A Presidência do Conselho e o tecido institucional da União Europeia
A presidência rotativa do Conselho da União Europeia (doravante «Conselho») é, em circunstâncias normais, uma instituição bastante discreta. Desde que o Tratado de Lisboa entrou em vigor em 2009, a Presidência tem sido fundamentalmente responsável pela coordenação e pela organização internas do trabalho diário do Conselho. A função de «mediador honesto» nas negociações interinstitucionais é uma das mais importantes da Presidência do Conselho, mas também, amiúde, uma das mais difíceis: é frequentemente desafiante chegar a um consenso entre 27 Estados-Membros que por vezes têm interesses marcadamente divergentes. Um bom desempenho das tarefas da Presidência requer recursos e capacidade de negociação, e não deixa muita margem de manobra nem possibilidades para que se avance uma agenda própria1. além disso, tornou-se habitual que a Presidência se alinhe com a Agenda Estratégica do Conselho Europeu, de forma a garantir continuidade na liderança da União Europeia (UE). A continuidade é também reforçada pelo formato do trio de presidências, através do qual três presidências consecutivas acertam um programa conjunto a dezoito meses2. A duração de seis meses de cada Presidência é demasiado curta para que seja possível finalizar processos políticos. Os processos legislativos na UE demoram muito mais do que uma Presidência do Conselho. Desta forma, apenas em determinadas circunstâncias a Presidência assume um papel de liderança que extravasa a gestão do dia a dia.
Na primavera de 2020, enquanto se preparava a Presidência alemã, a pandemia de covid-19 virou o mundo de cabeça para baixo. O Conselho teve de ajustar-se às novas restrições de contactos, que levaram a interrupções significativas no seu trabalho. Encontros formais e informais entre ministros dos Estados-Membros e dos vários organismos de preparação são de grande importância para que as negociações sejam bem-sucedidas. O desafio era, portanto, duplo: os Estados-Membros da UE tinham de encontrar uma forma de sair da crise juntos, mas sem poderem utilizar os procedimentos habituais. Durante a sua Presidência, a Alemanha conseguiu levar a bom porto negociações difíceis mesmo em condições de pandemia, e dessa forma assegurou a capacidade do Conselho de continuar a trabalhar - apesar de apenas 25% das reuniões terem sido realizadas presencialmente3.
De uma forma algo macabra, a pandemia e as suas consequências socioeconómicas alçaram a Presidência do Conselho a uma posição de proeminência pouco habitual. Uma Presidência do Conselho raramente atinge o protagonismo que a «Presidência Corona» da Alemanha alcançou, e os preparativos alemães para a Presidência foram acompanhados pelos outros Estados-Membros com muito mais atenção do que o normal. Nestas circunstâncias excecionais, a Alemanha deparou-
-se com expetativas extraordinariamente elevadas4 de que iria ser uma gestora de crise eficiente, conduzindo a UE para fora do cenário de incerteza causado pelas primeiras reações de pânico por parte dos Estados-Membros ao surto de covid-19.
As presidências alemãs do Conselho desde a década de 1990
No passado, as presidências alemãs desempenharam um papel importante para a integração europeia. Por exemplo, as duas presidências na década de 1990 contribuíram significativamente para o desenvolvimento da União: a Presidência de 1994 ficou mar- cada pela implementação do Tratado de Maastricht de 1992, que transformou a Comunidade Europeia na União Europeia. Referendos de adesão foram realizados na Finlândia, na Noruega e na Suécia, com resultados positivos na Finlândia e na Suécia5. A Presidência de 1999 ficou também marcada por passos importantes no sentido de uma integração mais aprofundada: o Tratado de Amesterdão entrou em vigor, negociações de adesão foram realizadas com Estados da Europa Central e de Leste, e foram feitos preparativos para a introdução do euro. Além disso, a adoção da chamada Agenda 2000, um programa alargado de reformas que incluía os denominados «assuntos pendentes» de Amesterdão, foi uma grande prioridade para a Presidência alemã. Na sequência das guerras nos Balcãs Ocidentais, a UE estabeleceu em 1999 uma «Política Europeia de Segurança e Defesa» e criou as bases para as suas próprias operações militares6.
Devido ao alargamento da UE a Leste em 2004, a Alemanha teve de esperar até à primeira metade de 2007 para assumir de novo a Presidência. O momento era particularmente desafiante, na medida em que o projeto de integração europeia se encontrava numa crise profunda. A crise havia sido espoletada pela rejeição do Tratado Constitucional Europeu em referendos na França e na Holanda, dois membros fundadores da UE. A Presidência alemã concentrou-se, portanto, na revitalização do processo de integração, resgatando reformas importantes do Tratado Constitucional e reconquistando a confiança das populações. O Governo alemão, com a chanceler Angela Merkel a assumir pela primeira vez um papel de liderança na política europeia, foi capaz de finalizar as negociações do Tratado Reformador durante a sua Presidência. O novo tratado foi assinado como Tratado de Lisboa em dezembro de 2007, durante a Presidência portuguesa subsequente. Além disso, a Declaração de Berlim, assinada a 25 de maio de 2007 por ocasião do quinquagésimo aniversário dos Tratados de Roma - os tratados fundadores da Comunidade Europeia - foi uma conquista importante da Presidência alemã do Conselho. Ainda que não fosse juridicamente vinculativa, a declaração teve um forte impacto orientador e confirmou o compromisso dos Estados-Membros com o projeto europeu depois da rejeição do Tratado Constitucional, levando a uma série de reformas bem-sucedidas7.
O Tratado de Lisboa foi o culminar do desenvolvimento histórico da Presidência do Conselho. O estabelecimento do Conselho Europeu enquanto órgão oficial da UE com um presidente permanente reduziu de forma significativa o poder de determinação da agenda detido pela Presidência do Conselho, à medida que o presidente permanente assumiu a liderança do órgão europeu com maior importância política. Além disso, o alto representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança preside ao Conselho dos Negócios Estrangeiros, uma das mais importantes configurações do Conselho. Estas foram mudanças muito importantes no papel e poderes da Presidência em relação ao período anterior ao Tratado de Lisboa, quando a Presidência liderava o Conselho Europeu e representava a UE internacionalmente8.
A «presidência pandémica»
Em 2020, a Alemanha assumiu uma vez mais a Presidência do Conselho num momento de crise. De certa forma, tratou-se de uma feliz coincidência histórica - com 27 Estados-Membros, a Presidência tornou-se uma ocasião bastante rara, sendo que cada Estado-Membro ascende ao lugar a cada treze anos. Com a pandemia a começar poucos meses antes do início da sua Presidência, a Alemanha foi confrontada com circunstâncias deveras extraordinárias. Olhando para trás, foi talvez bom que a Alemanha não tivesse ainda anunciado as suas prioridades para a Presidência com grande detalhe. Antes de a primeira vaga de covid-19 chegar à Europa, apenas tinham sido anunciadas como prioridades para a Presidência alemã as relações UE-China e uma cimeira de alto nível sobre essa questão, a realizar em Leipzig em setembro de 2021. Dada a mudança de circunstâncias, a cimeira teve de ser adiada e outras questões (internas à UE) foram privilegiadas em detrimento das relações externas. Devido à situação muito dinâmica, a Alemanha anunciou as suas prioridades9 apenas uns dias antes do início da sua Presidência, a 24 de junho de 2020, e o programa10, com o mote «Juntos pela recuperação da Europa», foi apresentado na véspera, a 30 de junho de 2020. Este programa concentrou-se fortemente na pandemia e no novo orçamento da UE, com as negociações do Brexit a assumirem também lugar de destaque na agenda. Outras áreas, como a proteção do clima, a digitalização e o papel da Europa no mundo seguiram-se a estas prioridades.
Histórias de sucesso: orçamento, Brexit e clima
A questão mais premente na agenda da Alemanha era o novo Quadro Financeiro Plurianual (QFP) para o período 2021-2027 e o plano de recuperação da pandemia. Por um lado, no que diz respeito às negociações do orçamento, as expetativas dos outros Estados-Membros em relação ao desempenho da Alemanha eram as mais elevadas11. Por outro lado, o ponto de partida alemão foi prejudicado pela sua decisão unilateral de fechar as fronteiras e decretar uma proibição de exportações de produtos médicos durante o pânico generalizado do início da pandemia, o que levou vários Estados-Membros da UE a recorrer a medidas de carácter nacional12. Em resultado das perceções muito negativas por parte dos parceiros da UE face a estas medidas iniciais unilaterais, a Alemanha estava muito pressionada a mostrar-se totalmente comprometida com uma resposta europeia comum à pandemia. Assim, as negociações orçamentais - que seriam, de qualquer forma, o dossiê mais urgente - foram declaradas a principal prioridade. A Alemanha conseguiu chegar a um acordo político logo no início da sua Presidência, em julho de 2020, depois das segundas negociações mais longas da história da UE13. Uma das tarefas mais importantes da Presidência do Conselho é pôr de parte os interesses nacionais e funcionar como um mediador honesto, de forma a estabelecer um terreno comum para a negociação. O desempenho alemão durante as negociações do QFP foi impressionante, tendo em conta que a Alemanha conseguiu colocar o seu papel de mediador honesto acima da lógica negocial de um contribuinte líquido. O desfecho rápido das negociações do QFP e do fundo de recuperação «Próxima Geração UE» (PGUE), que ascenderam a um valor total de 1,8 biliões de euros, e a sua aprovação subsequente pelo Parlamento Europeu foram não só a tarefa mais importante na agenda da Alemanha mas também o maior sucesso da sua Presidência.
Uma outra prioridade que a Alemanha conseguiu levar a bom porto - apesar de grandes dificuldades - foram as negociações sobre a relação futura entre a UE e o Reino Unido (RU) depois do Brexit. Um acordo provisório foi alcançado a 24 de dezembro e assinado a 30 de dezembro, sendo que o período de transição depois da saída do RU da UE terminava a 31 de dezembro de 202014. Porém, os louros pela conclusão das negociações com o RU não vão em primeiro lugar para a Presidência alemã, uma vez que a Comissão e o seu chefe de negociações, Michel Barnier, lideraram o processo. Nas «outras» áreas políticas, a Presidência alemã conseguiu mediar um acordo relativo ao novo e muito mais ambicioso objetivo climático de reduzir até 2030 as emissões da UE em 55%, em comparação com níveis de 199015.
O drama de dezembro com o Estado de direito
O mecanismo de condicionalidade relativo ao Estado de direito - exigido em especial pelos Estados-Membros do Norte como condição para uma aceitação do QFP e do PGUE - tornou-se, tal como esperado, um assunto muito controverso assim que as negociações avançaram para os detalhes mais concretos do acordo político, tipicamente vago, resultante da cimeira de julho. O mecanismo destinava-se a tornar os fundos europeus condicionais ao respeito pelo Estado de direito por parte dos Estados-Membros, o que levou a protestos da Polónia e da Hungria. Estes países, já a braços com procedimentos ao abrigo do artigo 7.º do Tratado da União (TUE) devido a violações aos princípios fundamentais de Estado de direito e democracia, ameaçaram vetar a totalidade do orçamento a não ser que se chegasse a um melhor acordo. Quando Bruxelas já se preparava para avançar com o plano de recuperação sem a Polónia e a Hungria, a Presidência alemã conseguiu alcançar um acordo que previa que estes países pudessem contestar a legalidade do mecanismo junto do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)16. A Alemanha lançou ainda um mecanismo de revisão de pares para o Estado de direito, incluindo uma «discussão horizontal» anual sobre desenvolvimentos pan-europeus, e uma «discussão específica» para cada país a realizar-se duas vezes por ano, cada uma incidindo sobre cinco capítulos referentes a esse país no Relatório da Comissão de setembro de 202017.
Ainda que a resolução dos bloqueios fosse urgente de forma a garantir um novo orçamento para 1 de janeiro de 2021, críticos apontaram que a solução mediada pela Presidência alemã fez com que o mecanismo do Estado de direito se tornasse um cão que não morde, uma vez que não será aplicado até o TJUE se pronunciar - o que irá demorar meses. Todavia, o desempenho da Alemanha pode ser considerado razoavelmente bem-sucedido, dada a forte pressão do tempo e o facto de ser uma questão muito controversa.
Insuficiências: política externa e o futuro da Europa
Compreensivelmente, a Presidência alemã do Conselho debruçou-se de forma muito pronunciada sobre o «aqui e agora», e teve menor capacidade de enfrentar questões relacionadas com o futuro (à exceção dos objetivos climáticos) e com as políticas externas. Enquanto a Alemanha teve sucesso nos dossiês mais urgentes, outros foram grandemente negligenciados durante a sua Presidência. Um bom exemplo é a Conferência sobre o Futuro da Europa, planeada para ter início no Dia da Europa, a 9 de maio de 2020, e que foi adiada devido à pandemia. Os preparativos para a conferência foram suspensos durante a Presidência alemã, quando a questão da liderança da conferência se tornou alvo de uma disputa interinstitucional entre a Comissão, o Conselho e o Parlamento18. A conferência conheceu um novo impulso quando Portugal assumiu a Presidência em janeiro de 2021, e está previsto que comece com um ano de atraso, no Dia da Europa de 2021. Um outro dossiê, o das migrações e asilo, não registou progressos durante a Presidência alemã devido à sua natureza sensível e às dificuldades de negociar esta área específica em encontros virtuais. Uma vez que a política de migrações não era uma prioridade da Presidência alemã, as expetativas não eram particularmente elevadas, pelo que não houve desilusões. Além disso, há anos que esta área tem estado bloqueada e não se registaram recentemente mudanças significativas nas posições dos Estados-Membros, que são, em parte, diametralmente opostas.
No que diz respeito à política externa, o desempenho da Presidência não teve o entusiasmo demonstrado nos assuntos internos. Ao mesmo tempo, os seis meses da Alemanha na Presidência do Conselho foram muito turbulentos no que concerne às relações externas. Alguns dos incidentes mais dramáticos na vizinhança imediata da UE foram a crise no Mediterrâneo Oriental entre a Turquia, Chipre e a Grécia - relativa às fronteiras marítimas e às atividades de extração de petróleo por parte da Turquia -, a repressão violenta de protestos na Bielorrússia na sequência de eleições fraudulentas (e o subsequente entrelaçar dos dois conflitos quando Chipre tornou a sua aceitação das sanções à Bielorrússia condicional à imposição de sanções à Turquia por parte da UE), e um recrudescimento das hostilidades na guerra do Carabaque entre a Arménia e o Azerbaijão. Em nenhum destes conflitos a Presidência conseguiu manter o bloco unido. Uma limitação importante da Presidência do Conselho enquanto instituição é o facto de o Conselho dos Negócios Estrangeiros (CNE) ser presidido pelo alto representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, e não pela Presidência. Ainda assim, seria de esperar que um membro influente como a Alemanha adotasse uma postura mais ativa na coordenação da política externa.
Porém, no que toca à China, a Presidência avançou de facto com a sua própria agenda. Depois de ter sido forçada a abandonar a ênfase inicialmente prevista nas relações UE-China, a Alemanha surpreendeu ao concluir, nos últimos dias da sua Presidência, o controverso Acordo Abrangente de Investimento (AAI) UE-China. Ainda que este acordo estivesse a ser negociado há muito, a conclusão apressada, e o momento desta, foram criticados por outros Estados-Membros, por organizações de direitos humanos e pelo Parlamento Europeu19. Os críticos viram o acordo como uma vitória do Presidente chinês Xi Jinping e como um golpe nas relações transatlânticas, sendo que a Administração Biden não foi consultada sobre o assunto20. Além disso, nos meses que antecederam o acordo a China tinha sido atacada devido a violações de direitos humanos em Hong Kong e Xinjiang (a chanceler Merkel foi pessoalmente criticada por ter pressionado a conclusão do acordo à última da hora). É de facto irónico, uma vez que a própria Merkel tinha dito, na sua declaração ao Parlamento alemão em junho de 2020, que, «em especial no que diz respeito a um parceiro estratégico como a China, é importante que a Europa dos 27 Estados-Membros fale a uma só voz»21. A conclusão do AAI foi um final infeliz para uma Presidência que, noutras questões, foi bem-sucedida.
A presidência e o fim da era Merkel
As circunstâncias da Presidência alemã de 2020 foram especiais não apenas por causa da pandemia, mas também pelo contexto político interno da Alemanha. Enquanto a anterior Presidência alemã, em 2007, tinha sido a primeira da chanceler Angela Merkel, esta Presidência foi a sua última. Desta forma, a Presidência constituiu uma ocasião importante para definir o legado de Merkel, tanto internamente como enquanto líder europeia. A pandemia de covid-19, «o maior desafio na história da Europa»22, como afirmou Merkel numa declaração governamental antes do início da Presidência em junho de 2020, trouxe uma nova urgência, tanto a esta como ao propósito de Merkel de estabelecer o seu legado.
Neste contexto, a Alemanha tinha várias vantagens em relação a outros Estados-Membros, como recursos financeiros e humanos consideráveis, e uma vasta burocracia estatal. Em especial para os Estados-Membros mais pequenos, providenciar os recursos necessários para uma Presidência pode ser um desafio - quanto mais lidar simultaneamente com uma pandemia.
Angela Merkel e as crises europeias
A Alemanha trouxe para a mesa de negociações uma outra vantagem considerável: a chanceler Angela Merkel, a mais experiente líder europeia, enfrentou todas as crises que assolaram a UE na última década. Na verdade, a sua liderança segura em muitas dessas crises (desde o falhanço do tratado que visava estabelecer uma Constituição para a Europa, no início do mandato de Merkel, até à crise do euro, a crise migratória, o Brexit e, finalmente, a crise provocada pela pandemia de covid-19 no final do mandato) fez com que ganhasse o apelido de «Chanceler da Crise». Esta experiência tornou Merkel na líder europeia ideal para assumir a Presidência do Conselho num momento crucial em que os Estados-Membros da UE se revelaram incapazes de chegar a uma resposta coordenada para fazer face à pandemia. Além disso, devido ao sistema governamental alemão, que não impõe limites ao número de mandatos de chanceler, Merkel tem estado no poder há mais de dezasseis anos. Embora esta situação seja questionável do ponto de vista da competição democrática, a sua rede extensa de contactos de chefes de Estado e de governo europeus foi uma condição importante para os sucessos negociais da Alemanha durante a Presidência.
Um outro fator foi a Presidência ter ocorrido no último ano do mandato de Merkel. Desta forma, Merkel pôde reagir à nova crise sem o constrangimento de quaisquer preocupações relacionadas com a sua reeleição. Por exemplo, no que constituiu um desenvolvimento notável, Merkel reverteu a sua oposição tradicionalmente forte às obrigações europeias e em maio de 2020 associou-se ao Presidente francês Emmanuel Macron para propor um fundo de recuperação da pandemia23, que incluía a opção de dívida comum. A vasta experiência de gestão de crises de Merkel e a sua posição destacada no cenário europeu fizeram com que a chanceler fosse vista como uma negociadora respeitada e deram-lhe uma forte autoridade em muitas negociações complicadas, em áreas como o Quadro Financeiro Plurianual (QFP) e o fundo de recuperação, o mecanismo de Estado de direito e o novo objetivo climático da UE.
No final, uma grande europeia?
Em 2007, Angela Merkel começou o seu mandato de chanceler no palco europeu com uma Presidência do Conselho igualmente desafiadora, quando o importante projeto europeu de um Tratado Constitucional para a UE tinha sido rejeitado por dois Estados-
-Membros. Merkel conseguiu revitalizar o projeto de integração europeia e a Presidência alemã conduziu a UE para fora da crise. Em 2020, o desafio que a Alemanha enfrentava era ainda maior, uma vez que a pandemia provou ser muito mais imprevisível do que uma crise «meramente» política e ideológica. Merkel assumiu o papel de liderança da UE antes do fim do seu mandato, assumindo de novo o seu papel bem conhecido de «Chanceler da Crise» - e fê-lo com a autoridade e a segurança que lhe são reconhecidas.
De certa forma, Merkel foi a líder ideal para a primeira fase dramática da pandemia. Merkel deve muita da sua popularidade na Alemanha à firmeza durante as crises; dominou a arte de governar no «aqui e agora» e de guiar o seu país e a UE durante as crises. Merkel é muito eficaz a priorizar os assuntos mais urgentes, como se viu no programa da Presidência com a sua forte ênfase no QFP e na recuperação da covid. Gestão de crises é o que Merkel faz melhor. Por outro lado, a sua adaptabilidade também significou abandonar determinados projetos que parecessem já não fazer sentido - por exemplo, o interesse inicial mas rapidamente desvanecido por uma política climática e a mudança de rumo na política de migração de «Wir schaffen das» (podemos fazer isto) em 2015 para um limite superior de facto dos migrantes que chegam - tanto para fins de gestão de crises como de reeleição. Na ausência de uma crise (que foi a maior exceção durante a sua chancelaria), tem sido criticada por não ter uma visão para o seu país ou para a Europa. Sendo uma política essencialmente racional, o seu estilo governativo tem sido reagir no momento e fazer o que é o melhor e mais popular num determinado momento, em vez de seguir um programa político e implementá-lo de forma consistente. Também no palco da UE, Merkel não tem sido seguramente uma visionária «Grande Chanceler Europeia» como Helmut Kohl, por exemplo. A sua abordagem à Europa tem sido mais pragmática - por vezes para melhor, uma vez que tem sido em grande parte a sua tarefa lidar com a conceção defeituosa dos grandes projetos ideológicos europeus dos seus antecessores, tais como a União Monetária ou o espaço Schengen. Mas, por vezes, para pior, uma vez que o projeto europeu teria precisado de um compromisso mais apaixonado da mais poderosa figura de liderança europeia em tempos de crescente euroceticismo, diminuição da solidariedade, e desenvolvimentos iliberais em determinados Estados-Membros da UE.
Tendo desempenhado um papel central em tantas crises europeias, o legado de Merkel está inevitavelmente ligado ao seu desempenho enquanto líder europeia. Começando com uma posição menos popular - em especial na perspetiva dos Estados-Membros do Sul - na área financeira e durante a crise da zona euro, a partir de 2015 começou a encontrar o seu papel europeu. Na sequência do Brexit e da eleição do Presidente norte-americano Donald Trump, Merkel adotou uma postura europeísta na sua habitual orientação mais transatlântica e tornou-se, embora não por escolha própria, uma figura de proa do Ocidente liberal. Junto com o Presidente francês Macron, um europeísta, Merkel encetou um caminho de defesa da integração que culminou com a proposta para o fundo de recuperação da pandemia em maio de 2020. Embora tenha sido um passo forte, chegou muito tarde na longa carreira de Merkel - no final, no seu papel de uma das (se não a) mais poderosas líderes europeias, contribuiu significativamente para o estado de coisas em que a UE se encontra no final do seu mandato. Pela sua parte, não inconsequente, é responsável pelos desenvolvimentos dos últimos dezasseis anos que tornaram necessário um pacote de recuperação deste tipo. Ela pode ter conseguido impedir que a UE se desmoronasse, mas não conseguiu dar novos impulsos ao projeto de integração europeia. Sem dúvida, será recordada como uma grande política europeia, mas com sentimentos mistos. De certa forma, a extraordinária «Presidência de crise» foi um fim digno da sua carreira europeia, marcada por uma sequência de crises e terminando com a mais severa de todas.
Perspetiva: a Alemanha e a Europa depois de Merkel
Porém, ainda não se disse a última palavra acerca do legado de Merkel enquanto chanceler. A pandemia continua a complicar a situação política na Alemanha, onde o ritmo da vacinação foi inicialmente lento e caótico e uma parte considerável da sociedade
demonstra pouca vontade de se vacinar, mesmo depois de a disponibilidade da vacina ter melhorado. Para piorar a situação, a terceira vaga, com altas taxas de infeção, coincidiu com o início da campanha eleitoral para as eleições federais do outono de 2021. Lutas internas no partido de Merkel - a União Democrata-Cristã (CDU) e sua congénere bávara União Social-Cristã (CSU), acerca da nomeação para a liderança partidária e para a sua sucessão - fizeram com que uma governança da crise, no momento em que se encontrava de mãos atadas, se tornasse cada vez mais difícil para Merkel24. Após um pico renovado na sua popularidade durante a primeira vaga de covid, a sua posição de final de mandato e os problemas relacionados começaram a tornar-se evidentes já durante os últimos meses da Presidência alemã do Conselho da UE. A inconsistência da regulamentação da covid-19 e ministros dos estados federais desonestos fizeram-na parecer incaracteristicamente fraca no último ano da sua chancelaria.
Muito do seu legado irá depender do estado do seu partido - e da Alemanha - depois das eleições federais, que muito provavelmente trarão uma nova coligação governativa e, sem dúvida, um novo chanceler. Com as eleições e o esperado fim da pandemia (ou pelo menos um abrandamento substancial, à medida que o ritmo da vacinação aumenta) num futuro próximo, a Alemanha aproxima-se da «hora zero» tanto na política interna como na política europeia. A indústria alemã e a sua estratégia de crescimento baseada nas exportações necessitam urgentemente de reformas depois da longa era Merkel, durante a qual investimentos em inovações sustentáveis para o futuro foram em grande medida negligenciadas em nome da estabilidade. Além disso, os desafios globais nas políticas externa e climática estão a aumentar. A nova coligação governamental e o novo chanceler irão, portanto, defrontar-se com um cenário muito complicado, tanto a nível interno como externo. O novo governo terá de desenvolver uma visão para o futuro da UE a partir de uma perspetiva alemã - algo que Merkel não fez, por estar demasiado preocupada com a gestão de crises durante o seu tempo no poder.
À medida que a Alemanha se aproximava das eleições de setembro, na fase inicial da campanha eleitoral, as atenções viram-se para Os Verdes, que beneficiaram da desordem interna dos democratas-cristãos e lideravam as sondagens recentes25. No entanto, Os Verdes ficaram subsequentemente atrás da CDU/CSU e do Partido Social Democrata (SPD), que registou um aumento inesperado nas sondagens na sequência de vários erros públicos do candidato a chanceler da CDU, Armin Laschet, mergulhando o apoio do partido num mínimo histórico em comparação com a época de Merkel. Os Verdes apresentaram uma proposta de programa eleitoral ambiciosa, incluindo uma abordagem fortemente proativa em relação à UE e uma visão clara para o futuro da Europa. Entre outras coisas, Os Verdes defendem uma república federal europeia como objetivo último da integração europeia, e apoiam uma mudança dos tratados enquanto possível resultado da Conferência sobre o Futuro da Europa26. No que diz respeito à política externa, Os Verdes são muito mais explícitos nas críticas à China e à Rússia do que os democratas-cristãos de Merkel alguma vez foram27. Também o Partido Democrático Liberal (FDP) e A Esquerda apresentaram propostas de programa, ambos apoiando uma revisão dos tratados - ainda que com diferentes objetivos. Os democráticos liberais defendem um Estado federal europeu descentralizado, mas sem uma união de transferências, a que se opõem vigorosamente28. Em contraste, A Esquerda quer uma União mais social e uma redistribuição da riqueza a nível europeu, para além de pretender tornar a UE mais ecológica (embora este último ponto permaneça bastante vago)29. O SPD, atualmente na coligação de governo com os democratas-cristãos, publicou o seu programa oficial no Dia da Europa, ou seja, a 9 de maio de 2021. No que diz respeito à UE, os sociais-democratas querem assegurar-se que o plano de recuperação PGUE se torna um passo permanente no sentido de uma integração e de uma solidariedade europeias mais profundas, e pretende liderar a UE na direção de uma verdadeira união fiscal, económica e social30. Saber se o seu candidato a chanceler, Olaf Scholz (atual ministro das Finanças), caso fosse eleito, seguiria de facto o roteiro traçado no programa elei- toral do partido é, no entanto, questionável.
Os democratas-cristãos, juntamente com a Alternativa para a Alemanha (AfD), foram os últimos a publicar o seu manifesto eleitoral. O manifesto eleitoral da CDU/CSU apresenta postulados próximos do fdp em política fiscal e uma coligação entre os dois partidos gostaria de se opor a qualquer mutualização da dívida europeia, bem como a uma política fiscal mais flexível. Esta coligação «negra-amarela» inclinar-se-ia para a desregulamentação e reduziria potencialmente o ritmo da integração económica da UE31. Outro cenário possível seria uma coligação da CDU/CSU e d’Os Verdes, que poderia utilizar a dinâmica atual por detrás das iniciativas de política climática e pressionar para uma maior capacidade de ação da UE no domínio da política externa. No entanto, caso a CDU/CSU não permaneça no governo, haverá provavelmente uma mudança mais substancial na política europeia da Alemanha. Uma coligação entre Os Verdes, o SPD e A Esquerda iniciará quase certamente uma mudança mais forte no sentido de políticas sociais e climáticas, incluindo um salário mínimo europeu e um aumento do investimento público. No entanto, as posições de política externa d’A Esquerda, bem como os números relativamente baixos das sondagens do partido, podem impossibilitar uma tal coligação32.
A necessidade de uma nova abordagem na política alemã da UE é bastante clara em todos os programas eleitorais, refletindo uma mudança no estado de espírito geral na Alemanha: numa sondagem de maio de 2021, um novo recorde de dois terços dos inquiridos expressou o desejo de uma mudança substancial na política do país e mais de 60% desejavam uma nova coligação governamental33. Embora o resultado das eleições seja difícil de prever, é quase certo que as eleições trarão mudanças no panorama político alemão. Especialmente Os Verdes, com a sua jovem candidata a chanceler Annalena Baerbock, representam uma ideia nova e mais progressista da Alemanha e do papel do país na UE34. Por outro lado, o fdp também beneficiou do declínio dos dois principais partidos, o SPD e a CDU/CSU, ao mesmo tempo que ganhou aprovação dos elei- tores por causa das suas críticas à gestão caótica da pandemia por parte do Governo durante o inverno. É interessante notar que a AfD não registou até agora ganhos substanciais nas sondagens. Começando inicialmente muito atrás d’Os Verdes e da CDU/CSU, o SPD, com o candidato a chanceler Scholz, apanhou e está agora a liderar as sondagens. O seu programa eleitoral é mais verde e mais à esquerda no espetro político face a anos anteriores, mas permanece menos concreto em relação à sua política da UE do que Os Verdes. Os democratas-cristãos continuarão muito provavelmente a desempenhar um papel central na política alemã, mas o partido necessita urgentemente de uma reconfiguração. A eleição do conservador Armin Laschet como novo líder do par- tido marca a continuidade com a era Merkel, mas não serve necessariamente os interesses do partido a longo prazo - ou mesmo na campanha eleitoral, como demonstra a sua crescente impopularidade. O forte enfoque no statu quo tem funcionado bem para a Alemanha nos anos Merkel, mas o país está agora pronto para um novo começo, o que Laschet não representa. Para os parceiros europeus, uma mudança no equilíbrio de poder do governo federal alemão pode abrir novas janelas de oportunidade para uma política europeia mais inovadora, porém, possivelmente à custa da grande estabilidade política da era Merkel.