Recentemente, Mike Pompeo afiançou que a rivalidade sino-americana é consideravelmente mais perigosa do que a competição que opôs os Estados Unidos à União Soviética durante a Guerra Fria1. A observação do antigo secretário de Estado indica que longe vão os tempos em que se considerava que o engagement com a República Popular da China (RPC) abriria este país ao pluralismo, à democratização e ao seu «surgimento pacífico» na cena mundial. Assente num amplo consenso bipartidário em política externa, a estratégia clintoniana de engagement permaneceu - ainda que com pequenas nuances e variações - virtualmente inalterada durante as administrações de Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama2. Esta abordagem conduziu os americanos - e os europeus - à conclusão de que a China teria de ser transformada num stakeholder na ordem liberal. Em vez de retardarem a emergência da China, americanos e europeus aceleraram-na.
A desagregação da União Soviética fez implodir o consenso bipartidário na política externa americana que perdurou ao longo das décadas de Guerra Fria. Concebendo os Estados Unidos como a «nação indispensável», Bill Clinton molda um novo consenso com o intuito de alargar a «comunidade de nações livres» e, assim, tornar os Estados Unidos «mais seguros, prósperos e influentes»3. Esse novo consenso postulava que a globalização, entendida principalmente em termos da liberalização dos mercados e da extensão do comércio livre, gerava mudanças sociais que fomentavam a democracia e, nessa medida, consolidavam a segurança nacional americana. Em resultado desta leitura, a Rússia e a China, caracterizadas pelo Presidente Clinton como os «nossos ex-adversários», seriam absorvidas pelo «sistema internacional como nações abertas, prósperas e estáveis»4. Com efeito, o engagement com a RPC, incluindo os investimentos americanos no mercado chinês, promoveria a emergência da democracia na própria China. Na medida em que interesses e princípios coincidiam, nenhuma contradição existia entre a promoção da democracia e a satisfação dos interesses vitais da América e do Ocidente, em geral5.
A Presidência de Donald Trump produz uma volte-face na política chinesa dos Estados Unidos. Inicialmente centrada nas questões comerciais, particularmente nos elevadíssimos desequilíbrios do défice comercial externo, a Administração republicana evolui para uma posição mais confrontacional, passando por importantes iniciativas de segurança, incluindo a recuperação do Quad6. Quando Trump abandona a Casa Branca, a rivalidade entre os países era de natureza global. Frequentemente tida como excecional, essa orientação espelhava as novas realidades internacionais e pretendia responder à crescente assertividade do poderio chinês. A abordagem de Trump expressa, portanto, mudanças estruturais no sistema internacional e não apenas os caprichos de um presidente que rompera com a «normalidade» do pós-Guerra Fria, que seria rapidamente reposta. Com efeito, o primeiro ano da política chinesa de Joe Biden - o tema deste artigo - demonstra uma ampla continuidade com as linhas mestras da política de Trump relativamente a Pequim.
A viragem de Trump
Coube a Donald Trump desfazer o «consenso da China» e romper com as expetativas benignas subjacentes ao engagement. Decidido a reverter o «declínio» nacional e em «tornar a América novamente grande», delineou as suas prioridades de política externa no discurso de lançamento da sua candidatura à nomeação presidencial do Partido Republicano: o fim da imigração ilegal, a revisão ou abandono dos acordos de livre comércio, a reversão da desindustrialização e a recuperação dos postos de trabalho americanos, o combate ao terrorismo e uma política exterior liberta do tradicional elitismo político-cultural do establishment entrincheirado nas universidades, think tanks e agências federais7.
Talvez inesperadamente, Trump não culpabilizava a China pela devastação industrial associada à globalização, pois considerava que o país simplesmente prosseguia os seus interesses vitais. Responsabiliza Obama por não ter revisto ou abandonado os acordos internacionais «injustos» da década de 1990 que provocaram o declínio americano e, ao mesmo tempo, denuncia os obstáculos à entrada das empresas americanas no mercado chinês: as barreiras e práticas discriminatórias, as transferências forçadas de tecnologia, o furto da propriedade intelectual e a ausência de reformas no setor estatal. Setenta anos após a abolição dos «tratados desiguais» impostos à China durante o «século da humilhação», um presidente americano clama contra «tratados injustos» e exige, antes de mais, reciprocidade no âmbito do comércio bilateral.
Previsivelmente, no terceiro dia do seu mandato, Trump abandona as conversações em volta da Parceria Transpacífico (TPP), cumprindo assim uma promessa de campanha, feita a 6 de junho de 2016, quando caracteriza a proposta como «outro desastre impulsionado por interesses especiais que desejam estuprar o nosso país, apenas um estupro contínuo do nosso país. É o que é isso. É uma palavra dura: é uma violação do nosso país»8. Mas a revisão das relações sino-americanas não se restringia ao comércio internacional. Dias depois de derrotar Hillary Clinton nas eleições de novembro de 2016, Trump aceita uma chamada telefónica de Tsai Ing-wen, Presidente da Formosa, tratando-a como um chefe de Estado e não como a líder de uma «província chinesa»9. No seguimento da normalização das relações entre a China e os Estados Unidos, em 1979, nenhum outro presidente falara diretamente com o mais alto responsável taiwanês. Pequim mal poderia ignorar tão explícito sinal, até porque, durante a campanha, Trump afirmara não compreender a necessidade de manter a política da «China única», a menos que fosse viável negociar outros assuntos, inclusive comerciais, com o Governo comunista10. Com efeito, admitia a possibilidade de abandonar o statu quo que orientava a política de Washington desde a histórica reunião entre Richard Nixon e Mao Tsé-Tung, em fevereiro de 197211.
A assertividade de Trump espelha o Zeitgeist americano, identificado num inquérito da Pew Research realizado em agosto de 2019. A pesquisa revelava que 60% da população deixara de ter uma perceção benigna da China e 24% indicava que o país era a maior ameaça enfrentada pelos Estados Unidos12. A mudança será visível aquando do lançamento da Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América, em dezembro de 2017, que define a RPC como um «concorrente» e uma «potência revisionista»13. Sem margem para ambiguidade, o documento proclama que
«a China e a Rússia desafiam o poder, a influência e os interesses americanos numa tentativa de minar a segurança e a prosperidade americanas. Estão determinados a tornar as economias menos livres e menos justas, aumentar as suas forças armadas e controlar informações e dados para reprimir as suas sociedades e expandir a sua influência»14.
A emergência da China exige, pois, uma resposta estratégica que passa pela reconfiguração das alianças e a securitização das relações comerciais e tecnocientíficas.
A Administração Biden evita descontinuidades com a política chinesa trumpiana. A este propósito, à saída da cimeira do Alasca, o secretário de Estado Antony Blinken sumarizou a perspetiva dos novos governantes nos seguintes termos: a «nossa relação com a China será competitiva onde deve ser, colaborativa onde pode ser, adversativa onde terá de ser»15. Um ano depois da tomada de posse de Biden, sobressai a rivalidade e o confronto, mas escasseia a cooperação. Há, por outro lado, uma nítida tensão entre o confronto que caracterizou o relacionamento sino-americano ao longo do último ano e a preferência da Administração Biden por alianças e pelo multilateralismo. Sendo certo que o rumo do relacionamento não será determinado exclusivamente pela parte americana, dir-se-á que, com o avançar do tempo, a política chinesa de Biden tornar-se-á menos conflituosa ou, alternativamente, mais unilateral.
A caminho de Anchorage
Quando Joe Biden assume a presidência dos Estados Unidos, não era líquido que optasse pela manutenção das linhas mestras da política chinesa de Trump16. Até porque, durante a campanha eleitoral, o candidato democrata expressara reservas sobre a leitura feita pelo seu adversário quanto ao desafio colocado pela RPC. Por exemplo, em maio de 2019, Biden critica a guerra comercial de Donald Trump, afirmando que a China, em resultado do seu sistema político, não era «concorrência para nós»17. Não obstante as ambiguidades da campanha, no dia em que Biden se instala na Sala Oval, Antony Blinken e Janet Yellen - indigitados para os cargos de secretário de Estado e secretária do Tesouro - indicam que o Presidente iria prosseguir um caminho multilateral, em articulação próxima com os aliados asiáticos e europeus18.
Biden sinaliza que não se afastará das linhas gerais da política chinesa de Trump e adia a sua primeira conversa telefónica com Xi Jinping. Em 10 de fevereiro, quando finalmente realiza a chamada, expressa as suas «profundas preocupações com as práticas económicas coercivas e injustas de Pequim, a repressão em Hong Kong, os abusos dos direitos humanos em Xinjiang e as ações cada vez mais assertivas na região, inclusive em relação a Taiwan»19. O Presidente chinês responde que, «embora os dois lados possam divergir em algumas questões, é crucial mostrar respeito mútuo, tratamento igual e lidar adequadamente com as diferenças e geri-las de forma construtiva», acrescentando que a questão de «Taiwan e assuntos relacionados com Hong Kong, Xinjiang, etc., são assuntos internos da China e dizem respeito à soberania e integridade territorial da China, e o lado americano deve respeitar os interesses centrais da China e agir com prudência»20. Delimitaram-se, deste modo, os parâmetros da relação bilateral para os anos mais próximos.
Com efeito, as primeiras indicações quanto às linhas mestras da política chinesa da nova Administração emergem com a publicação da Orientação Estratégica de Segurança Nacional Interina, um «roteiro» provisório que aponta três prioridades: a proteção da segurança do povo americano, a expansão das oportunidades e da prosperidade económica e a defesa dos valores democráticos que sustentam o estilo de vida americano. À semelhança de Trump, Biden identifica a China, a Rússia, a Coreia do Norte e o Irão como adversários geoestratégicos. Desaparece do documento a ingenuidade dos anos Obama quanto à «construção de parcerias mais profundas e eficazes com outros centros de influência», como a China e a Rússia21. Em contrapartida, constata-se que a China se tornara mais «assertiva» e que Pequim e Moscovo definiam estratégias «para nos impedir de defender os nossos interesses, e os dos nossos aliados, em todo o mundo»22. Para diferenciar Biden do seu antecessor, o «roteiro» proclama que «a América está de volta» e assegura que o novo Presidente reafirmará a liderança internacional dos Estados Unidos por meio do reforço das alianças e do multilateralismo23. Relegada a uma prioridade secundária pela Estratégia de Segurança Nacional de Trump, a defesa da democracia e dos direitos humanos surge como um dos pilares estruturantes da política chinesa de Biden. Porque passa a ser entendida como uma contenda entre a democracia e o autoritarismo, a rivalidade sino-americana assume contornos universais.
Traçadas as linhas de orientação estratégica da nova Administração, iniciam-se as consultas com os aliados asiáticos antes da realização do primeiro encontro de alto nível com a China, marcado para os dias 18 e 19 de março de 2021, em Anchorage, no Alasca. Nas vésperas da deslocação oficial à Ásia, os secretários de Estado e da Defesa publicam um esclarecedor artigo no The Washington Post, no qual afirmam que tencionam levar ao Indo-Pacífico a garantia de que
«os Estados Unidos estão agora a dar um grande impulso para revitalizar os nossos laços com amigos e parceiros - tanto nas relações bilaterais como nas instituições multilaterais - e para renovar o compromisso com os nossos objetivos, valores e responsabilidades compartilhadas»24.
Reiteram que as alianças são «multiplicadoras de força» e, por isso, seria «um grande erro estratégico negligenciar essas relações»25. Alegando a existência de um «debate fundamental» sobre «se a democracia ou a autocracia oferece o melhor caminho», apelam à unidade entre os países democráticos e salientam que a defesa dos valores pluralistas far-se-á «onde quer que sejam desafiados»26. Dado que o «Indo-Pacífico é cada vez mais o centro da geopolítica global», concluem que é do interesse americano que a região «seja livre e aberta, ancorada no respeito pelos direitos humanos, a democracia e o Estado de direito»27.
Não menos importante, Blinken e Austin observam que alguns Estados «procuram desafiar a ordem internacional» e que «a China em particular está disposta a usar a coerção para conseguir o que pretende»28. Perante este desafio aos alicerces da ordem internacional, sustentam que a China será responsabilizada por «violar os direitos humanos em Xinjiang e no Tibete, corroer sistematicamente a autonomia de Hong Kong, abalar a democracia em Taiwan e afirmar reivindicações marítimas no mar do Sul da China que violam o Direito Internacional»29. A publicação do artigo coincide com declarações prestadas no Congresso pelo comandante do Pacífico, o almirante Phil Davidson, avisando que a China poderia tentar assumir o controlo de Taiwan em seis anos porque ambiciona «suplantar os Estados Unidos e o nosso papel de liderança na ordem internacional baseada em regras, que eles há muito dizem que querem fazer até 2050»30. Ficava assim claro que, na ótica da nova Administração, a China representava um desafio global à ordem internacional liberal criada pelos Estados Unidos e pelos seus aliados europeus e asiáticos na sequência da Segunda Guerra Mundial.
Escassos dias antes da reunião de Anchorage, o oficioso Global Times publica um editorial a admoestar Washington por usar os aliados do Indo-Pacífico como «baluartes» contra a China e a desvalorizar as visitas de Blinken e Austin à Coreia do Sul e ao Japão31. Afirma que «o que Washington vê como uma ameaça real é o crescente desenvolvimento económico da China», acrescentando que os americanos estavam «iludidos» ao pensarem que «os problemas dos Estados Unidos eram principalmente culpa da China, e que a contenção e o decoupling da China restauraria o domínio absoluto dos Estados Unidos no mundo»32. Insiste que os verdadeiros problemas dos Estados Unidos resultam do «declínio da sua competitividade na era da globalização», da circunstância de estarem «demasiadamente viciados na hegemonia militar e financeira» e da diminuição da «celeridade na inovação e ao facto de os seus trabalhadores - como um todo - se estarem a tornar preguiçosos»33. Concluía que o país «enfrentará problemas no longo prazo se continuar assim»; isto é, se não arrepiar caminho no relacionamento com Pequim34.
A 17 de março de 2021, um dia antes do início dos trabalhos em Anchorage, interrogado sobre o propósito das visitas ao Japão e à Coreia do Sul, Lloyd Austin diz que as consultas se inserem num esforço mais vasto que visa «assegurar que possamos ter as capacidades e os planos operacionais para apresentar uma dissuasão credível à China ou a qualquer outro país que queira desafiar os Estados Unidos»35. Blinken, por sua vez, critica a agressão de Pequim e instiga Seul e Tóquio a trabalharem com Washington de modo a prevenir uma «perigosa erosão da democracia» na região36. Dito de forma diferente, sugeria que a expansão do poderio chinês acarretava consigo o perigo da lógica de bandwagoning; isto é, de alguns aliados sucumbirem à tentação de se aliarem com a potência emergente de forma a maximizar ganhos37. A mensagem transmitida por Blinken e Austin era inequívoca: Washington entendia a sua rede de alianças no Indo-Pacífico como uma mais-valia na competição com Pequim e, por conseguinte, tencionava reforçá-las a fim de solidificar uma coligação suficientemente coesa para contrariar a crescente afirmação do poderio chinês.
No mesmo dia em que Blinken e Austin comunicam as intenções da nova Administração, Washington impõe novas sanções punitivas a 24 dirigentes chineses diretamente ligados à repressão do movimento pró-democracia em Hong Kong38. Instituições financeiras estrangeiras que com eles realizam transações passariam a estar sujeitas a sanções. Também nesse mesmo dia, invocando preocupações relativas à segurança nacional, o regulador das telecomunicações - a Federal Communications Commission (FCC) - abre uma averiguação a fim de determinar se as licenças comerciais da China Unicom Americas, da Pacific Networks e da ComNet deveriam ser revogadas. Já antes, em dezembro de 2020, a fcc iniciara um processo semelhante destinado a revogar a autorização da China Telecom (Americas) - a maior empresa estatal chinesa de telecomunicações - para operar no mercado americano, atribuída em 2007. Confrontado com estes reveses, o embaixador chinês em Washington, Cui Tiankai, adverte que a «pressão unilateral e as sanções apenas levam a um beco sem saída» e apela à «comunicação bilateral construtiva» em Anchorage39.
Mas as profundas divergências entre Washington e Pequim provocam recriminações mútuas durante a primeira sessão da cimeira do Alasca. Com efeito, as partes trouxeram para o encontro expetativas largamente irreconciliáveis. Antes da reunião, Jake Sullivan, diretor do Conselho de Segurança Nacional, admite que a reunião permitia-lhe dirigir-se a Pequim a partir de «uma posição de força», mas insiste que não se tratava de retomar um processo de diálogo com a parte chinesa40. Com efeito, Blinken e Sullivan entendem a cimeira como um one-off que lhes proporciona uma oportunidade de confrontar os chineses com as preocupações americanas referentes ao retrocesso da democracia em Hong Kong, aos abusos dos direitos humanos em Xinjiang, às tensões no estreito de Taiwan, à coerção económica contra a Austrália e às incursões chinesas nas águas disputadas com o Japão. Eram estes os assuntos que teriam de ser cabalmente esclarecidos antes que se pudesse equacionar melhorias na relação bilateral.
O monumental fosso de expectativas quanto à natureza da cimeira seria igualmente evidenciado pelo porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, Zhao Lijian. Este afirma que, «a convite dos Estados Unidos», a China «terá um diálogo estratégico de alto nível com o lado americano nos próximos dias» tendente a definir o caminho para retomar o engagement41. Zhao explicitou que o entendimento do seu país quanto ao significado de «laços normais» exigia que «os dois lados se devem respeitar e tratar como iguais, melhorar o entendimento mútuo por meio do diálogo, administrar e dissolver as diferenças e trazer as relações China-Estados Unidos de volta ao caminho certo»42. Representada em Anchorage por Yang Jiechi e Wang Yi, Pequim considerava que o encontro proporcionaria uma oportunidade para as partes redefinirem o seu relacionamento bilateral e, em consequência, articularem os contornos de uma nova ordem internacional coincidente com os valores e os interesses essenciais da RPC. Enquanto Pequim solicitava uma ampla redefinição das relações bilaterais, Washington retorquia que qualquer eventual mudança pressupunha alterações ao comportamento chinês porque, na ótica de Blinken, a atuação de Pequim «ameaça a ordem baseada em regras que mantêm a estabilidade global»43. Uma vez que na ausência dessas regras o mundo seria «muito mais violento e instável», as preocupações levantadas pelos Estados Unidos não eram «meramente internas»; isto é, assuntos exclusivos da soberania chinesa44. Se - pelo menos formalmente - os líderes chineses esperavam restaurar a «normalidade» no relacionamento bilateral das décadas anteriores, era patente que as visões chinesa e americana quanto à ordem internacional não coincidiam.
De Anchorage a Cabul
Durante a sessão de abertura da Cimeira de Anchorage, no dia 18 de março, Blinken deixava claro que Administração Biden considerava a China como o seu maior rival geopolítico e voltava a manifestar as suas «profundas preocupações com as ações da China, incluindo em Xinjiang, Hong Kong, Taiwan, ataques cibernéticos aos Estados Unidos, coerção económica contra os nossos aliados»45. Em resposta, Yang Jiechi acusa os Estados Unidos de «condescendência» e de usarem o seu poderio militar e financeiro para obstruir os fluxos comerciais e incitar o sentimento anti-China46. Em resumo, diz que «não acreditamos em invadir pelo uso da força, ou derrubar outros regimes por vários meios, ou massacrar pessoas de outros países, porque tudo isso só causaria turbulência e instabilidade neste mundo»47. Assim se condenava a política externa hegemónica dos Estados Unidos do período de unipolaridade pós-Guerra Fria. Por último, a delegação chinesa invoca as manifestações do Black Lives Matter e o legado do «racismo institucional», abertamente assumido pela Administração Biden, para apontar a hipocrisia americana no campo dos direitos humanos48. Genericamente, são admitidas discordâncias fundamentais em relação a Hong Kong, Xinjiang, Tibete e Taiwan, mas as partes também identificam algumas áreas em que se admitia prosseguir uma cooperação limitada, nomeadamente no tocante às alterações climáticas e aos desafios geopolíticos relacionados com o Irão, a Coreia do Norte, Mianmar e o Afeganistão49.
As tensões sino-americanas agudizam-se na sequência da calamitosa retirada das forças ocidentais do Afeganistão. Conduzida na ausência de consultas substanciais com os aliados europeus e asiáticos, a evacuação do contingente americano não podia deixar de gerar tremendas desconfianças junto dos aliados, particularmente de Taiwan. No decorrer do caótico processo afegão, o oficioso Global Times avisa os taiwaneses dos perigos inerentes à sua dependência em relação a Washington. Os editorialistas argumentam que Tsai Ing-wen e os «separatistas» que a acompanham «deveriam estar nervosos e ter um pressentimento sinistro. Deveriam, no seu íntimo, ter sabido que os Estados Unidos não são confiáveis», concluindo que os acontecimentos no Afeganistão devem levar os dirigentes de Taiwan a «perceber que assim que rebente uma guerra no estreito, a defesa da ilha colapsará em horas e os militares dos Estados Unidos não ajudarão»50. Abalada a credibilidade das garantias de segurança americanas, Blinken, chamado ao Congresso para esclarecer a retirada afegã, vê-se forçado a reiterar os tradicionais compromissos americanos inscritos no Taiwan Relations Act de 197951.
Pouco depois, em 15 de setembro de 2021, Joe Biden relança o «pivô para a Ásia» através de um novo pacto de segurança no Indo-Pacífico - o Aukus -, englobando os Estados Unidos, o Reino Unido e uma Austrália fustigada pelo constante bullying chinês. Na cerimónia virtual em que participam os primeiros-ministros britânico Boris Johnson e australiano Scott Morrison, o Presidente americano afirma que o Aukus configura uma aposta «na nossa maior fonte de força - as nossas alianças», que diz pretender atualizar de forma a «melhor enfrentar as ameaças de hoje e de amanhã» e a «conectar de formas novas» os aliados dos Estados Unidos52. No Parlamento britânico, Boris Johnson reconhece tratar-se de um «novo pilar de uma estratégia que demonstra o compromisso de gerações da Grã-Bretanha com a segurança do Indo-Pacífico»53. Morrison, por sua vez, anuncia estar disponível para discutir a iniciativa com Xi Jinping, mas a adesão ao pacto significava que Camberra tomara o partido dos Estados Unidos contra a China no Indo-Pacífico, abandonando, assim, a estratégia de hedge que levara Kevin Rudd a retirar o país do Quad em 200854.
Nenhum dos três líderes explicitou a natureza das «ameaças» que justificam a criação do pacto. Dir-se-á que não era necessário fazê-lo porque era evidente que o Aukus consubstanciava uma resposta à assertividade da RPC e ao incremento das suas capacidades militares. Em resultado do acordo, a partir de 2040, Camberra terá uma frota de submarinos nucleares para patrulhar a região, incluindo o mar do Sul da China, onde Pequim reivindica uma vasta área dentro da «linha de nove traços» que unilateralmente demarcara55. No âmbito do pacto, prevê-se a partilha de conhecimento e inovação em áreas como sejam a inteligência artificial, a cibernética e a computação quântica. Há, pois, a consciência de que a rivalidade com a China passa pela concorrência técnico-científica que, aliás, se vislumbra nos projetos e nas prioridades da Belt and Road Iniciative.
A reação chinesa ao pacto não tardou. Pela voz de Zhao Lijian, o Ministério dos Negócios Estrangeiros declara que o fornecimento de tecnologia nuclear à Austrália era «altamente irresponsável», até porque fora o país que provocara o colapso das relações bilaterais56. Zhao afirma também que o Aukus «mina seriamente a paz e a estabilidade regionais, agrava a corrida às armas e prejudica os esforços internacionais de não proliferação»57. No dia seguinte, o Ministério do Comércio da China comunicava que iria solicitar a adesão ao Acordo Abrangente e Progressivo para Parceria Transpacífico (CPTPP), constituído por 11 países na sequência do abandono da TTP por Donald Trump58. Depois de ter aderido à Parceria Económica Regional Abrangente (RCEP), Pequim sinaliza, desta forma, a sua determinação em atrair os aliados dos Estados Unidos para a sua órbita geoestratégica e em fomentar coligações para disputar a liderança global de Washington59.
O Livro Branco de Defesa de 2019 descreve o Exército de Libertação Popular como «uma força firme em prol da paz mundial, da estabilidade e da construção de uma comunidade de destino comum para a humanidade»60. Enfatizando as intenções benignas do país, a caracterização visa tranquilizar os Estados vizinhos receosos do crescimento do poderio militar chinês. Em resposta a estas realidades e anseios, a Administração Trump formulou uma estratégia para o Indo-Pacífico que define a RPC como uma potência «revisionista» que não defende os princípios fundamentais da ordem regional61. É justamente neste quadro que se recupera o Quad, entendido como um componente de uma estratégia mais vasta que congrega os Estados democráticos da região sob a liderança de Washington para responder a um desafio comum: lidar com a liderança económica da China na região e, ao mesmo tempo, resistir à sua assertividade geoestratégica.
Na Cimeira da ASEAN de 2017, Malcolm Turnbull, Shinz¯o Abe, Narendra Modi e Donald Trump acordaram em retomar o diálogo quadrilateral. A assertividade de Xi Jinping, as rivalidades no mar do Sul da China e o uso da Belt and Road Initiative para consolidar posições em países vizinhos impulsionam o renascimento do Quad de modo a salvaguardar os valores políticos comuns e a conservar a ordem regional. Porém, a principal razão que explica a reativação do Quad prende-se com a mudança de orientação definida pela Estratégia de Segurança Nacional de Trump, que apela ao «aumento da cooperação quadrilateral com o Japão, a Austrália e a Índia»62. Esta decisão de voltar a «engajar» com a região ocorreu depois de Trump abandonar a Parceria Transpacífico, uma decisão que suscitou dúvidas substanciais quanto ao compromisso de Washington com a ordem regional63. Independentemente das ambiguidades, dos avanços e dos recuos, o incremento da cooperação quadrilateral reflete as profundas alterações no ambiente estratégico vivido no Indo-Pacífico.
Taiwan: o perigo principal
Previsivelmente, Pequim utilizou as dificuldades enfrentadas pela Administração Biden no Afeganistão para minar a credibilidade do rival no Indo-Pacífico e, em particular, junto do Governo da Formosa. Dir-se-á que o Indo-Pacífico é hoje a mais perigosa região do planeta, sendo o mar do Sul da China e Taiwan os locais onde os riscos de um confronto militar com a China são mais patentes. Designando Taiwan como uma «província renegada», o Livro Branco de Defesa (A Defesa Nacional da China numa Nova Era) de 2019 afirma que «não fazemos promessas de renunciar ao uso da força, reservando a opção de tomar todas as medidas necessárias» para impedir a eventual independência do território64. Esta componente militar do «Sonho Chinês» de Xi Jinping ficou cabalmente expressa no documento, em que se intimava o Governo de Taipé, chefiado pelo Partido Democrático Progressista, a não quebrar o Consenso de 1992 e o princípio de «uma China única» nele consagrado65. Acusa-se Taiwan de preconizar uma independência gradual - uma independência de jure - e de intensificar a «hostilidade e o confronto» e de recorrer «à proteção da influência estrangeira». Em consequência, conclui-se que as «forças separatistas [taiwanesas] continuam a ser a ameaça mais imediata e grave para a paz e a estabilidade no estreito de Taiwan e a maior barreira que impede a reunificação pacífica do país»66. Quanto à resolução da contenda que remonta à derrota dos «nacionalistas» de Chiang Kai-shek em 1949, o documento estipula que «a reunificação completa do país é do interesse fundamental da nação chinesa e é essencial para a realização do rejuvenescimento nacional», ou seja, para cumprir a ambição de Xi e do Partido Comunista Chinês (PCC) de transformar a China na maior das potências mundiais.
Com efeito, este projeto de «rejuvenescimento nacional» articulado por Xi permanecerá incompleto a menos que Pequim consiga concretizar a «reunificação» até 2049, ano do centenário da proclamação da República Popular. A fim de assegurar este objetivo, e com o intuito de reforçar a legitimidade do regime comunista através da mobilização do nacionalismo, Xi tem intensificado a pressão militar sobre Taipé através do desenvolvimento de um arsenal de mísseis capazes de atingir a ilha, de incursões aéreas e de exercícios navais que procuram intimidar as autoridades da Formosa. A nível internacional, a influência diplomática e económica da RPC tem sido implacavelmente empregue para isolar a ilha. Todavia, com o passar do tempo, e à medida que os taiwaneses desenvolvem uma identidade distinta, o sentimento independentista aprofunda-se e torna a reunificação crescentemente problemática.
O inegável sucesso económico e político da Formosa refuta as previsões do PCC quanto à impossibilidade da existência de uma sociedade capitalista e democrática em solo chinês; isto é, Taiwan confirma que há outro caminho para além do modelo de desenvolvimento traçado pelo PCC. Ano após ano torna-se mais difícil alegar que a democracia taiwanesa carece de legitimidade, particularmente quando Pequim anula as liberdades consagradas no estatuto especial atribuído a Hong Kong no âmbito do acordo de transferência de soberania, o modelo que seria estendido à Formosa após a eventual reunificação. Daí que a repressão ordenada por Xi em Hong Kong aumente a perceção de vulnerabilidade em Taipé e acentue o distanciamento entre os dois lados do estreito. Enquanto Pequim enquadra a questão de Taiwan em termos de separatismo, o ceticismo dos taiwaneses quanto à viabilidade do modelo de «um país, dois sistemas» aprofunda-se durante os primeiros meses de 202067.
Contrariando as expetativas de Pequim, a interpenetração económica entre Taiwan e a RPC das últimas décadas não aproximou as partes. Taiwan é hoje um elo importante nas cadeias de valor internacionais e a sua integração forçada na República Popular não pode ser concretizada a menos que Pequim esteja preparada para sofrer significativas perturbações económicas e isolamento diplomático. Atendendo às opções limitadas disponíveis, as autoridades comunistas não abandonam a sua retórica beligerante e a pressão militar. Incapaz de assegurar a unificação, exceto pelo uso da força, Xi pode sucumbir à tentação de invadir a ilha se os Estados Unidos sinalizarem que se absterão de auxiliar Taiwan. Evitar a guerra exige, pois, que Washington mantenha uma postura estratégica robusta na região, particularmente no mar do Sul da China e no mar do Leste da China, onde a assertividade chinesa, se não for firmemente combatida, levará Pequim a concluir que um ataque militar à Formosa não acarretará custos elevados.
As manobras intimidatórias estiveram em evidência no fim de semana em que a RPC celebrou o aniversário da sua fundação. No dia 1 de outubro, Pequim ordenou a primeira de uma série de incursões aéreas na zona de identificação de defesa aérea (ZIDA) de Taiwan. Confrontado com a investida militar, o Departamento de Estado americano emitiu um comunicado em que se afirma que os Estados Unidos «estão muito preocupados» com as manobras «provocatórias» de Pequim, caracterizando-as como uma ação «desestabilizadora, que corre o risco de erros de cálculo e mina a paz e a estabilidade regionais»68. Apela-se ao fim da «pressão militar, diplomática e económica e da coerção» contra a ilha, acrescentando que «manteremos os nossos compromissos» e «continuaremos a ajudar Taiwan a manter uma capacidade de autodefesa suficiente»69. Embora não exista um tratado de defesa bilateral com Taipé, Washington reitera que os compromissos consagrados no Taiwan Relations Act permanecem «sólidos como uma rocha». Aliás, já em março de 2021, Antony Blinken expressara preocupação com a assertividade da RPC em relação à Formosa, avisando que seria um «erro grave» se alguma potência agisse para modificar o statu quo no estreito de Taiwan70.
Particularmente incisivo, o comunicado do Departamento de Estado causa profundo desagrado em Pequim. As autoridades comunistas respondem por meio de um editorial no Global Times, em que se afirma que a expressão «sólidos como uma rocha» poderia «enganar e apaziguar as forças radicais na ilha de Taiwan, mas nunca pode deter» Pequim, que «continuará resolutamente a fortalecer a sua preparação militar para obter uma influência decisiva e avassaladora para finalmente resolver a questão de Taiwan»71. Explicitada esta determinação, o editorial aconselha os habitantes da ilha a «não acreditarem na promessa “sólida como uma rocha” dos Estados Unidos, porque Washington jamais lutará até à morte com a China pela secessão da ilha»72. Na ótica dos articulistas, os Estados Unidos apenas «pretendem criar o maior obstáculo à ascensão da China, jogando a “carta de Taiwan”, mas esta não é a carta de vida ou morte que os Estados Unidos defenderão independentemente dos custos e das vidas»73. Mais uma vez, lançava-se a suspeita quanto à reliability das garantias de segurança de Washington, contrastada com a vontade férrea de Pequim de reunificar o país.
No clima de incerteza que emerge após a retirada do Afeganistão, era necessário deixar claro que uma investida militar contra a Formosa poderia desencadear uma catastrófica guerra regional. No seguimento da débacle afegã, a credibilidade dos Estados Unidos como aliado - e, sobretudo, as suas garantias de segurança - não se coadunavam com eventuais hesitações e ambiguidades no estreito de Taiwan. Ao mesmo tempo, a dureza da posição americana indica que as tentativas de Biden de apaziguar Pequim - durante um telefonema com Xi reafirma a política da «China única» e no discurso proferido na Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro de 2021 faz uma veemente rejeição de uma nova Guerra Fria - não surtiram efeito. A confirmar esse insucesso, um dia depois da publicação do comunicado do Departamento de Estado, um número ainda maior de caças e bombardeiros, alguns dos quais com capacidade nuclear, penetraram a ZIDA taiwanesa.
Mantém-se, portanto, o modus vivendi no estreito porque as partes não vislumbram uma alternativa que possa salvaguardar o seu prestígio e credibilidade. Xi ordenará a invasão da ilha se os responsáveis taiwaneses declararem a independência, mesmo que tal decisão signifique a guerra com os Estados Unidos. Eis a linha vermelha estabelecida por Pequim que em circunstância alguma poderá ser ultrapassada. É certo que Xi pode sucumbir à tentação de invadir se os Estados Unidos sinalizarem alguma relutância quanto à defesa da ilha. Evitar a guerra exige, portanto, que os americanos mantenham uma postura estratégica credível, complementada por aliados regionais preparados para colmatar a assertividade e as manobras intimidatórias chinesas. As alianças - o Quad, o Aukus, bem como as bilaterais com a Austrália, o Japão e a Coreia do Sul - destinam-se a convencer Pequim de que uma investida militar na Formosa acarretará uma resposta americana. Todavia, a China não pode diminuir as pressões no estreito sob pena de comprometer o prestígio e a credibilidade das autoridades comunistas. Eis uma dinâmica repleta de perigos, pois a possibilidade de erros de cálculo que, inadvertidamente, podem terminar em guerra aumenta consideravelmente.
Conclusão
A cimeira do Alasca demonstrou que as relações sino-americanas não regressão à «normalidade» do engagement do pós-Guerra Fria. Assiste-se, em larga medida, à continuação das linhas mestras da política chinesa determinadas pela Administração Trump. No âmbito da segurança, a revisão da política militar a decorrer no Departamento de Defesa recomendará a transferência de recursos militares do Médio Oriente para o Indo-Pacífico. Crescentemente focada nesta última região, a Administração Biden também tem aprofundado os contactos de alto nível com a Formosa, fornecendo-lhe armas em conformidade com o Taiwan Relations Act. Na esfera económica, as tarifas alfandegárias impostas pela Administração Trump, criticadas pelo candidato Biden durante a campanha presidencial, não foram abandonadas74. Recentemente, Katherine Tai, a representante do Comércio dos Estados Unidos (USTR), indicou a sua disposição para negociar novos entendimentos com Pequim. Porém, sem revelar propostas específicas, insistiu que «é cada vez mais claro que os planos da China não incluem reformas significativas para responder às preocupações que têm sido partilhadas pelos Estados Unidos e muitos outros países»75.
A cooperação entre a China e os Estados Unidos tem sido virtualmente limitada à questão das alterações climáticas, com Xi Jinping a participar na cimeira climática virtual de Biden, de 22 de abril de 2021. Resta saber por quanto tempo será possível prosseguir uma relação de confronto e competição com a China. Se Biden enfatiza a reconstrução de parcerias com aliados para conter a China, os aliados - particularmente os europeus - congratulam-se com o «retorno» dos Estados Unidos ao multilateralismo, mas excluem o confronto com a China e a lógica de uma nova Guerra Fria. Por enquanto, Washington e os seus aliados não encontraram uma estratégia coerente capaz de conciliar a cooperação em questões de bens coletivos globais com a contenção no âmbito da segurança e da defesa. Atendendo a esta dificuldade, os Estados Unidos irão, previsivelmente, definir novas estruturas, como sejam o Quad e o Aukus, para englobar os aliados dispostos a avançar para uma estratégia de contenção. Em contrapartida, os aliados que se excluírem deste processo serão crescentemente marginalizados por uma potência cada vez mais centrada no Indo-Pacífico e nos desafios à ordem liberal suscitados pela República Popular da China.