafios, mas também às oportunidades, do mundo de hoje. A nova parceria transatlântica, se bem-sucedida, poderá resultar no aumento da influência dos Estados Unidos e da UE, assegurando a continuidade de uma ordem multilateral baseada em normas. Mas, para tal, a Europa não pode regressar a um «atlantismo preguiçoso»23. Deve continuar o caminho pragmático da sua autonomia estratégica, de forma a acrescentar valor à parceria, em vez de depender dela. Afinal, autonomia e parceria não são caminhos opostos, mas antes complementares.