Introdução
A China é um verdadeiro país de superlativos e, simultaneamente, um Estado-Civilização e um Estado-Nação1. A sua ressurgência é fulgurante e impactante, sendo hoje central nos cálculos, comportamentos e interações de todas as regiões e de todos os outros atores internacionais, contribuindo decisivamente também para a centralidade da Ásia-Pacífico na economia e na geopolítica mundiais. Mas quais são os objetivos e as ambições da China? De que meios dispõe para a promoção dos seus interesses? E quais as políticas e estratégias que emprega na implementação dos seus fins? Estas questões são decisivas para compreender a postura e o rumo da República Popular da China (RPC) atual, mas nem sempre a abundante literatura sobre a China lhes dedica a devida atenção. Neste artigo procuramos responder a essas questões, no pressuposto de que a grande estratégia atual da China é indissociável do seu «poder nacional abrangente», das perspetivas do dominante Partido Comunista da China (PCC) e, em particular, de Xi Jinping, secretário-geral do PCC e Presidente da RPC desde 2012. Assim, é objetivo analisar e explicar aqui a grande estratégia da China de Xi.
À semelhança de outras noções utilizadas em Relações Internacionais (RI), o conceito de «grande estratégia» é empregue com amplitudes e significados diferentes2. Por exemplo, Nina Silove descortina três significados de grande estratégia em que os estudiosos divergem, rotulando-os de «grandes planos», «grandes princípios» e «grande comportamento». Apesar dessa distinção, a autora considera que esses três significados são estruturalmente similares em dois importantes aspetos: primeiro, uma vez que derivam do conceito de estratégia, envolvem dois elementos centrais, os fins e os meios; segundo, incluem três características que justificam o sentido de «grande», isto é, o longo prazo, a holística e, importante, e apesar das diferenças entre os teóricos, as conceções básicas da grande estratégia, que não só se complementam como são relativamente convergentes em aspetos essenciais3. Já Rebecca Friedman Lissner identifica na literatura outras três abordagens: a «grande estratégia como variável», que estuda as origens do comportamento estatal; a «grande estratégia como processo», respeitante quer ao planeamento estratégico governamental, quer ao modo mais genérico de tomada de decisões; e a «grande estratégia como projeto», oferecendo visões amplas na perspetiva de entender e/ou de influenciar o comportamento futuro4. Em termos operacionais, empregamos aqui «grande estratégia» com base em duas definições: a de Hal Brands, que considera que «uma grande estratégia representa um esquema integrado de interesses, ameaças, recursos e políticas - é o quadro conceptual que ajuda as nações a determinar para onde querem ir e como devem lá chegar»5; e a de Peter Layton, que define grande estratégia como «a arte de desenvolver e aplicar diversas formas de poder de uma forma eficaz e eficiente para tentar mudar propositadamente a relação existente entre duas ou mais entidades inteligentes e adaptativas»6.
No plano teórico, seguimos uma «abordagem eclética» com o contributo das teorias da complexidade. Das teorias da complexidade extraímos, sobretudo, a assunção de «não linearidade» - que o resultado dos comportamentos e interações é «naturalmente imprevisível» - e a noção de «sistemas complexos adaptativos», enfatizando as ideias de complexidade, coadaptação e coevolução dos atores e do sistema. A «abordagem eclética» assume que nenhuma das teorias de ri convencionais, isoladamente e por si só, consegue abranger e explicar toda a realidade internacional que, por natureza, é complexa, dinâmica, imprevisível, adaptativa e coevolutiva. Este pressuposto é ainda mais relevante tendo em conta as visões e propostas opostas com que as teorias liberais, realistas, construtivistas, sistémicas, críticas e outras de base ocidental muitas vezes se digladiam no respeitante também ao comportamento e às interações de atores não ocidentais, como a China. Por conseguinte, limitando o risco de a priori alienar aspetos e variáveis que podem ser cruciais, com pragmatismo e prudência, a abordagem eclética vai além das «expetativas naturais» das teorias convencionais, combinando diferentes hipóteses explicativas e tirando partido do potencial das complementaridades7. Ao mesmo tempo, a abordagem eclética facilita e favorece ligações inclusivas com teorias não ocidentais de RI, incluindo chinesas8.
Em termos metodológicos, o artigo assenta num modelo descritivo-analítico, com base na análise de discursos e documentos oficiais, recorrendo a literatura especializada sobre a transformação da China e a dados e exemplos ilustrativos.
O texto está organizado em quatro partes, ao longo das quais vamos fundamentando também os nossos argumentos. A primeira analisa os objetivos da China, demonstrando que se confundem com os do PCC e que ganharam ambição com a liderança de Xi Jinping. A segunda faz o levantamento do poder nacional abrangente chinês, justificando a sua base económica e a crescente autoconfiança de Pequim. A terceira é dedicada à política internacional da China de Xi, evidenciando que a «xiplomacia» está ativamente empenhada em criar um mundo sinocêntrico e em refazer a ordem internacional, desde logo, com base no soft power e a partir de múltiplos acordos de comércio livre e de distintos mecanismos bi, tri e multilaterais. Na quarta e última parte, demonstramos e argumentamos que a China de Xi adotou uma estratégia wolf-warrior muito mais assertiva e confrontacional, desde a coerção económica e diplomática à ameaça e ao uso da força militar. A fechar, nas considerações finais, sintetizamos os nossos argumentos e questionamos se a grande estratégia da China de Xi não terá ido longe de mais e depressa de mais e se o tempo e a dinâmica continuam do lado da China.
Ambições e objetivos do PCC e da china de xi: realizar o comunismo numa nova era e o sonho chinês, alcançando uma posição dominante
Para entender a grande estratégia da China, é crucial começar por verificar as suas ambições e os seus objetivos. E, para isso, temos de atender à fusão existente entre os interesses e objetivos do Estado e do dominante PCC, conforme decorre, aliás, do artigo 1.º da Constituição da RPC: «A liderança do Partido Comunista da China é a característica que define o socialismo com características chinesas. É proibido a qualquer organização ou indivíduo prejudicar o sistema socialista.»9 Ora, segundo a Constituição do próprio PCC, «[o] ideal mais alto e objetivo último do Partido é a realização do comunismo»10.
Este «objetivo último» é perseguido através daquilo que o Partido chama de «linha básica», e que serve de referência quer para a sua missão quer para a formulação das suas políticas:
«A linha básica do Partido Comunista da China na fase primária do socialismo é liderar todo o povo da China num esforço autoconfiante e pioneiro, fazendo do desenvolvimento económico a tarefa central, defendendo os Quatro Princípios Cardeais, e permanecendo empenhado na reforma e abertura, de modo a tornar a China um grande país socialista moderno, próspero, forte, democrático, culturalmente avançado, harmonioso e belo»11.
Primeiramente enunciados por Deng Xiaoping e depois inscritos na Constituição do PCC, esses Quatro Princípios Cardeais são «manter o caminho do socialismo, defender a ditadura democrática do povo, manter a liderança do Partido Comunista da China e defender o Marxismo-Leninismo e o Pensamento de Mao Tsétung»12, formando esses princípios também «a base para a construção do país»13. Na perspetiva do partido, o seu papel dirigente é a única via para restaurar a força, a prosperidade e o prestígio da China - no que também constitui a «aspiração original» e a «missão» do PCC, segundo Xi Jinping14.
Este preceituado inscreve-se na lógica da «continuidade histórica» que o partido sublinha igualmente ao afirmar que as «as linhas orientadoras da sua ação» são as doutrinas dos cinco consecutivos dirigentes máximos da China popular:
«O Pensamento de Mao Tsé-tung, combinando os princípios básicos do marxismo-leninismo com a prática real da revolução chinesa [...] A Teoria de Deng Xiaoping... alterou o foco do trabalho de todo o Partido para o desenvolvimento económico e introduziu a reforma e a abertura [...] A Teoria de Jian Zemin das Três Representações [...] A Perspetiva Científica sobre o Desenvolvimento de Hu Jintao [e o] Pensamento de Xi Jinping sobre Socialismo com Características Chinesas para uma Nova Era»15.
Paralelamente, os dirigentes chineses glorificam a história da China e a «tradição revolucionária» do partido, enquadrando os seus esforços na procura de «restaurar» a posição central da China após o que caracterizam como «século das humilhações», que teve início em meados do século XIX com as guerras do ópio e os «tratados desiguais» e que durou até à proclamação da RPC, em 1949. Com efeito, desde a sua criação, em 1921, o PCC autorretrata-se como campeão da causa da reconstrução e ressurgência da China. Em suma, conforme repetidamente afirma Xi Jinping, fazendo eco dos seus antecessores, «só o socialismo pode salvar a China - e só o socialismo com características chinesas pode desenvolver a China»16.
Por outro lado, a grande estratégia da China tem de ser enquadrada à luz de duas noções centrais. A primeira é a de «poder nacional abrangente», expressão que orienta o desenvolvimento das capacidades chinesas em todos os domínios, de forma articulada, por aí também avaliando a evolução da China e comparando-a a outras potências no sistema internacional. A segunda é a de «configuração estratégica de poder», tendo subjacente a ideia de «propensão das coisas», sendo que os dirigentes chineses descrevem o final do século XX e o início do século XXI como um «período de oportunidades». Nesta linha, a China não precisaria de forçar e menos ainda de impor a sua ascensão, pois bastar-lhe-ia tirar habilmente partido da «propensão das coisas» e das oportunidades que se lhe oferecem para, com naturalidade e gradualmente, o seu poder nacional abrangente aumentar e, assim, subir na hierarquia do poder global. Trata-se, portanto, de uma estratégia de longo prazo que estabelece grandes objetivos, prioridades e marcos em todas as dimensões. Pequim caracteriza a sua grande estratégia como esforço nacional que se estende no âmbito e no alcance da transformação da China e, por sua vez, do mundo. Para os dirigentes chineses, «a China ainda se encontra num importante período de oportunidade estratégica»17.
Desde as reformas lançadas por Deng Xiaoping, a partir de 1978, e que estão na base da ressurgência da China, os grandes objetivos foram traçados em torno da ambição geral de construir uma «sociedade moderadamente próspera em todos os aspetos» até meados do século XXI. Por outro lado, cultivando a ideia de «ascensão benigna» da China e de cooperação de «ganhos mútuos», Pequim prosseguiu, genericamente, a denominada «estratégia dos 24 caracteres»: «observar calmamente; conservar a nossa posição; envolvermo-nos nos assuntos prudentemente; esconder as nossas capacidades e esperar a nossa vez; ser bom a manter um perfil baixo; e nunca reclamar a liderança.» Esta fórmula fora enunciada por Deng Xiaoping, em 1990, na sequência das tensões provocadas pela «tragédia de Tiananmen», sendo seguida por Jiang Zemin e, depois, por Hu Jintao que, em 2009, alterou os últimos caracteres para, simplesmente, «manter um perfil baixo» e «alcançar ativamente algo». Esta última parte também pode ser traduzida e interpretada como «mostrar as suas proezas» e «assumir as suas responsabilidades»18, representando uma adaptação ao crescente poder nacional abrangente da China e uma resposta à pressão internacional, nomeadamente dos Estados Unidos, para que a China assuma as suas responsabilidades enquanto grande potência. De uma maneira geral, os antecessores de Xi Jinping acreditavam que a China devia aguardar pacientemente pela sua vez, garantindo condições para continuar no rumo do desenvolvimento económico - fonte principal de poder servindo todos os outros domínios - e promovendo constantemente a expansão da influência da China através da integração tática na ordem mundial existente.
Essa postura de relativo perfil baixo da RPC alterou-se com a ascensão de Xi Jinping à liderança do partido e do Estado, em 2012. Xi concentrou poder e expressa uma ortodoxia ideológica sem paralelo desde Mao, mostra-se impaciente com o statu quo, possui uma elevada tolerância ao risco, motiva o «culto da personalidade» e tem pressa na afirmação internacional da China19. Jude Blachette argumenta que os cálculos de Xi são determinados pela sua linha temporal, «porque ele vê uma janela estreita de dez a 15 anos durante os quais Pequim pode tirar partido de um conjunto de importantes transformações tecnológicas e geopolíticas, que também o ajudarão a ultrapassar desafios internos significativos»20. O próprio Governo chinês assume que «[a]China entrou numa nova era após o 18.º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, em 2012. O Presidente Xi Jinping considerou as responsabilidades da China numa perspetiva global»21. E na 6.ª Sessão Plenária do 19.º Comité Central que decorreu entre 8 e 11 de novembro de 2021, o PCC aprovou uma resolução que revê a narrativa oficial da sua história apenas pela terceira vez desde 192122, cimentando a posição de Xi Jinping e do seu «Pensamento sobre Socialismo com Características Chinesas para uma Nova Era», considerado a «quintessência da cultura e da alma chinesas» que «reflete a vontade comum do partido, das forças armadas e do povo chinês de todos os grupos étnicos, com um significado decisivo para o avanço da causa do Partido e do país»23.
Essa alteração é notória, desde logo, nas novas ambições expressas em torno de noções-chave como «Nova Era» e «Sonho Chinês» ou nas referências públicas à posição «liderante» e «dominante» da China. Num marcante discurso ao 19.º Congresso do PCC, em 2017, que sintetiza muito da sua doutrina, Xi Jinping declarou que a China tinha atingido «uma posição de liderança em termos de força económica e tecnológica, capacidades de defesa e força nacional compósita»24. Justifica, assim, «a entrada do socialismo chinês numa Nova Era» o que, segundo Xi, se reveste «de tremenda importância»25. Nova Era «significa que o socialismo científico está cheio de vitalidade na China do século XXI [...] abrindo um novo caminho para outros países em desenvolvimento alcançarem a modernização. Oferece uma nova opção para outros países e nações»26. No fundo, o que a Nova Era de Xi significa é que a China está no limiar - a transpor nas próximas três décadas - da realização do «Sonho Chinês de rejuvenescimento nacional». E, simplesmente, «o Sonho Chinês é tornar o país forte»27. Portanto, o grande objetivo do PCC e do Governo chinês, nas palavras de Xi Jinping, é «construir um socialismo superior ao capitalismo e lançar as bases para um futuro onde ganharemos a iniciativa e teremos a posição dominante»28.
A China de Xi manteve a modernização no centro da sua ação, mas implementando uma nova filosofia em torno do Plano Integrado de Cinco Esferas (para promover o progresso económico, político, cultural, social e ecológico coordenado) e da Estratégia Abrangente de Quatro Vertentes (para concluir a construção de uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspetos, aprofundar as reformas, avançar na governação baseada na lei e reforçar a autogovernação do partido), assim denominados desde o 18.º Congresso Nacional do PCC de novembro de 2012. Rumo à concretização das suas ambições, Pequim estabelece etapas temporais de longo prazo, definindo para cada uma delas objetivos e prioridades concretos. Para a sua estratégia na Nova Era, a China de Xi traçou um vasto plano em torno de dois marcos centenários simbolicamente representativos:
«O objetivo estratégico nacional da China é completar a construção de uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspetos até 2021, quando o PCC celebrar o seu centenário; e a construção de um país socialista moderno que seja próspero, forte, democrático, culturalmente avançado e harmonioso até 2049, quando a República Popular da China (RPC) celebrar o seu centenário»29.
E sem ambiguidades, na cerimónia que assinalou o 100.º aniversário do PCC, no dia 1 de julho de 2021, Xi Jinping declarou que a China já tinha atingido o grande objetivo do primeiro centenário, entrando, portanto, numa nova fase30.
No hiato temporal entre os «dois centenários», a China de Xi delineou objetivos intermédios para 2035 e estabeleceu um amplo programa de modernização em «duas fases» a alcançar até 2049. Na primeira fase, de 2021 a 2035, Pequim pretende que a China atinja «basicamente» os patamares iniciais de um «grande país socialista moderno», continuando o desenvolvimento económico a ser «tarefa central»31. Até 2035, a China procurará também melhorar a sua condição de «Estado de direito» e os sistemas de governação internos, aumentar a sua força tecnológica para se tornar um «líder global em inovação» e «basicamente» completar a sua modernização militar. Pretende ainda desenvolver uma «diplomacia de grande potência com características chinesas» e «aproximar-se do centro do palco mundial»32.
Na segunda fase, de 2035 a 2049, Pequim aspira a que a China complete o seu desenvolvimento e alcance o «rejuvenescimento nacional», ou seja, tornando-se «próspera, forte, democrática, culturalmente avançada e harmoniosa». Entre outros objetivos, a China pretende nessa altura dispor de umas Forças Armadas de «classe mundial»33 e ter uma posição de «liderança» e «dominante» numa ordem mundial reformulada de acordo com a visão de uma «Comunidade Global de Futuro Partilhado»34.
O «poder nacional abrangente» da nova superpotência
A China é a maior beneficiária da ordem mundial pós «dupla Guerra Fria» e a grande ganhadora da globalização. Embora Xi Jinping afirme que «não há nenhuma mudança fundamental na tendência para um mundo multipolar»35, o crescimento do seu poder nacional abrangente faz da China uma verdadeira superpotência emergente e dá à estrutura de poder mundial uma configuração mais bipolar. Pequim declara que «o mundo está a passar pelas maiores mudanças no período de um século»36 e considera que «a configuração do poder estratégico está a tornar-se mais equilibrada»37. Por seu lado, Washington reconhece que «a distribuição do poder no mundo está a mudar [...] A China, em particular, é o único concorrente potencialmente capaz de combinar o seu poder económico, diplomático, militar e tecnológico para representar um desafio sustentado em um sistema internacional estável e aberto»38.
A base dessa ressurgência chinesa é económica. Com um crescimento contínuo e acentuado ao longo das últimas décadas, a China tornou-se na segunda maior economia do mundo em termos nominais e a maior em paridades de poder de compra (PPP), com um share no PIB mundial em PPP que saltou de 4%, em 1990, para mais de 19%, em 2021 - período durante o qual a parcela dos Estados Unidos diminuiu de 22% para menos de 16%39. Entretanto, a China tornou-se o maior exportador e também o maior importador mundial, com shares de 17,81% nas exportações mundiais e de 14,74% nas importações40, e o principal parceiro comercial de mais de 120 países, incluindo as outras maiores economias. Em 2020, por exemplo, a China era o primeiro parceiro dos Estados Unidos (representando um share de 11,9% do total das exportações e importações americanas), do Japão (significando uma parcela de 23,4% na globalidade do comércio externo japonês), da Índia (12%), da Coreia do Sul (25,3%), da Austrália (37,3%), do grupo ASEAN10 (24,4%) ou da UE27 (superando os Estados Unidos, pela primeira vez, e significando a China uma parcela de 16,1% da totalidade do comércio externo da União Europeia)41.
«Fábrica do mundo», a China é o maior fornecedor de muitos produtos e componentes, mas também de certos recursos estratégicos e sensíveis; por exemplo, um relatório recente da Comissão Europeia revela que só a China representa 52% do valor total das importações da União Europeia (UE) de produtos estratégicos a partir de países terceiros, representando igualmente 80% das importações dos Estados Unidos e 98% das da UE de «terras raras» - composto de 17 metais utilizados como componentes vitais para todo o tipo de produtos de alta tecnologia42. Ao mesmo tempo, a China é o maior mercado de quase tudo, de produtos agrícolas a cimento, de fármacos a automóveis, computadores ou telemóveis - crucial, portanto, para a produção e as exportações dos países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Paralelamente, a China tornou-se o maior consumidor e o maior importador mundial de energia o que, se, por um lado, traz novos riscos e desafios para o desenvolvimento económico da China e condiciona as relações externas de Pequim na busca de fornecedores e rotas seguras, por outro, faz da China um parceiro particularmente atrativo para muitos exportadores de matérias-primas, petróleo e gás natural, sendo a China hoje um ator crucial na geopolítica mundial da energia e de várias regiões do globo ricas em recursos energéticos. De igual modo, a China passou a ser o maior emissor de CO2, representando cerca de 30% das emissões mundiais de gases poluentes com efeito de estufa - o que afeta negativamente a imagem global da China e obrigou Pequim a acelerar medidas de transição energética e de proteção ambiental, mas torna também a China incontornável nos esforços globais contra as alterações climáticas.
O poder económico, comercial e industrial da China permite a Pequim desenvolver, de forma articulada, o poder chinês em todas as outras dimensões, da cultura à defesa, à ciência, à tecnologia ou à diplomacia. Por exemplo, a China é hoje uma grande potência tecnológica tendo, inclusivamente, destronado os Estados Unidos da primeira posição entre países com maior registo de patentes, pela primeira vez, em 2019, a que se somam quatro conglomerados chineses no top 10 das empresas que mais patentes registam no mundo, num ranking liderado anos consecutivos pela chinesa Huawei Technologies43. A China também expandiu a sua presença cultural; por exemplo, em 2000, a China não tinha institutos culturais em África, dispondo atualmente do segundo maior número desses institutos (Confúcio) no continente africano, ultrapassando o British Council, o Goethe-Institute alemão e os centros americanos.
Similarmente, a maior disponibilidade financeira tem permitido a Pequim aumentar significativamente o seu orçamento de defesa, em regra, na ordem dos dois dígitos anualmente (e sempre acima do crescimento do PIB chinês), subindo as despesas militares chinesas 76% só na década 2011-2020, segundo o SIPRI44. Ainda que distante do orçamento americano, a China aproxima-se gradualmente dos Estados Unidos, aumenta rapidamente a sua parcela no total mundial das despesas militares (13%, em 2020) e distancia-se cada vez mais das outras grandes potências45. Paralelamente, a RPC - potência nuclear desde 1964 e cujo Exército Popular de Libertação (EPL) é o maior exército do mundo, atualmente, com cerca de dois milhões de soldados no ativo - tem levado a cabo uma ampla «revolução dos assuntos militares com características chinesas», reforçando e modernizando as suas capacidades, designadamente navais, aéreas, de mísseis, nucleares, de transportes, comunicações, espacial e cibernética46.
Por exemplo, segundo o Pentágono, na sua estratégia de «antiacesso» e «negação de área», a RPC pretende quadruplicar o número de mísseis de longo-alcance e aumentar de 300 para mil o número de ogivas nucleares nos próximos dez-quinze anos. De acordo com o Ministério da Defesa japonês, entre 1991 e 2021, a China passou de zero para 1146 caças de quarta e quinta gerações, de zero para 51 submarinos modernos ou de zero para 71 fragatas e destroyers modernos47. E o Departamento de Defesa dos Estados Unidos reconhece mesmo que
«a China já alcançou a paridade - ou até excedeu - com os Estados Unidos em várias áreas de modernização militar [...] A RPC tem a maior marinha do mundo [...] A China é a maior nação produtora de navios do mundo em tonelagem e está a aumentar a sua capacidade de construção naval para todas as classes»48.
Entretanto, o regime chinês tem-se mostrado muito empenhado no desenvolvimento da fusão civil-militar, designadamente com esforços na fusão entre as bases industriais e tecnológicas de defesa e de âmbito civil49. Por outro lado, a China aumentou a sua influência no mercado mundial de armamentos: embora mais autossuficiente, continua a ser uma grande importadora (quinto no período 2016-2020) e tornou-se também um dos maiores fornecedores de armas (igualmente o quinto nesse ranking)50.
A conjugação e o fortalecimento dos vários aspetos do «poder nacional abrangente» chinês permitem a Pequim dispor de mais e melhores meios para promover os seus fins. Todavia, também tornam a China de Xi Jinping mais autoconfiante e assertiva nas suas ambições e reivindicações.
«Xiplomacia»: criando um mundo sinocêntrico e refazendo a ordem internacional sob liderança da china
A China de Xi continua a afirmar que a sua política externa se baseia nos tradicionais Cinco Princípios de Coexistência Pacífica (respeito mútuo pela integridade territorial e soberania de cada um, não agressão, não ingerência nos assuntos internos, igualdade e cooperação para benefício mútuo e coexistência pacífica), prossegue um «desenvolvimento pacífico» e uma «ascensão pacífica», e «nunca procurará a hegemonia». Isto é constantemente repetido nos mais variados documentos e discursos oficiais, incluindo o livro branco China e o Mundo na Nova Era publicado, em 2019, por ocasião do 70.º aniversário da proclamação da RPC, especificamente com o objetivo de «responder às questões do mundo sobre a China»51. As mesmas ideias são reafirmadas por Xi Jinping, como fez no discurso à 76.ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro de 2021, ano em que se celebrou o centenário do PCC e também o 50.º aniversário da adesão da China popular à ONU:
«devemos reforçar a solidariedade e promover o respeito mútuo e a cooperação de ganhos mútuos na condução das relações internacionais [...] a China nunca invadiu e nunca irá invadir ou intimidar outros, ou procurar a hegemonia [...]. A China continuará a trazer ao mundo novas oportunidades através do seu novo desenvolvimento»52.
Paralelamente, como parte da narrativa da Nova Era e do Sonho Chinês, Pequim promove o que chama de «Comunidade de Destino Comum para a Humanidade» ou «Comunidade Global de Futuro Partilhado»:
«A proposta da China de construir uma comunidade global de futuro partilhado visa resolver as questões práticas que o mundo enfrenta hoje e realizar o desenvolvimento pacífico e sustentável da humanidade. A proposta persegue o objetivo da harmonia universal e os princípios da cooperação e do benefício mútuo, opondo-se ao mesmo tempo à lei da selva, à política de poder e ao hegemonismo.»53
No entanto, estes princípios e retórica não inibem Xi de assumir também, expressamente, o objetivo de fazer da China «líder mundial em termos de força nacional compósita e influência internacional»54. Na realidade, a par do culto do «imperador» Xi Jinping, a «xiplomacia» marca uma nova abordagem da política externa chinesa muito mais afirmativa, proativa e assertiva quer em prol de uma Ásia e de um mundo sinocêntricos, quer da reformulação da ordem internacional.
A Ásia é, naturalmente, a região prioritária da política externa chinesa, e na direção da qual Xi Jinping declara uma espécie de «Doutrina Monroe com características chinesas» ou de «zona de coprosperidade asiática com características chinesas»:
«Em última análise, deixem os povos da Ásia gerir os assuntos da Ásia, resolver os problemas da Ásia e manter a segurança da Ásia [...]. Os países externos, por seu lado, devem respeitar a diversidade da nossa região e fazer a sua parte para facilitar o seu desenvolvimento e estabilidade»55;
«Os países asiáticos fizeram avançar a integração económica regional e trabalharam em união para prosseguir o desenvolvimento económico e social [...] Como membro importante da família asiática, a China continuou a aprofundar as reformas e a abrir-se, promovendo ao mesmo tempo a cooperação regional [...] a extraordinária viagem da China [...] exerceu uma influência significativa na promoção do desenvolvimento na Ásia e não só.»56
Nesta linha estão também slogans como «Novo Conceito de Segurança Asiático», «Ásia para Asiáticos», «Sonho Asiático», «Ásia Global» ou «Comunidade Asiática de Destino Partilhado»57 que ajudam a promover, desde 2012, a visão e a política asiática da China de Xi, parecendo fazer parte de uma estratégia de reconstrução de uma ordem asiática sinocêntrica.
Por outro lado, Pequim estabelece uma «distinção entre três elementos da “ordem mundial liderada pelos Estados Unidos”: o “sistema de valores americano”, o “sistema de alianças militares dos Estados Unidos” e “as instituições internacionais, incluindo o sistema das Nações Unidas”»58. Assim, quando os dirigentes chineses, e Xi concretamente, falam em «apoiar a ordem internacional» estão a referir-se unicamente ao terceiro daqueles elementos:
«existe apenas um sistema internacional, ou seja, o sistema internacional com as Nações Unidas no seu centro. Existe apenas uma ordem internacional, ou seja, a ordem internacional sustentada pelo direito internacional. E existe apenas um conjunto de regras, ou seja, as normas básicas que regem as relações internacionais sustentadas pelos objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas.»59
Esse apoio à ONU é exibido, por exemplo, no facto de a China se ter tornado o único dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança a estar, simultaneamente, posicionado entre os maiores contribuintes financeiros para o orçamento de peacekeeping da ONU (segundo lugar nesse ranking) e os maiores contribuintes com pessoal uniformizado nas missões das Nações Unidas (décimo nesse ranking)60.
Mas não é apenas isso, pois a China de Xi pretende alterar o sistema e a ordem internacionais e reivindica «[a]ssumir a liderança na reforma e desenvolvimento do sistema de governação global»61. E para essa reforma da ordem internacional e do sistema de governação global, Pequim usa todos os instrumentos dos seus poderes soft e hard.
Acordos de comércio livre: expandindo o socialismo com características chinesas através dos canais do capitalismo
A China usa o peso da sua economia e a dimensão do seu mercado para exercitar o seu poder de atração e influência. Além das parcerias bilaterais de tipos e amplitudes diversos que a China tem com dezenas de países e organizações de todas as regiões do mundo, Pequim estabeleceu acordos de comércio livre com o Camboja, as ilhas Maurícias, as Maldivas, a Geórgia, a Austrália, a Coreia do Sul, a Suíça, a Islândia, a Costa Rica, o Peru, Singapura, Nova Zelândia, o Chile, o Paquistão e a ASEAN. Somam-se o Asia-Pacific Trade Agreement (APTA) e negociações em curso tendo em vista outros acordos de comércio livre com o Conselho de Cooperação do Golfo, o Sri Lanka, Israel, a Noruega, a Moldova, o Panamá, a Palestina, a Colômbia, as Fiji, o Nepal, a Papua Nova Guiné, o Canadá, o Bangladesh e a Mongólia e ainda o trilateral China-Japão-Coreia do Sul62.
Aproveitando «contextos de oportunidade», a RPC tirou partido, por exemplo, da crise económico-financeira de 1997-1998 no Sudeste Asiático para incrementar o seu peso junto desses países, tal como aproveitou depois as dificuldades de muitos Estados, incluindo europeus, na sequência da crise económica global de 2008-2010 para promover os seus investimentos, créditos e acordos de comércio livre, expandindo a omnipresença e o soft power chineses. De igual modo, a crise provocada pela pandemia de covid-19 favoreceu e acelerou a centralidade económica e comercial da China de Xi, desde logo porque entre as grandes economias foi a única que registou crescimento do PIB, em 2020, e das que mais crescerá em 2021 e nos anos seguintes63 - o que não deixa de ser paradoxal, considerando que esta pandemia teve origem na China. Pequim revela, de facto, uma particular habilidade para tirar partido de todas as oportunidades e, por exemplo, no contexto do protecionismo inerente ao «America first» do Presidente Donald Trump, vincou repetidamente o apoio chinês à globalização económica e ao comércio livre: «A globalização económica é uma consequência irreversível do desenvolvimento económico global [...] Alguns países têm [...] recorrido a ações unilaterais, protecionistas e hegemónicas [...] conduzindo a economia mundial para a “armadilha da recessão”»64.
Mais recentemente, no período entre a derrota de Trump e a tomada de posse do Presidente Biden, a China de Xi assinou com outros 14 parceiros da Ásia-Pacífico - dez países da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN)65, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia -, em 15 de novembro de 2020, a Parceria Económica Abrangente Regional (RCEP), estabelecendo a maior zona de comércio livre do mundo; e a 30 de dezembro de 2020, a China e a eu chegaram a um acordo de princípio sobre o Acordo Global de Investimento (cai) bilateral. Entretanto, a 16 de setembro de 2021, dia seguinte ao anúncio do Aukus (nova aliança entre a Austrália, o Reino Unido e os Estados Unidos), a China formalizou pedido de adesão ao Acordo Abrangente e Progressivo para Parceria Transpacífico - estabelecido, em 2016, pelos Estados Unidos e mais 11 países ribeirinhos do Pacífico66, mas de onde o Presidente Trump retirara a América, em 2017.
Tudo isto é sintoma do soft power chinês, mas também de uma globalização cada vez mais sinocêntrica e da reconstrução do sistema internacional, incluindo mecanismos e áreas de comércio livre em que a China está e lidera e os Estados Unidos, simplesmente, não estão.
Multilateralismo e institucionalismo numa «estratégia de duas pernas»
Na realidade, a «xiplomacia» tem-se revelado muito ativa na utilização dos quadros multilaterais para expandir a influência chinesa e reformular a ordem internacional, numa «estratégia de duas pernas»: por um lado, desenvolve uma diplomacia de «revisionismo incorporado», isto é, atuando por dentro do universo onusiano e das restantes organizações internacionais de que passou a fazer parte e que foram estabelecidas, essencialmente, por norte-americanos e aliados e parceiros dos Estados Unidos; por outro, cria e desenvolve novos mecanismos e instituições centrados na China.
No final da «dupla Guerra Fria», a RPC já era membro permanente do CSNU, desde 1971, e do FMI e do Banco Mundial, desde 1980, quando tomou o lugar anteriormente ocupado pela República da China/Taiwan nessas instituições. E apesar das tensões provocadas pela tragédia de Tiananmen, foi rapidamente integrada na Cooperação Económica Ásia-Pacífico (APEC), em 1991, ano em que também se estabeleceu o Diálogo China-ASEAN. Mais importante seria depois a adesão da China à Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001. A China passou, igualmente, a fazer parte de múltiplos outros mecanismos e diálogos multilaterais, desde o Encontro Ásia-Europa (asem) ao G20, do Fórum Regional ASEAN (ARF) ao Fórum de Cooperação Ásia Oriental-América Latina (FEALAC), à Cimeira Ásia Oriental (EAS), à Iniciativa sobre Segurança dos Contentores (CSI) ou às «conversações a seis» sobre o programa nuclear e míssil norte-coreano. Inevitavelmente, a influência da China nesses organismos e quadros vem aumentando à medida do crescimento do seu poder nacional abrangente - como se vê na Organização Mundial de Saúde (OMS) em contexto de pandemia de covid-19.
Paralelamente, Pequim vem participando e, sobretudo, criando «realidades paralelas», isto é, inúmeros mecanismos de diálogo e cooperação bilateral, trilateral e multilateral. Exemplos disso constituem o triângulo estratégico China-Rússia-Índia e o diálogo trilateral China-Japão-Coreia do Sul; grupos como o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), o ASEAN+3 (China, Coreia do Sul e Japão) e instituições como a Organização de Cooperação de Xangai (SCO), atualmente com nove membros - China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão, desde 2001; Índia e Paquistão a partir de 2017; e o Irão, em 2021١ - e ainda três «observadores» candidatos à adesão (Afeganistão, Bielorrússia e Mongólia) e outros nove «parceiros de diálogo» (Arménia, Azerbaijão, Camboja, Nepal, Sri Lanka, Turquia e, desde 2021, Egito, Qatar e Arábia Saudita).
O «sistema sinocêntrico» envolve também o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) criado pelo BRICS e uma série de outros quadros de diálogo e cooperação, como a Cimeira China-África e o Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), o Fórum de Cooperação China-Estados Árabes, o Fórum China-Comunidade dos Estados da América Latina e Caraíbas (CELAC), o Fórum de Desenvolvimento Económico e Cooperação China-Países das Ilhas do Pacífico, o Fórum Boao para a Ásia, o China International Import Expo, o Fórum Económico Internacional de Hongqiao, a Expo China-ASEAN, a Expo China-Estados Árabes, a Expo Económica e Comercial China-África, a Conferência sobre Diálogo das Civilizações Asiáticas, a Conferência Mundial da Internet, o Fórum Macau com os Países de Língua Portuguesa ou o China+17 países da Europa Central e Oriental e Grécia.
A mais emblemática das iniciativas da China de Xi e da sua centralidade é a Nova Rota da Seda - ou Belt and Road Initiative (BRI) -, apresentada por Xi Jinping, em 2013. A BRI é o modelo paradigmático da «xiplomacia», em linha com o going out - bringing in e o go global e representando um poderoso instrumento para reforçar a cooperação de Pequim com países e grupos regionais, desde a Associação para a Cooperação Regional da Ásia do Sul (SAARC) à UE, ao Conselho de Cooperação do Golfo (GCC) ou à União Africana (UA), multiplicando, entretanto, plataformas como: Rota da Seda Digital, Rota da Seda Verde, Rota da Seda Polar ou Rota da Seda Saudável/da Saúde. No âmbito da BRI, a China já assinou acordos com mais de 160 países e organizações internacionais de todas as regiões do globo67, desde o Paquistão à Austrália, Tailândia, Singapura, Portugal, Grécia, Turquia ou Itália incluindo, portanto, membros da nato, da UE, do Quad ou do G7.
Para apoiar financeiramente os projetos da BRI, a China de Xi criou o Fundo Rota da Seda, em 2014, e o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas (AIIB), no ano seguinte. Quando o AIIB iniciou as operações, em janeiro de 2016, tinha 57 Estados-Membros fundadores; atualmente, conta com 91 membros e mais 12 potenciais membros68. Tendo-se tornado a terceira maior instituição financeira multilateral do mundo depois do FMI e do Banco Mundial, o AIIB é catalisador para a formação de uma nova ordem financeira. Além disso, em maio de 2017 e abril de 2019, Pequim organizou e acolheu, respetivamente, os primeiro e segundo Belt and Road Forum for International Cooperation (BRF), com representantes de mais de 140 Estados e organizações, incluindo largas dezenas de chefes de Estado e de governo. A lista de resultados do primeiro BRF apresenta um total de 1676 projetos e a do segundo BRF contempla 283 novos projetos concretos69.
A BRI contribui para a China de Xi diversificar rotas de abastecimento e escoamento, aumentar o seu peso económico, comercial e financeiro sobre os países e as regiões envolvidos e, naturalmente, incrementar a sua influência política e os seus fins geopolíticos e geoestratégicos. Por exemplo, a China tem mais portos no seu território do que qualquer outro país do mundo e, adicionalmente, as empresas chinesas, na sua maioria estatais ou controladas por Pequim, já investiram e adquiriram direitos de exploração em mais de 100 portos de mais de 60 países, incluindo muitos de importância internacional como os de Hambantota (Sri Lanka), Gwadar (Paquistão), Kyaukpyu (Mianmar), Darwin (Austrália), Haifa New Port (Israel), Kumport (Turquia), Pireu (Grécia) ou Roterdão (Países Baixos), bem como em cerca de um quinto dos portos africanos.
Desde o seu lançamento, a BRI tem provocado múltiplas reações e debates70. Para Pequim, a BRI «tem contribuído para a política, as infraestruturas, o comércio, e a conetividade financeira e interpessoal com base nas necessidades de cada país»71, insistindo Xi que essa sua iniciativa «persegue o desenvolvimento, visa benefícios mútuos, e transmite uma mensagem de esperança»72. Para Washington, todavia, «os países participantes na OBOR podem desenvolver uma dependência económica em relação ao capital da RPC e estar sujeitos a empréstimos predatórios, que a RPC pode aproveitar para prosseguir com os seus interesses geopolíticos»73. E consciente do poderoso instrumento que a BRI representa na grande estratégia da China de Xi, o Presidente Biden sugeriu aos aliados e parceiros dos Estados Unidos que «deveríamos ter, essencialmente, uma iniciativa semelhante, promovida pelos Estados democráticos»74. Em seguimento, a Cimeira do G7 de 11 a 13 de junho de 2021 propôs uma iniciativa alternativa à Nova Rota da Seda chinesa conduzida pelas democracias.
Quer no quadro da BRI quer em todas as instituições e mecanismos, Pequim tenta socializar as suas ideias e promover as suas mensagens. O próprio Xi Jinping sublinha esta importância: «Devemos procurar a compreensão e o apoio de outros países para o sonho chinês... Devemos aumentar o poder suave da China, dar uma boa narrativa chinesa e comunicar melhor a mensagem da China ao mundo»75. A Declaração da Cimeira de Pequim de 2018 do Fórum sobre a Cooperação China-África (FOCAC) espelha bem a narrativa chinesa: «Aplaudimos que, no âmbito da Iniciativa Cinturão e Rota, seja observado o princípio da consulta alargada, contribuição conjunta e benefícios partilhados»; «defendemos firmemente o multilateralismo e opomo-nos a todas as formas de unilateralismo e protecionismo»; «defendemos o respeito mútuo e a consulta equitativa, rejeitamos firmemente a mentalidade da Guerra Fria»76. E no comunicado conjunto final do primeiro Belt and Road Forum, os 30 chefes de Estado e de governo participantes declararam que «defendemos o espírito de paz, cooperação, abertura, transparência, inclusão, igualdade, aprendizagem mútua, benefício mútuo e respeito mútuo»77.
Noutro exemplo, a conetividade promovida através da BRI tem sido exibida por Pequim no contexto da pandemia de covid-19: «Ligando mais de 100 cidades em mais de 20 países da Europa e da Ásia, o China Railway Express deu uma contribuição notável para a estabilização das cadeias industriais e de abastecimento internacionais durante a pandemia de covid-19»78.
A «boa narrativa chinesa» é veiculada também através de vigorosas campanhas nos órgãos de comunicação estatais, nas redes sociais cibernéticas e pelos influencers controlados por Pequim ou ainda através da publicação de uma multiplicidade de «livros brancos» oficiais em língua inglesa - num total de 76, só entre 2012 e 2021, em número crescente anualmente e cobrindo uma ampla gama de assuntos, desde direitos humanos e democracia na China às suas relações com a OMC, da defesa ao ambiente, questões do Tibete e Xinjiang, políticas chinesas para o Ártico e para África, mar do Sul da China ou atividades espaciais79.
O «poder suave» da China de Xi inibe muitos governos de criticar Pequim ou leva-os a apoiar as políticas chinesas e candidatos chineses nas agências da ONU e de outras instituições internacionais. Isso mesmo é percetível nas muitas resistências às pressões americanas no sentido do «desacoplamento» face à China, restrições à tecnologia 5G ou à Huawei chinesas ou na falta de coesão de certas organizações, incluindo a nato, a UE ou a ASEAN em assumirem posições uníssonas e mais duras contra Pequim. Por exemplo, em outubro de 2020, em contraponto a uma declaração de 39 países que criticava Pequim pela imposição da nova Lei de Segurança Nacional em Hong Kong, um grupo de 54 países (entre os quais 27 africanos) assinou na ONU uma declaração de apoio à RPC.
Estratégia «wolf-warrior»
A fim de alcançar os objetivos sob a bandeira do «socialismo com características chinesas na nova era», e além da concentração de poder em Xi Jinping, a China tem vindo a produzir um conjunto amplo de legislação que, a pretexto do reforço do «Estado de direito» ou da luta contra a corrupção e antiterrorista, vai quase sempre no sentido de consolidar o controlo e a vigilância do regime sobre as empresas, os cidadãos e as novas tecnologias80. Igualmente nesse sentido, podem referir-se o apertado controlo estatal do ciberespaço e das redes sociais, o alargamento em larga escala da áudio e videovigilância, os «sensores comportamentais inteligentes» e as «cidades inteligentes» ou o novo programa de «crédito social» com atribuição e retirada de pontos (e consequentes benefícios/punições sociais) em função do respetivo comportamento político e cívico. Exemplo da peculiaridade chinesa e da estratégia do regime de Pequim para controlar os vários setores da sociedade, silenciar putativos movimentos críticos e favorecer vozes abonatórias é a promoção de «organizações não governamentais organizadas pelo Governo» ou «Gongo» chinesas, nas mais variadas áreas, do ambiente às minorias étnicas81.
Paralelamente, Pequim reforçou a repressão em províncias como o Tibete e o Xinjiang e cerceou as liberdades democráticas e a autonomia das suas regiões administrativas especiais de Macau e Hong Kong - aqui, em particular, com a imposição da nova Lei de Segurança Nacional, em 30 de junho de 2020, na prática pondo fim ao princípio «um País, dois sistemas» e violando a Lei Básica de Hong Kong e o compromisso celebrado com o Reino Unido.
O reforço dos mecanismos repressivos na China de Xi está em linha com uma postura também muito mais assertiva e, frequentemente, mesmo confrontacional nas suas relações externas. Globalmente, esta postura pode ser referida como a estratégia do «lobo-guerreiro» (wolf-warrior), designação de filmes chineses com o mesmo título, muito populares na China82.
Esta postura é visível no recurso mais frequente à coerção económica para sancionar governos críticos e certas opções de outros países, seja ameaçando seja impondo proibição de importações, aumento de tarifas, restrições ao investimento, suspensão de créditos, boicotes a produtos e outras medidas tendo em vista alterar o comportamento dos visados e desencorajar outros de prosseguirem ações similares. Por exemplo, em 2016, após a visita do Dalai Lama à Mongólia, Pequim suspendeu as conversações sobre um crucial empréstimo de assistência, aumentou as taxas de importação de produtos mineiros da Mongólia e fechou temporariamente uma importante passagem fronteiriça. No ano seguinte, foi a vez da Coreia do Sul sofrer a pressão económica e diplomática de Pequim depois de aprovar a instalação no seu território do sistema Terminal High-Altitude Area Defense (THAAD) americano. Mais recentemente, após a Austrália ter apelado a uma investigação independente sobre as origens da pandemia de covid-19 na China, Pequim suspendeu as importações de carne bovina das fábricas australianas, impôs uma tarifa de 80,5% sobre as suas exportações de cevada para a Austrália e impôs ainda restrições a importações de carvão australiano. Também as empresas privadas são alvo da sanção chinesa: depois de ter publicado uma declaração, em setembro de 2020, em que expressava preocupação com o trabalho forçado em Xinjiang, a empresa sueca de vestuário H&M foi duramente criticada pelo Ministério do Comércio e pelos média chineses, sendo objeto de um boicote generalizado dos seus produtos na China e banida de várias plataformas digitais chinesas, registando descidas de 28% de vendas e tendo que fechar mais de 20 lojas na China só nos primeiros meses de 202183.
Além de sanções económicas, Pequim vem reagindo duramente também por via de boicotes diplomáticos e tecnológicos, acusações públicas e expulsão ou proibição de entrada em território chinês, envolvendo-se em sucessivas fricções com um número crescente de países, dos Estados Unidos à Lituânia, Austrália, Canadá, Reino Unido ou UE. Por exemplo, no final de março de 2021, em reação à aprovação pela UE de sanções contra quatro dirigentes chineses por violações dos direitos dos uigures na região de Xinjiang (ao lado dos Estados Unidos, do Canadá e do Reino Unido, naquelas que foram as primeiras sanções da União desde a tragédia de Tiananmen, em 1989), Pequim retaliou bruscamente com sanções e proibição de entrada em território chinês contra dez cidadãos europeus (incluindo cinco deputados ao Parlamento Europeu) e quatro entidades (incluindo o Comité Político e de Segurança do Conselho da UE e a Subcomissão dos Direitos do Homem do Parlamento Europeu)84, com um comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês a acusar a UE de «prejudicar gravemente a soberania e os interesses da China e difundir maliciosamente mentiras e desinformação» e a ameaçar que «se a UE não corrigir o seu erro, haverá mais medidas»85.
Noutro exemplo, em novembro de 2021, Pequim reduziu as relações diplomáticas com a Lituânia a nível de «encarregado de negócios» dias depois de Vilnius ter autorizado a abertura de um escritório representativo de Taiwan com a designação formal de Gabinete de Representação de Taiwan (Taiwanese Representative Office) - em vez de «Taipé Chinesa» que Pequim aceita e é o nome utilizado pela generalidade dos países e organizações internacionais para evitar ofender a RPC -, com o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês a afirmar que essa decisão do Governo lituano «minou a soberania e a integridade territorial da China» e criou um «mau precedente internacional»86.
Por outro lado, Xi Jinping afirma que «o sucesso de um país não tem de significar o fracasso de outro»87, mas o desafio da China de Xi aos Estados Unidos deixou de ser soft e indireto para ser hard e direto. A competição entre os Estados Unidos e a China não é nova, sendo há décadas alimentada pelas muitas diferenças, divergências e disputas, mas, nos últimos anos, as relações entre ambos degradaram-se substancialmente. E, por exemplo, o mais recente livro branco de defesa da China afirma que «[a] competição estratégica internacional está a aumentar», acusando diretamente os Estados Unidos de «adotar políticas unilaterais», «provocar e intensificar a competição», «subverter a estabilidade estratégica global» e procurar «superioridade militar absoluta»88.
Mais confiante com o crescimento do seu poder nacional abrangente e percecionando o declínio americano, a China de Xi passou a reagir às políticas de Washington na «mesma moeda», da guerra de tarifas a boicotes tecnológicos, sanções a empresas americanas, acusações públicas com retórica belicista, detenção de alegados espiões ou expulsão e proibição de entrada no seu território de cidadãos, políticos e ONG americanos. Essa tensão competitiva aumentou desde a Administração Obama, escalou durante a Presidência Trump e agravou-se, em 2020, no contexto da crise pandémica de covid-19 e da campanha para as eleições presidenciais americanas. A assertividade e a postura desafiadora da China de Xi contribuiu muito para o consenso bipartidário que emergiu nos Estados Unidos em prol de uma abordagem mais dura face a Pequim, e que subiu novamente de tom já durante a Presidência Biden89.
Pequim tem reagido com hostilidade às manobras de neo-containment promovidas pelos Estados Unidos, incluindo acusações de que o Quad e o Aukus corporizam tentativas de criar uma «nato asiática» ou que Washington está a desencadear uma «nova corrida aos armamentos» e «ameaça a paz e a estabilidade regional e internacional». Segundo Xi Jinping,
« [n]ão devemos deixar que as regras estabelecidas por um ou alguns países sejam impostas aos outros [...] Os grandes países devem comportar-se de uma forma adequada ao seu estatuto [...] As tentativas de “erguer muros” ou “desacoplar” são contrárias às regras da economia e aos princípios do mercado [...] devemos rejeitar a mentalidade da guerra fria e de soma nula e opor-nos a uma nova “Guerra Fria” [...] Mandar nos outros ou imiscuir-se nos assuntos internos dos outros não obterá qualquer apoio»90.
Na realidade, Xi e Biden dizem não querer uma «nova Guerra Fria», mas só o facto de o referirem já é bastante significativo - e, na prática, parecem ambos empenhados em promovê-la, por razões internas e externas.
Ao mesmo tempo, Pequim reforçou os seus laços e parcerias com países e regimes proscritos da «ordem internacional americana», desde a Coreia do Norte ao Mianmar, Cuba, Venezuela ou Irão, bem como com parceiros e aliados dos Estados Unidos mais desavindos com Washington, do Paquistão à Hungria, Egito ou Turquia. Com a Rússia de Putin, em particular, a China de Xi cultiva uma estreita articulação que se intensificou desde a anexação russa da Crimeia, em 2014, no âmbito da bilateral «parceria estratégica global de coordenação para uma nova era»91. A Rússia é o principal fornecedor de energia e de armamento à China, e essa articulação estratégica e militar envolve também pressões que parecem combinadas no timing de Moscovo sobre a Ucrânia e de Pequim sobre Taiwan, como aconteceu na primavera e no outono de 2021. Noutro exemplo, a Rússia replicou basicamente os argumentos da China criticando o Aukus e, no início de outubro de 2021, levaram a cabo os exercícios bilaterais navais Joint Sea 2021 no mar do Japão, e, no final do mesmo mês, realizaram o primeiro exercício de patrulha conjunta China-Rússia no Pacífico Ocidental. Esta quase-aliança RPC-Rússia não resulta de serem membros de uma «internacional autocrática», mas por considerarem que isso serve os seus respetivos objetivos geopolíticos: conter a supremacia dos Estados Unidos, dividir o Ocidente e as potências democráticas, suprimir influências políticas liberais nas organizações e convenções internacionais e alterar a ordem mundial.
O uso do instrumento militar é, de facto, outra característica da grande estratégia da China de Xi. E muito para lá da promoção do seu «contributo» para a segurança internacional nas missões da ONU ou da estratégia «de baixo custo, baixo risco e alto desempenho» em África92. Por exemplo, apesar de ter sempre afirmado que nunca teria bases militares em países estrangeiros, em agosto de 2017, Pequim estabeleceu a sua primeira base militar estrangeira (naval) no Jibuti, com um contingente de mais de dez mil soldados, estrategicamente no cruzamento das rotas comerciais e energéticas da BRI. E segundo o Pentágono,
«a RPC está a procurar instalações militares adicionais para apoiar a projeção de poder naval, aéreo, terrestre, cibernético, e espacial em países como Camboja, Mianmar, Tailândia, Singapura, Indonésia, Paquistão, Sri Lanka, Emirados Árabes Unidos, Quénia, Seicheles, Tanzânia, Angola e Tajiquistão»93.
A somar às múltiplas incursões chinesas nas áreas disputadas com a Índia e ao longo da extensa Linha de Controlo Atual (LAC) mútua, em junho de 2020, uma escaramuça entre militares de ambos os lados no vale de Galwan, numa região fronteiriça dos Himalaias, resultou na morte de 20 soldados indianos (desconhecendo-se se e quantos terá havido entre chineses), marcando a primeira perda de vidas na LAC desde 1975. Poucos dias depois, imagens de satélite mostravam o que parecem ser infraestruturas militares chinesas perto do local desse incidente e que não existiam antes94.
Outro exemplo é o estabelecimento, pela primeira vez, em novembro de 2013, de uma zona de identificação de defesa aérea (ADIZ) da RPC no mar da China Oriental, sobrepondo-se a parte das ADIZ anteriormente traçadas por Taiwan, Japão e Coreia do Sul e incluindo nessa ADIZ chinesa as ilhas Senkaku/Diaoyu/Tiaoyutai que Pequim reivindica a Tóquio ou a ilhota-rocha de Ieodo/Suyan/Socotra que reivindica a Seul. Com efeito, nos últimos anos, tem-se assistido a uma intensificação das atividades da China em zonas disputadas no mar da China Oriental, incluindo o aumento expressivo das incursões de aeronaves e navios de guerra e da guarda costeira chineses nas águas territoriais e no espaço aéreo próximos das ilhas Senkaku japonesas, naquilo que o Japão e os Estados Unidos consideram ser uma estratégia chinesa para «alterar unilateralmente o statu quo»95.
O mesmo se pode dizer da postura da China de Xi no mar do Sul da China, e que também exemplifica a diferença entre a retórica e a prática de Pequim. A China reivindica 80% a 90% do mar da China do Sul com base na «linha das nove raias» que traçou unilateralmene, há décadas, com base em alegados «direitos históricos», aí incluindo os disputados arquipélagos Paracel e Spratly e o recife de Scarborough Shoal/banco de Macclesfield e sobrepondo-se quer às áreas de soberania e águas territoriais, quer às ZEE reclamadas por vários Estados do Sudeste Asiático - Filipinas, Brunei, Malásia e Vietname96. Em julho de 2016, na sequência de uma ação interposta pelas Filipinas, o Tribunal Permanente de Arbitragem (PCA) sentenciou que «as pretensões da China a direitos históricos, ou outros direitos soberanos ou jurisdição, relativamente às áreas marítimas no mar do Sul da China abrangidas pela parte relevante da “linha das nove raias” são contrárias à Convenção [UNCLOS] e sem efeito legal»97. No entanto, apesar de constantemente afirmar defender uma «ordem baseada em regras» e de ser parte da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), Pequim não só não respeita a decisão do PCA98 como intensificou, desde então, a militarização e o reforço das suas posições no mar do Sul da China, incluindo pela contínua construção de aterros em ilhas, atóis e recifes que controla expandindo infraestruturas militares, frequentes exercícios militares, incidentes sucessivos com embarcações e aeronaves de outros países e recriação da sua administração das ilhas e recifes disputados99, criando situações de facto e parecendo querer impor uma espécie de mare nostrum ou mare clausum100.
Mais agressiva ainda se tornou a China de Xi em relação a Taiwan, escalando as suas ameaças de uso da força com atividades que incluem múltiplos, sucessivos e cada vez mais poderosos exercícios militares e incursões nos espaços aéreo e marítimo taiwaneses. Em 2020, Pequim refutou publicamente a existência da «linha mediana» no estreito de Taiwan que existia há décadas por um acordo tácito com o objetivo de reduzir os erros de cálculo e evitar acidentes. E, por exemplo, no início de outubro de 2021, nos dias imediatamente a seguir ao 72.º aniversário da China Popular e como parte dessas celebrações, mais de 150 caças e bombardeiros chineses entraram na ADIZ de Taiwan, agudizando tensões que levaram Biden a telefonar ao homólogo Xi e de onde resultaria a primeira cimeira bilateral entre os dois presidentes que teria lugar, de modo virtual, no dia 15 de novembro seguinte101.
Essa pressão militar chinesa é acompanhada de constante retórica belicista, como as referências a que qualquer movimentação no sentido da independência de Taiwan «significa guerra»102. O tom ameaçador é verbalizado pelo próprio Xi Jinping. Por exemplo, no dia 2 de janeiro de 2019, num discurso celebrando o 40.º aniversário da «Mensagem aos Compatriotas de Taiwan» de Deng Xiaoping, Xi sublinhou que «A China deve ser e será reunificada... Não fazemos nenhuma promessa de renunciar ao uso da força e reservamos a opção de recorrer a todos os meios necessários»103. E no discurso celebrando o 100.º aniversário do PCC, no dia 1 de julho de 2021, repetiu que:
«Resolver a questão de Taiwan e realizar a reunificação completa da China é uma missão histórica e um compromisso inabalável do Partido Comunista da China [...] Devemos tomar medidas resolutas para derrotar totalmente qualquer tentativa de “independência de Taiwan” [...] Ninguém deve subestimar a determinação, a vontade e a capacidade do povo chinês de defender a sua soberania nacional e a sua integridade territorial.»104
Considerações finais
Genericamente, os objetivos da China de Xi podem ser sintetizados na seguinte lista de prioridades: manutenção do «papel dirigente» do PCC para construir o «socialismo com características chinesas» e a «realização do comunismo»; preservar a soberania chinesa contra «ingerências externas» nos seus «assuntos internos»; manter a integridade territorial (incluindo nos mares da China do Sul e Oriental e outras reivindicações territoriais e fronteiriças) e concluir a «unificação da China» (questão de Taiwan); promover o crescimento do seu «poder nacional abrangente» e «o Sonho Chinês de rejuvenescimento nacional»; «restaurar a posição central da China» e «reconstruir» o sistema internacional, com a China numa posição «dominante»; «reformar» a ordem mundial e a governação global, com a China na «liderança» de uma «comunidade global de futuro partilhado». Entretanto, a China de Xi antecipou no tempo alguns objetivos traçados anteriormente e delineou novos num ambicioso plano ligado a «dois centenários» simbólicos: o do PCC, em 2021, e o da China Popular, em 2049. Segundo Xi Jinping, a China já alcançou o grande objetivo associado ao primeiro centenário de «completar a construção de uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspetos» entrando, portanto, numa nova fase visando a «construção de um país socialista moderno» até ao segundo centenário.
A grande estratégia da China de Xi para a «Nova Era» parece estar a ser bem-sucedida, acelerando o crescimento do seu poder nacional abrangente e elevando-se à categoria de nova superpotência. Tirando partido do seu peso económico e comercial e das oportunidades que se lhe oferecem, a «xiplomacia» tem tido êxito na angariação de parceiros e acordos de comércio livre e na promoção da sua influência nas instituições internacionais através da «estratégia de duas pernas»: atuando dentro das organizações criadas, essencialmente, por americanos e aliados e parceiros dos Estados Unidos - da ONU ao FMI, Banco Mundial, APEC ou OMC - e, por outro lado, criando novos quadros e mecanismos centrados na China, do BRICS à SCO, BRI, AIIB ou RCEP. No seu conjunto, os laços económico-comerciais e os mecanismos de diálogo e cooperação bi, tri e multilaterais constituem um excecional meio para a China de Xi promover os seus objetivos de desenvolvimento, mas também geopolíticos: aumentando a influência na sua vizinhança e no mundo, impulsionando o papel normativo de Pequim como produtor de regras e princípios alternativos, cultivando a imagem de grande potência global responsável, constituindo-se como modelo de modernização para os países em desenvolvimento e os regimes autocráticos, dividindo o «Ocidente» e dissuadindo a formação de uma grande coligação anti-China e lógicas de «qualquer um menos a China».
Ao mesmo tempo, a China de Xi abandonou a postura de low profile inerente à «estratégia dos 24 caracteres» dos seus antecessores desde Deng Xiaoping para adotar uma estratégia wolf-warrior muito mais assertiva, desafiadora e mesmo confrontacional, tentando acelerar a obtenção dos seus fins, sancionando e dissuadindo os seus críticos e criando uma área de influência, seja através da coerção económica e diplomática seja da ameaça e do uso do poder militar, designadamente, na Ásia do Sul, nos mares da China do Sul e Oriental e contra Taiwan.
A China de Xi parece imparável, mas são muitos os desafios que enfrenta, interna e externamente. O novo estatuto de superpotência atrai amigos, mas também acarreta custos e a atenção de rivais. E a sua assertividade está a provocar reações adversas numa magnitude que talvez Pequim não tenha antecipado. Apesar das profundas interdependências e das muitas questões que implicam a articulação e acomodação mútua, os Estados Unidos parecem definitivamente empenhados no neo-containment da China. Taiwan está mais determinado em manter a sua independência de facto. Vários países do Sudeste Asiático mostram-se crescentemente dispostos a contrabalançar Pequim no mar do Sul da China. Depois de anos de ambiguidade estratégica, a Índia e a Austrália estão a alinhar no contrapeso à China, como se verifica no Quad ou no novo Aukus. Vários países da Ásia-Pacífico aumentam os seus orçamentos de defesa e programas de modernização militar em contrapeso à China. Muitas economias pelo mundo fora estão a limitar investimentos chineses em setores estratégicos e a procurar formas de diminuir a dependência das cadeias de produção e de fornecimento com origem na China. A Cimeira do G7 de 2021 propôs uma iniciativa alternativa à Nova Rota da Seda chinesa conduzida pelas democracias, e a União Europeia lançou, em 1 de dezembro de 2021, a nova estratégia Global Gateway com um ambicioso plano de financiamento de infraestruturas largamente concorrente da BRI chinesa105. Um número crescente de Estados avança no «desacoplamento» tecnológico face à China. São, igualmente, cada vez mais os governos que criticam aberta e frontalmente certas políticas de Pequim. O acordo CAI UE-China está congelado, e vários membros do CPTPP manifestam-se contra a adesão da China. O novo conceito estratégico da nato vai, pela primeira vez, incluir referências à China…
Visto por este prisma, a grande estratégia da China de Xi parece ter ido longe demais e depressa demais. A outrora imagem geral da China de «panda benigno» reparte-se agora com outra de «dragão ameaçador». Várias regiões do globo, da Europa ao Pacífico Sul, África, Ásia do Sul, Sudeste e Oriental ou América Latina estão divididas entre manter e reforçar laços com a China ou restringir e contrariar esses laços. Num sistema internacional extraordinariamente complexo, dinâmico, coevolutivo e em profunda mutação, é ainda cedo para perceber todos os impactos da grande estratégia da China de Xi, mas é claro que o mundo no século XXI depende muito do que a China quer, fizer e conseguir. Confiante, Xi Jinping continua a considerar que «o tempo e a dinâmica estão do lado da China»106. Será que estão?