Introdução
A China, na sequência do rápido crescimento económico e transformação social, aumentou significativamente a dimensão da sua ajuda externa nas últimas duas décadas, transformando-se num dos principais atores globais neste contexto. O papel de Pequim enquanto doador emergente, com princípios, políticas e práticas de ajuda externa que a distinguem dos doadores tradicionais, desperta hoje grande atenção. No atual contexto político internacional, em que a China e os Estados Unidos competem pelo poder estratégico, a ajuda externa é sem dúvida uma ferramenta indispensável no «pacote de políticas» a que cada um recorre para fazer aliados e assegurar apoios. Irá a China usar a sua ajuda externa para refazer a ordem política internacional, à luz de uma Pax Sinica?
Tendo como objetivo compreender a motivação e o impacto da ajuda externa chinesa, estudos predominantemente empíricos basearam-se na experiência direta e em observações indiretas dos pesquisadores. O mais representativo deste tipo de trabalhos é o livro The Dragon’s Gift: The Real Story of China in Africa, de Deborah Brautigam. Em múltiplas ocasiões, a autora realizou trabalho de campo em cenários de guerra em nações africanas, visitou os locais onde projetos de ajuda externa chinesa eram implementados e entrevistou chineses e africanos responsáveis pela gestão dessa ajuda1. Foi assim que conseguiu explicar como as agências chinesas de ajuda externa planeiam e gerem os seus programas no continente africano. Outros estudos recorrem aos mesmos métodos analíticos utilizados por Brautigam para estudar outras questões do programa de ajuda externa da China, por exemplo a sua dimensão, a sua distribuição geográfica e a sua popularidade entre as populações locais2.
Em suma, os estudos académicos procuram geralmente identificar factos básicos acerca da ajuda externa chinesa, mas este tipo de pesquisas tem vários problemas. O primeiro é que a informação acerca da operacionalização desta ajuda raramente se encontra acessível e fazer trabalho de campo em África, como Brautigam fez, nem sempre é possível. Para além disso, Pequim é habitualmente vista como um «doador emergente», o que significa que a sua ajuda externa não se encontra tão normalizada e institucionalizada como a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). A política de ajuda externa varia muito ao longo do tempo e em diferentes locais. Mais do que isso, a ajuda externa chinesa tem conhecido mudanças profundas desde a criação da Agência Chinesa de Cooperação para o Desenvolvimento Internacional - o primeiro órgão de nível ministerial a ser criado especificamente para a coordenação de questões de ajuda externa. Em conjunto, estes desenvolvimentos levantam novos desafios ao estudo da ajuda externa da China, indicando que o foco da pesquisa deve ser reorientado do registo de factos para a análise dos padrões comportamentais de doação e das ideias que lhes subjazem. Por outras palavras, além de questionar que tipo de ajuda a China presta e como esta ajuda beneficia os países recetores, deveríamos também perguntar por que é que a China tem prestado ajuda desta forma específica.
As pesquisas anteriores demonstram limitações na definição do objeto de estudo. Por exemplo, pesquisadores têm-se debatido com a questão de como distinguir a ajuda externa do investimento externo chineses, um desafio que qualquer pesquisador encontra ao iniciar os seus estudos nesta área. Como será discutido na próxima secção, o Governo chinês nunca apresentou uma definição oficial da sua ajuda externa. Em consequência disso, os pesquisadores voltaram-se para indicadores de diferentes tipos e dimensões. Esta falta de consistência não só criou confusão estatística, como também colocou em causa a credibilidade dos estudos sobre ajuda externa chinesa, uma vez que pesquisas efetuadas sem uma base comum e consensual podem levar a resultados muito divergentes.
Neste artigo, defendemos que na origem deste problema está a base metafísica da abordagem analítica, que é ontologicamente substancialista e empiricamente individualista. É esta base metafísica que nos leva a simplificar a ajuda externa como atuação unidirecional de doação, que pode ser definida através de um conjunto de indicadores, como o requisito de elementos preferenciais na APD. De forma a ultrapassar estas limitações, torna-se necessário mudar a base metafísica da metodologia de investigação, do substancialismo e individualismo para uma base caracterizada pelo relacionismo. Ao considerar este tópico a partir de uma perspetiva relacional, podemos determinar até que ponto a ajuda externa se baseia na reciprocidade e na preocupação com o fortalecimento relacional. Por outras palavras, as experiências relacionais das nações durante a transação que subjaz à ajuda têm um valor mais elevado do que os benefícios económicos daí resultantes. Quando a ajuda externa é considerada independentemente da sua forma exterior de apoio financeiro oficial e vista como um meio de gerir relações, torna-se possível alargar o escopo da pesquisa para a história anterior à Guerra do Ópio, quando os países da Ásia Oriental se inter-relacionavam sob a égide de um sistema tributário dominado pelos chineses. Este artigo sugere que, em resultado de um pensamento profundamente relacional imbuído na cultura chinesa, os intercâmbios entre a China e os chamados «países vassalos» durante o processo de tributo exibiam o mesmo padrão comportamental de reciprocidade e uma preferência pelo fortalecimento relacional em vez do benefício económico.
A próxima secção alarga o nosso conhecimento da ajuda externa para além da ideia generalizada de que se trata simplesmente de um país a doar recursos a outro. Ao revelar a base metafísica substancialista de anteriores estudos, defendemos que é necessário adotar uma abordagem relacional à ajuda externa chinesa porque, de facto, não se trata de uma doação unidirecional, mas sim de uma troca recíproca orientada para o fortalecimento de relações mútuas. Na terceira secção, questionamos a ideia generalizada de que o sistema tributário apenas servia a dominação hegemónica da China na Ásia Oriental. O sistema era, em grande medida, recíproco e orientado por um pensamento relacional, da mesma forma que a ajuda externa, pelo que concluímos tratar-se de atuações de natureza semelhante.
Uma interpretação substancialista e individualista da ajuda externa
Antes de explicar porque é que a atual ajuda externa chinesa e o sistema pré-moderno de tributo, duas realidades aparentemente díspares, estão na verdade relacionadas, precisamos de clarificar o que se sabe sobre ambos. Uma revisão da literatura existente revela a base metafísica dos estudos existentes. Depois de discutirmos os problemas da abordagem substancialista à ajuda externa chinesa, adotamos uma perspetiva construtivista face ao tributo e à ajuda, de forma a ilustrar a sua natureza recíproca e relacional.
Os estudos sobre a ajuda externa chinesa são essencialmente baseados numa abordagem substancialista. Uma prova disto é que os investigadores, sem exceção, se preocupam com o problema de definir a ajuda externa num contexto chinês. Por um lado, o Governo chinês não anunciou uma definição operacional da sua ajuda; por outro, a China está em processo de estabelecimento de um sistema de gestão da ajuda externa, sob a égide da Agência de Cooperação para o Desenvolvimento Internacional (ACCDI). O conteúdo da ajuda externa irá variar consideravelmente à medida que o sistema é implementado3.
Apesar da sua complexidade, a definição de ajuda externa tem sido vista como uma tarefa inevitável e necessária por parte dos investigadores que pretendem estudar a ajuda externa chinesa. Sem uma compreensão dos seus princípios, não parece ser possível explorar o sistema de ajuda externa da China e aferir a escala dos seus subsídios públicos. Por outras palavras, a definição de ajuda externa não é um fim em si mesmo, antes tem sido vista unicamente como um primeiro passo para os investigadores avaliarem a eficácia e o impacto social da ajuda externa chinesa.
Alguns académicos - como Dreher et al.4, Kitano e Harada5, Brautigam6 e Strange et al.7 - tentaram resolver o problema propondo uma definição com indicadores equivalentes a uma «ajuda de tipo APD». Porém, a tentativa de reconciliar a ajuda externa da China e a APD da OCDE é problemática. Por um lado, diferentes investigadores incluíram nas suas definições indicadores e dimensões de natureza distinta, criando assim inconsistências no que diz respeito ao que pode ser considerado ajuda. Por exemplo, a ajuda militar com qualquer intencionalidade de desenvolvimento não é vista como ajuda externa pela maioria dos investigadores, com a exceção de Austin Strange8, que estabeleceu os critérios de recolha de dados para a famosa base de dados AidData. Por outro lado, como reconheceu Sears na sua análise crítica, «a dependência face a um indicador equivalente em vez de outro pode criar um viés»9. A reconciliação pode obscurecer as peculiaridades da ajuda externa chinesa, de tal forma que poderíamos acabar por considerar como ajuda externa apenas aquilo que está de acordo com as nossas expetativas do que é a APD.
Estudiosos chineses tentaram olhar para o problema a partir de uma perspetiva chinesa. Segundo Huang Meibo e Hu Jianmei10, os académicos chineses baseados na China possuem um entendimento mais aprofundado dos discursos dos líderes daquele país, das políticas governamentais e dos projetos de ajuda externa, de tal forma que as suas análises complementam os estudos ocidentais sobre a ajuda externa chinesa. Por exemplo, Ren Xiao e Liu Huihua, Zhang Caisheng e Chen Yougeng11 tentaram uma redefinição da «ajuda externa» através de uma análise da sua natureza e características. Muitos investigadores trouxeram novas perspetivas para a análise de como os programas de ajuda externa são desenhados e geridos12. Alguns defendem que a ajuda externa da China é, em grande medida, levada a cabo num quadro de cooperação Sul-Sul13. Contudo, é-lhes difícil distanciar-se do enquadramento político oficial, um desafio que muitos académicos chineses da área da Ciência Política enfrentam14, ao mesmo tempo que encontram dificuldades em atingir uma audiência global. A verdade é que nem o Governo chinês nem os académicos chineses têm conseguido promover uma definição com a influência suficiente para desafiar a posição hegemónica da definição de APD da OCDE.
Em comparação com os investigadores ocidentais, os académicos chineses dão mais importância aos fatores ideacionais na formulação da política de ajuda externa. Em primeiro lugar, alguns investigadores analisaram o sistema de ajuda chinesa e a sua evolução desde a fundação do país até aos dias de hoje15. O padrão de desenvolvimento privilegiado pela China nos seus projetos de ajuda externa é outro tema analisado por muitos investigadores chineses16. Outros têm considerado o impacto na política de ajuda do estilo pessoal de governo do líder político em funções17, mas o foco dos estudos é restrito a uma análise da política de ajuda implementada durante o mandato de um líder em específico. Mudanças ao nível da modalidade, regulação e escala da ajuda externa estão no centro deste tipo de estudos. Ao mesmo tempo, as políticas que permanecem inalteradas e as razões da continuidade ao longo de décadas são questões que continuam em grande medida a ser negligenciadas. Dito de outro modo, académicos chineses e não chineses têm prestado demasiada atenção ao aspeto substancial da ajuda externa, de tal forma que as suas modalidades e escala praticamente se tornaram o único foco das pesquisas.
A questão é como tudo isto aconteceu. Na opinião da maioria dos investigadores, os esforços consideráveis no sentido de qualificar e quantificar a ajuda externa são uma necessidade e não uma escolha, uma vez que a metafísica substancialista exige que, antes de começar qualquer pesquisa, seja preciso começar por definir qual o objeto da mesma. O objeto da pesquisa deve ser ontologicamente verdadeiro, o que implica que seja necessário delimitar esse objeto em relação a outras questões. Esta linha divisória deve ser estável, objetiva e independente da vontade de cada um. Para que um projeto seja reconhecido como ajuda externa, não é suficiente que o Governo chinês simplesmente o afirme; este projeto deve conter alguns elementos que determinam a sua natureza enquanto ajuda externa. Para identificar estes elementos, os investigadores não têm alternativa a não ser debruçar-se sobre as normas estabelecidas, os textos das políticas, os contratos assinados e as estatísticas financeiras da ajuda, ainda que o acesso a essa informação seja relativamente reduzido.
A necessidade de uma definição estável e objetiva de ajuda externa leva as análises da ajuda externa chinesa a valorizar fatores substantivos e a desvalorizar fatores ideacionais. Além disso, esta abordagem substancialista resulta num paradoxo. Se a ajuda externa é uma forma de transferir recursos de um país para outro no quadro de normas estabelecidas, então não é, na sua essência, diferente do investimento externo, uma vez que o que torna um projeto reconhecível enquanto ajuda externa advém de critérios definidos por humanos, e não de qualquer característica objetiva. Os projetos «chave na mão», por exemplo, estão excluídos da categoria de ajuda ao desenvolvimento de acordo com a definição da OCDE, mas incluídos nas listas de ajuda externa da China porque o entendimento chinês de ajuda externa não requer um subsídio de pelo menos 25% do valor total.
Um outro problema da abordagem substancialista é que os investigadores incorrem inconscientemente numa forma de pensar que equipara a ajuda externa a uma doação unilateral, uma vez que as atuais regulações da ajuda externa estão todas orientadas para a implementação da mesma. Não existem arranjos especiais para relações posteriores à ajuda. As pessoas tendem a pensar na ajuda externa como um contrato entre o país doador e o país recetor, contrato esse que termina assim que o doador cumpre a sua obrigação de prestar apoio. Porém, Marcel Mauss18 e Emma Mawdsley19 mostram que, apesar de a ajuda externa ser construída discursivamente como uma doação gratuita, mesmo a ajuda humanitária mais generosa «extrai um preço aos seus recetores». Ao contrário dos empréstimos, o país recetor está explicitamente isento de qualquer obrigação de reembolso, mas implicitamente assume uma dívida moral ou imperativo moral de retribuir o favor de várias formas.
Liu Yi20 demonstrou que, quando vista através da lente da teoria da troca social, a ajuda externa é uma forma especial de bem público global. Nenhum bem público é absolutamente gratuito, incluindo a ajuda externa supostamente mais altruísta, que na verdade é uma combinação de dois aspetos opostos, nomeadamente, o altruísmo e o interesse próprio. O aspeto altruísta incentiva os países a consumir bens públicos (aceitando projetos de ajuda), enquanto o aspeto de interesse próprio ajuda os fornecedores de bens a recuperar as suas despesas e obter lucros. Tanto o país doador como o país recetor estão conscientes de que um reembolso pelo consumo do bem irá acontecer mais tarde ou mais cedo. Porém, ao contrário de outros bens públicos, o altruísmo e o interesse próprio tornam-se mais interdependentes no caso da ajuda externa, que na prática incentiva doadores e recetores a gerir a sua relação a partir de um ponto de vista relacional de longo prazo.
Liu acrescenta que a implementação de um projeto de ajuda com um melhor desempenho no desenvolvimento económico do país recetor ajuda o doador na consolidação da confiança mútua, para além de melhorar o poder de compra e o ambiente de negócios do país recetor. O reembolso vem na forma de uma maior fatia de mercado no país recetor. O financiamento de projetos de ajuda externa enquanto doação aos países em desenvolvimento é também um gesto de boa vontade, que o país recetor retribui com a sua amizade e apoio em questões internacionais. No que diz respeito à cooperação em questões de segurança, a paciência estratégica é ainda mais necessária porque o reembolso normalmente surge ao longo de um período mais alargado. Através da reciprocidade, a ajuda externa continua a existir enquanto laço social que estabelece uma relação entre o país doador e o país recetor, mesmo depois de a transação se ter completado21. O país doador está obviamente consciente do reembolso, ao ponto de o considerar um lucro potencial derivado da prestação da ajuda22. É esta expetativa de reciprocidade que consolida a relação no período posterior à ajuda, encorajando as duas nações a prosseguir a cooperação.
É provável que exista algum ceticismo em relação à definição mais generalista de ajuda externa proposta neste artigo e que surjam dois tipos de questionamento. Em primeiro lugar, a reciprocidade e a dívida moral não podem ser testadas, o que impossibilita demonstrar se a definição é verdadeira ou falsa. Em segundo lugar, considerar a reciprocidade como elemento fundamental pode levar de novo a que se confunda ajuda externa e investimento externo. Em relação à primeira questão, este artigo não pretende oferecer uma outra definição operacional de ajuda externa, mas antes redefini-la a partir da sua própria natureza. Não temos interesse em construir uma unidade de medida especial para quantificar a ajuda, mas antes um «prisma» que reflita e permita diferenciar vários aspetos da ajuda externa. No que diz respeito à segunda questão, observamos que o investimento externo difere da ajuda externa porque, no primeiro caso, o país investidor tem uma ideia muito clara do que espera ganhar com a transação, sendo o lucro garantido pelo contrato e pela lei. Pelo contrário, um país doador não sabe quando e como a reciprocidade vai ocorrer, uma vez que o país recetor apenas tem um imperativo moral, em vez de uma obrigação legal, já que a ajuda externa «deve ser conduzida de forma voluntária e desinteressada»23.
Resumindo, os países doadores concordam em prestar ajuda não apenas por razões altruístas, mas porque têm previsão de receber um reembolso por parte do país recetor, ainda que esse retorno seja indireto e não imediato. Do ponto de vista do país recetor, os ganhos vão além do apoio financeiro, mas incluem também a experiência psicológica partilhada com o país doador, que por sua vez pode resultar em mais oportunidades de cooperação. Quando uma transferência de recursos entre dois países não é unidirecional mas antes uma troca recíproca, quando é feita não apenas para alcançar benefícios económicos mas também destinada a criar oportunidades para uma cooperação futura, sem uma garantia de lucro mas com uma expetativa não específica de reciprocidade, defendemos que esta transferência pode ser vista como ajuda externa. Adotar esta abordagem relacional para a ajuda externa também nos permite redescobrir elementos «semelhantes à ajuda» no antigo sistema tributário.
Tributação e ajuda: duas faces ea mesma moeda
De acordo com o documento oficial sobre a ajuda externa chinesa emitido pelo Conselho de Estado em 2011, Pequim começou a prestar assistência ao desenvolvimento e assistência técnica a outros países na década de 195024. Esta afirmação é aceite de forma consensual pelos académicos25. Porém, é importante ressalvar que o termo «ajuda externa da China» utilizado neste documento se refere, na verdade, especificamente à ajuda prestada pela República Popular da China (RPC). Para um país com uma longa história de sustentação de um sistema regional sinocêntrico, a década de 1950 não é certamente a data do início da sua ajuda externa. No entanto, a assistência prestada pela China antiga a outros países continua a ser um tópico relativamente inexplorado na literatura sobre ajuda externa chinesa. Esta ausência tem duas causas. Em primeiro lugar, a própria China não reconhecia enquanto ajuda externa a doação de recursos a outra nação; consequentemente, não havia uma instituição específica ou normas de ajuda externa preparadas para a gestão da mesma. Até mesmo referências a atuações «semelhantes à ajuda» eram relativamente raras, e integradas nos registos dos imperadores chineses quando enviavam e recebiam emissários. Esta situação aumentou consideravelmente a dificuldade sentida pelos estudiosos de detetar atuações «semelhantes à ajuda». A segunda causa está associada à natureza do contexto internacional no qual as interações chinesas com outros países ocorreram.
A ordem regional da Ásia Oriental antes do começo da Guerra do Ópio em 1839 baseava-se no sistema tributário sinocêntrico. Ao contrário da ordem mundial atual, onde os países se consideram numa posição igualitária em relação a outros, o sistema tributário era caracterizado por uma profunda assimetria entre a China e outros países. A China, colocada num nível superior, dominava a totalidade do mecanismo e recebia tributos dos chamados países vassalos26, enquanto estes países eram ordenados de forma diferente consoante a sua intimidade relacional com a China27. A natureza fundamentalmente hierárquica do sistema na prática obscurece a ideia de que diferentes tipos de interação entre a China e outros países pudessem ter sido voluntários e desinteressados. É esta ideia do sistema tributário enquanto opressão ou exploração que impede os investigadores de encontrar paralelos com a «ajuda externa» na história da Ásia Oriental.
A primeira questão que devemos examinar é saber se o sistema tributário era baseado na exploração ou na reciprocidade. Para Fairbank28, o sistema tributário era explicitamente hierárquico, ainda que implicitamente fosse um mecanismo comercial que trazia benefícios económicos para os países vassalos. Ao prestar tributo e seguir os rituais, o país vassalo mostrava respeito para com a superioridade chinesa e reconhecia a legitimidade do imperador chinês enquanto Filho do Céu. Por seu lado, o imperador chinês concedia uma investidura, na forma de um selo oficial ou decreto imperial, sinalizando que o país vassalo podia desfrutar de prosperidade e segurança sob a proteção da China. Desta forma, Fairbank conclui que os países vassalos aceitavam o sistema tributário como uma «fachada para o comércio». Ao executarem os rituais do tributo, asseguravam autorização para trocar bens com a China e adquirir produtos que de outra forma lhe estariam indisponíveis.
Para os realistas, o sistema tributário servia a hegemonia regional da China. Por exemplo, Taylor29 e Wills30 sugerem que os países vassalos se envolviam de forma relutante no sistema tributário devido ao medo inspirado pela hegemonia militar chinesa. Aceitavam os rituais humilhantes de tributo, como a genuflexão, uma vez que não eram poderosos o suficiente para se proteger de uma invasão militar da China. A prova disso é que sempre que havia uma mudança dinástica, ou quando a hegemonia militar chinesa era desafiada por uma potência externa, os países vassalos rapidamente suspendiam as suas relações de tributo com Pequim. Como vimos, a Pax Sinica desmoronou-se rapidamente no século xix, depois de as potências ocidentais entrarem pela Ásia Oriental dentro com o seu armamento avançado.
No entanto, as interpretações funcionalistas e realistas estão incompletas porque aplicam ideias baseadas em experiências socioeconómicas ocidentais (na sua maioria europeias) para explicar a realidade da Ásia Oriental. De acordo com os estereótipos ocidentais, o tributo era um instrumento político usado pelos governos para coletarem recursos das sociedades que mantinham sob o seu controlo. Depois de estudar relações de tributação na Mongólia, em Atenas e na Inglaterra, Tarschys definiu o tributo como «impostos extorquidos a intervalos regulares comum em Estados primitivos e beligerantes». Em transferências deste tipo, existe normalmente uma combinação de dois elementos opostos: «Por um lado uma expressão de amizade, devoção e submissão, e por outro um sentimento de medo e insegurança»31. Destes dois elementos opostos, a máquina de repressão era o impulso crucial para os países vassalos prestarem tributo. Poderão ter existido ofertas voluntárias, efetuadas com o intuito de obter favores por parte do país recetor, mas a submissão era a característica fundamental do tributo. Os estudos acerca do sistema tributário chinês foram mais ou menos afetados por esta perspetiva oriunda do hemisfério ocidental. O tributo era visto como uma doação voluntária - mas numa direção diferente da ajuda externa, ou seja, dos países vassalos para a China.
Pós-modernistas como Hevia32 e Kelly33 criticaram os trabalhos académicos que tomam o sistema tributário como um conceito a priori, sem uma análise detalhada do seu conteúdo. Este artigo também se opõe à visão do sistema tributário como unicamente opressivo e assente na exploração. Por um lado, as relações de poder na Ásia Oriental eram distintas das do Ocidente. A relação entre as nações europeias depois da Paz de Vestefália era pautada pelo reconhecimento universal da igualdade e pela ausência de uma autoridade superior. Como observou Krasner, «cada sistema ou sociedade internacional possui um conjunto de regras ou normas que definem os atores e o comportamento apropriado»34. Não existindo um país com uma vantagem absoluta em recursos materiais ou poderio militar, a lógica comportamental de cada um era extrair todos os recursos a que pudesse aceder, de forma a defender-se de possíveis ataques. Em resultado disso, o continente europeu observou uma política de equilíbrio de poder e conflitos incessantes entre os Estados. No entanto, na Ásia Oriental a influência da anarquia era reduzida porque a China assumiu um papel de autoridade na região. A China podia, em grande medida, bastar-se a si própria, e consequentemente não sentia necessidade de expandir o seu território, incorporando países vizinhos que tinham menos recursos naturais. A China era a potência hegemónica na região mas, na prática, «não procurava traduzir a sua posição dominante num império sistémico recorrendo à força das armas»35. O sistema tributário garantiu efetivamente a paz na Ásia Oriental. De acordo com David Kang, entre 1368 e 1841 apenas ocorreram duas guerras de conquista entre a China, a Coreia, o Japão e o Vietname36. A China não enviou forças militares para obrigar um país a prestar tributo à sua corte. O Japão, por exemplo, era visto como um país resistente que frequentemente não prestava tributo, por vezes suspendendo durante décadas o envio de emissários à China, e tentou mesmo interferir no sistema tributário invadindo a Coreia. Mas a China não recorreu à ameaça do uso da força para o obrigar a participar no sistema e, tal como o Japão, outros países vassalos desfrutaram de grande margem de manobra no seu comportamento.
Por outro lado, nenhuma delegação de prestação de tributo regressava ao seu país de origem de mãos a abanar, apesar de a China não ter nenhuma obrigação de retribuir qualquer oferta. Se a submissão era a característica fundamental do sistema de tributo ocidental, o sistema tributário chinês era caracterizado pela reciprocidade. A dinastia Ming estipulava que «sempre que chega um emissário oferecendo tributo, o emissário deve ser bem recebido; sempre que o emissário oferecendo tributo traz bens para vender, os seus bens devem ser comprados ao dobro do preço»37. Para além disso, o tributo à corte chinesa trazia mais lucro aos países que o prestavam do que à própria China, ainda que apenas tenhamos em consideração o valor dos presentes oferecidos pelo imperador chinês. A Coreia enviou falcões e garças brancas três vezes num só ano para felicitar o imperador chinês quando este subiu ao trono, mas a sua oferta foi rejeitada a última vez porque a corte chinesa percebeu que a sua congénere coreana apenas pretendia obter recompensas generosas38. Não só os coreanos, mas também os japoneses, se aperceberam que prestar tributo à China era lucrativo. Em 1532, dois emissários japoneses de diferentes províncias chegaram ao porto de Ningbo ao mesmo tempo. Discutiram um com o outro acerca de qual deles era o verdadeiro emissário tributário, e a discussão acabou por escalar para um conflito armado. Esta história ilustra de forma clara que os países vassalos procuravam participar no sistema tributário. Na sua análise dos custos incorridos pela dinastia Ming para suportar o sistema, David Kang afirma que a China gastou mais de 25 milhões de taéis de prata para receber emissários tributários, uma soma equivalente a sete anos de produto interno39.
Vários estudiosos exploraram o papel do sistema tributário na provisão de bens públicos. Por exemplo, Gao Cheng e Shang Huipeng sustentam que a China era a potência dominante na antiga Ásia Oriental e o único país com capacidade de fornecer bens públicos a toda a região40. O sistema de escrita, o confucionismo, as leis, religião e técnicas produtivas foram todos transportados para os países vassalos através das delegações de tributo no seu regresso da China. Para além de bens culturais, a China também assumiu a responsabilidade de garantir a ordem regional. Os imperadores das dinastias Ming e Qing enviaram exércitos para proteger e manter desimpedidas as rotas tributárias, tanto marítimas como terrestres, ajudaram o Vietname e a Coreia a suprimir revoltas e resistir a invasões, e até criaram normas e instituições para os socorros marítimos41.
Fairbank também observou que o sistema tributário dava prejuízo à China. Porém, uma vez que a sua pesquisa estava focada nos rituais de tributo, não prestou atenção à importância da reciprocidade42. Devemos recordar-nos que a China, como única superpotência num sistema hierárquico, poderia isentar-se da obrigação de retribuir ofertas. A adesão ao princípio da reciprocidade estrita na gestão das relações de tributo não estava alinhada com os interesses nacionais da China.
Mesmo no momento de prestar assistência aos países vassalos, a China continuava a insistir no princípio da reciprocidade, tal como faz hoje ao oferecer ajuda externa. Um exemplo ocorreu quando o rei da Coreia escreveu uma carta a pedir ajuda ao imperador da dinastia Qing depois de uma fome severa ter afetado o seu reino em 1696. Na sua resposta ao rei coreano, o imperador chinês expressou a sua simpatia com palavras emocionadas, escrevendo que considerava o sofrimento do povo coreano como seu também43. Ordenou ainda que 30 mil dan44 de arroz fossem transportados para a Coreia, dos quais dez mil seriam oferta, enquanto os restantes 20 mil deveriam ser vendidos ao preço de mercado. Os dez mil dan de arroz eram muito semelhantes ao que hoje consideramos ajuda humanitária, mas os restantes 20 mil dan de arroz foram vendidos ao preço de mercado e o lucro pode ser visto como uma forma de a Coreia retribuir o favor à China. Este exemplo parece muito semelhante à forma como a China atualmente presta ajuda externa, muitas vezes através de uma combinação de assistência e comércio.
A adesão à reciprocidade é o resultado do pensamento relacional que está implantado na cultura chinesa. Zhai Xuewei estudou a forma como a reciprocidade funciona na sociedade chinesa. Defende que a experiência psicológica é mais valiosa do que a troca de recursos em si, já que manter uma relação significa a possibilidade de benefícios para doador e recetor45. O «valor residual» e a «perceção de dívida» constituem a força motriz para mais trocas materiais e relacionais. Recompensar o doador com recursos do mesmo valor não faz avançar a relação. Pelo contrário, os países assegurar-se-ão que a dívida não é paga de forma exata, de maneira a criar um laço emocional forte entre os dois. É por isto que observamos, no sistema tributário, que por mais pequeno que o país vassalo fosse os seus emissários levavam sempre à corte uma oferenda especial, e que o imperador chinês retribuía o favor com uma oferta muito mais valiosa. Esta é também a razão pela qual a China defende de forma veemente a ideia de benefícios mútuos, mesmo quando presta ajuda a outros países em desenvolvimento.
Existia também uma correlação direta entre a frequência das missões de tributo e a posição do país na rede relacional chinesa de proximidade estratificada46. Os países vassalos com uma relação mais próxima à China tinham permissão para apresentar tributo à corte com maior frequência. Nas dinastias Ming e Qing, a Coreia e o reino de Ryukyu enviaram emissários à China com bastante frequência, normalmente uma vez por ano ou de dois em dois anos. Mas para países como o Sião ou a Holanda, a regra era que a submissão de tributos seria permitida a cada três anos, e mesmo com frequências mais reduzidas, como uma vez a cada oito anos47.
No entanto, isto não significa que as ofertas da China aos países com os quais tinha uma relação mais próxima fossem de valor mais elevado. Em vez disso, a recompensa podia ter uma maior importância estratégica de longo prazo, em vez de um benefício económico imediato. Em 1369, um grupo de emissários coreanos chegou à corte Ming para uma audiência. O imperador chinês perguntou: O vosso rei regulou as fronteiras? Construiu muralhas nas cidades? Produziu armamentos? Construiu residências? Os emissários responderam que as muralhas não tinham sido construídas, que havia armas, mas a guarda imperial não estava pronta para o combate, e que apesar de haver residências não havia um lugar para o rei instalar a corte - o rei apenas desfrutava da companhia de monges budistas. O imperador chinês expressou a sua preocupação, presenteando os emissários apenas com livros sobre governança, clássicos confucionistas e relatos históricos da China antiga para o rei coreano estudar48. De igual modo, a ajuda externa a um país com o qual a China não tem familiaridade normalmente começa com subsídios de pequena dimensão. À medida que a relação se aprofunda, a ajuda começa a transitar de áreas de «baixa política» para áreas de «alta política», como transferência tecnológica, formação a funcionários governamentais e mesmo ajuda militar (veja-se o exemplo do Paquistão).
Conclusão
Este artigo inspirou-se na preocupação generalizada que existe relativamente à influência crescente que a China exerce sobre os países em desenvolvimento através da sua ajuda externa. A emergência da China desencadeou uma intensa discussão entre os estudiosos sobre se Pequim irá usar programas de ajuda para acelerar a transição de uma Pax Americana para uma Pax Sinica. Porém, não é fácil responder a esta pergunta porque o nosso conhecimento acerca da ajuda externa chinesa é limitado ao período posterior à fundação da RPC. Por outras palavras, quando nos referimos à «ajuda externa da China» estamos na verdade a falar de «ajuda externa prestada pela RPC». Este artigo considerou a ajuda da China, e o seu comportamento respeitante à ajuda, durante o período em que a ordem da Ásia Oriental era dominada pelo sistema tributário.
Antes de entrar no sistema tributário, começámos por analisar a razão pela qual os investigadores não aprenderam com a história. Encontrámos uma lacuna na definição de ajuda externa, que é concebida de acordo com ideias modernas e seguindo padrões estritos relacionados com a componente financeira da ajuda, o formato e seus elementos de subsídio. A ênfase nos aspetos substantivos da ajuda externa pode ser considerada problemática, uma vez que a experiência psicológica de que o país doador e o país recetor beneficiam aquando da implementação de programas de ajuda tem sido grandemente negligenciada. Isto obscurece a relevância do comportamento semelhante à ajuda que a China exibiu antes de 1949.
Por conseguinte, repensámos a ajuda externa e o sistema tributário a partir de uma perspetiva relacional e concluímos que os dois são, na sua essência, um tipo especial de bens públicos. A transferência de recursos no contexto da ajuda externa e do sistema tributário não era, e não é, uma doação unidirecional, mas antes uma troca recíproca. A China, partindo de uma posição dominante, podia isentar-se (no caso do sistema tributário) ou isentar os países recetores (no caso da ajuda externa) da obrigação de reembolso, mas, pelo contrário, insistiu na reciprocidade, ainda que o recurso reembolsado não tivesse o mesmo valor que o recurso oferecido inicialmente. O que retribuir e como retribuir eram e ainda são orientados por um pensamento relacional. Por um lado, o processo de troca consolida o elo emocional entre doador e recetor. Ambos se certificam a todo o momento que um valor residual persiste depois do reembolso, para que uma perceção de dívida estimule o outro a iniciar um novo ciclo de trocas. Por outro lado, a China retribui com diferentes ofertas a países de diferente proximidade relacional: recompensas são dadas com maior frequência aos países que ocupam um lugar central na sua rede relacional. Poderão não ser tão valiosas quanto as recompensas dadas a outros países, mas são, na verdade, de importância estratégica.
No que diz respeito à questão levantada no início do artigo, devemos em primeiro lugar sublinhar que refazer a ordem mundial à imagem de uma Pax Sinica não significa a recuperação do antigo sistema tributário. Ainda que este não tenha sido tão opressivo e exploratório como geralmente se pensa, a sua forma hierárquica de organização torna-o inadequado num mundo onde a igualdade foi aceite como princípio geral. Assim, a ajuda externa pode ser um instrumento político para a China fazer e manter aliados, mas não constitui um desafio direto ao atual sistema internacional. A natureza relacional e recíproca da ajuda externa chinesa significa que esta traz poucos benefícios imediatos e previsíveis para Pequim, pois o estabelecimento de uma relação sólida com qualquer país recetor só é possível depois de várias rondas de troca recíproca. Por outras palavras, não é uma escolha racional para um país tentar construir uma nova ordem mundial com base numa obrigação moral imprevisível de retribuição de favores.
Tradução: João Reis Nunes