A cimeira de junho de 2021, que correu efetivamente muito bem, assinalou: a desejada reunião entre os dois lados do Atlântico; questões que importa examinar a montante da edificação de um novo e necessário Conceito Estratégico (calendarizada para 2022); e velhas e novas matérias que urge examinar, debater e consensualizar.
O atual momento de reflexão afigura-se-me, pois, como o ideal para olharmos o futuro com consistência, ambição e, acima de tudo, sem deixar para trás as questões importantes que instam clarificar. Para tal, proponho partir de um revisitar de algumas das temáticas discutidas na cimeira e de outras que têm mesmo de ser discutidas1.
O que se discutiu na cimeira
Podemos dizer que se discutiu e, mais do que isso, se definiu um roadmap muitíssimo bem coordenado e dotado de linhas de ação bem definidas, muitas delas claramente estruturadas num documento, apresentado pelo secretário-geral (SG), intitulado «NATO 2030»2. De entre as várias linhas de ação, gostaria de convidar-vos a revisitar as seguintes:
• Promoção do aumento das consultas políticas e de coordenação entre os aliados, operacionalizada na proposta do SG para incrementar as consultas formais e informais aos vários níveis já existentes, desde as normais cimeiras aos encontros entre ministros - tanto dos Negócios Estrangeiros como da Defesa, em alguns casos inclusive do Interior e/ou da Administração Interna - até aos encontros (mais frequentes) entre diretores de política de defesa. Uma linha de ação cuja ideia central passa por reduzir bloqueios e agilizar mecanismos de decisão através do recurso a instrumentos de respostas aliadas, mais flexíveis e efetivos. Uma ideia que, embora questionada por alguns aliados, preocupados acerca da eventualidade de tal poder refletir-se num aumento de burocracia e do número de reuniões, pareceu, ainda assim, acolher consenso e aceitação.
• Reforço da dissuasão e defesa, na habitual postura 360 graus e num aumento da coesão da região euro-atlântica, através do compromisso com o Conceito de Dissuasão e Defesa da Área Euro-Atlântica (DDA), o NATO Warfìght Capstone Concept (NWCC), o Defence Investment Pledge de Gales, da modernização da NATO Force Structure e da prontidão das forças. Propostas que não são «mais do mesmo», uma vez que refletem uma postura mais aberta, que possibilita a que os aliados possam responder com eficácia a uma nova dinâmica, tanto no plano das ameaças e riscos como das tecnologias emergentes e domínios operacionais (caso do espaço e do ciberespaço) que se detalham mais à frente3.
• Aumento da resiliência, em virtude do combate à pandemia de covid-19. Uma matéria percebida, mais do que uma buzzword, como uma oportunidade efetiva para passar de um sistema baseado em iniciativas avulsas e reativas, que caracterizaram os primeiros momentos de resposta da comunidade internacional, para o estabelecimento de um sistema verdadeiramente «resiliente», integrado, civil-militar, interagência, intraestatal e promotor de provadas, eficazes e eficientes sinergias entre os esforços para incrementar, maturar e consolidar a resiliência, tanto nacional como internacional.
• Ambição para garantir e preservar uma determinada vanguarda tecnológica que possibilite, como referido anteriormente, um efetivo aumento do poder de dissuasão. O lançamento do modelo de governação e de financiamento da Defence Innovation Accelerator for the North Atlantic (DIANA), que deverá atingir a Final Operational Capability (FOC) na cimeira de 2025, foi um dos mecanismos em desenvolvimento identificados. Um outro mecanismo foi a prevista criação, entre os aliados que assim o pretendam, de um NATO Venture Capital Fund, que possibilite impulsionar start-ups no âmbito das emerging disruptive technologies (EDT) de duplo uso (civil e militar) e garantir, assim, a vantagem da Aliança face a outros competidores internacionais, nomeadamente a China e a Rússia, sem, contudo, tal ficar circunscrito a estes países.
• Defesa de uma ordem internacional regulada através da intensificação do diálogo político e do aumento da cooperação com parceiros da Ásia-Pacífico e da Índia. Uma linha de ação operacionalizada, por exemplo, mediante o incremento na cooperação com os países do Diálogo do Mediterrâneo e na Iniciativa de Cooperação de Istambul, com a ONU e com o G20. Realça-se, em linha com cimeiras anteriores, a forte aposta numa cooperação ainda mais reforçada entre a NATO e a União Europeia (UE).
• Ambição, recém-surgida, para prestar mais atenção ao Sul, e ao Sul do Sul, incluindo o aumento do treino e da capacitação de parceiros da NATO. Uma ambição traduzida numa efetiva edificação de um Comando de Treino e Cooperação. Destaca-se, por exemplo, a este nível, o reforço da ação do Hub for the South, na Itália, que é bem demonstrativo das crescentes preocupações da Aliança para com as ameaças e riscos provenientes do seu Flanco Sul. Ameaças e riscos vistos tanto no espaço mais próximo aos países da NATO (Mediterrâneo, Norte de África e Médio Oriente) como numa região mais afastada (em especial na grande faixa de mar-terra-mar que liga o golfo da Guiné ao golfo de Adém), a qual apresenta-se como uma grande área em aumento crescente de instabilidade endémica e em acrescidas disputas geopolíticas entre grandes atores internacionais.
• Combate às alterações climáticas, à proteção dos recursos globais, à segurança marítima e ao cuidado com os movimentos migratórios descontrolados. Uma linha de ação, ou quiçá dimensão transversal, presente em múltiplos cenários de atuação para as respostas operacionais por parte da Aliança, que pode evoluir de forma decisiva no âmbito das relações NATO-UE e, naturalmente, das relações com outras grandes organizações internacionais como a ONU.
Houve mais temas e mais intervenções nesta que foi apelidada de «cimeira do reencontro dos Estados Unidos com os aliados NATO».
Também se discutiram as ameaças «Rússia e terrorismo internacional» e a China como challenge, desta vez com um acrescento systemic challenge, à imagem do que vem sendo referido pela Administração americana em muitos dos seus documentos de policy. Concernente à Rússia, foram muitos os aliados que defenderam a política do dual-track para garantir quer o aviso e a adoção de uma postura assertiva, quer a porta aberta ao diálogo. Relativamente à China, emergiu a clarificação de que não se trata de uma «ameaça militar» e que, como em muitos campos, tratando-se de um «parceiro credível», deverão, por isso, existir mais mecanismos catalisadores para um permanente diálogo NATO-China.
Discutiram-se, ainda, possibilidades para fazer crescer os fundos comuns (orçamento civil, orçamento militar e orçamento de segurança), tendo também sido várias as nações que defenderam que tal teria de estar diretamente relacionado com os requisitos, em termos de necessidades, das operações e missões.
Finalmente, e ainda longe do ano de 2030, destacou-se a proposta para um novo Conceito Estratégico em 2022, que todos desejaram que se apresente ambicioso, exequível e aceite por todos os aliados, exigindo, para isso, um intensificar da discussão, a montante, dos temas que ainda necessitam de maior clarificação4.
O que temos mesmo de discutir
Que a NATO não é um projeto «messiânico», antes, como provam os mais de setenta anos da sua existência, uma Aliança «pragmática». Uma Aliança «pragmática» que, através de um mecanismo de decisão baseado no consenso5 (alicerçado em consultas e negociações), tem conseguido estar à altura de desafios passados, de desafios presentes e, previsivelmente, de desafios futuros. Não obstante surgirem de quando em vez propostas para flexibilizar os mecanismos de decisão política - que, ao nível estratégico, operacional e tático podem de facto evoluir -, o core da decisão política, que possibilita empenhar meios em operações militares, afigura-se como um denominador que, muito provavelmente, deverá continuar nas mãos da unanimidade política de todos os membros6.
Que a natureza político-militar da NATO já não deixa dúvidas. Curiosamente, esta continua a ser uma discussão recorrente, mas que em nada tem mudado a postura da Aliança. Se algo tem sido reforçado nos últimos anos é o carácter mais político da mesma, porque a subordinação militar à decisão política mantém-se desde sempre clara. A natureza dos meios militares constitui a espinha dorsal da NATO7. Contudo, a decisão e a análise do seu emprego foram e são políticas. Uma discussão que parece não ter fim; porém, acredito, é uma discussão completamente terminada num futuro próximo, porque a evidência ultrapassa a questão, e porque a práxis prova o modelo de sucesso conseguido. Simples.
Que a abrangência e a inclusão, cada vez mais claras, entre a defesa e a segurança, incluem uma estreita articulação com a dimensão da diplomacia. No futuro, como ficou visível no exemplo da discussão sobre a resiliência, esta será uma questão que encarará sempre, sem exceções, as dimensões da defesa, da segurança e da diplomacia como inseparáveis. Terá de haver respostas, concertadas, articuladas e coerentes, sempre, nestas dimensões, que, em muitos casos, nem sequer será possível serem trabalhadas de forma separada.
Que, além da integração das três dimensões anteriores (defesa, segurança e diplomacia), deve também ser sempre incluída a dimensão do desenvolvimento. Um conjunto de dimensões que a NATO, quer no planeamento quer na execução das suas operações, deverá ter sempre presente, numa visão de lado a lado. Para além da estreita articulação das quatro dimensões suprarreferidas, importa enfatizar a também estreita articulação, ou como que «subarticulação», entre duas delas, especificamente a segurança e o desenvolvimento. O seu nexo e o seu efeito cruzado, porque sem segurança não há desenvolvimento e sem desenvolvimento não há, verdadeiramente, segurança. Duas dimensões que têm de ser analisadas e trabalhadas em conjunto, em complementaridade e em reforço uma da outra.
Que a tradicional divisão do estudo em «ameaças e riscos» traduz-se, para uma cada vez mais presente classificação, em «adversários e desafios (challenges)». É interessante, mas não é verdadeiramente inovador, porque de uma forma ou de outra nenhuma questão fica de fora. Na minha opinião, ganhávamos em alargar estas designações para «ameaças, desafios e riscos». Nas ameaças, garantíamos que analisávamos entidades com intenção «contra» os aliados. Nos desafios, incluíamos as possibilidades de alguns atores poderem, pelo seu poder, vir a tornar-se em ameaças num determinado futuro. Por último, e mantendo a dimensão dos riscos, continuaríamos a estudar, de perto, as questões que se prendem com o uso e abuso relativamente, entre outras realidades, aos recursos globais (global commons), às alterações climáticas, aos fenómenos extremos e às demografias descontroladas8.
Que não faz sentido uma discussão entre «Estados Unidos e Europa», «Europa e Estados Unidos», «autonomia» ou «complementaridade». Uma Europa mais forte corresponde a uma NATO mais resiliente. Alguma autonomia que a Europa consiga, deve ser vista em favor dos aliados norte-americanos e não em competição com estes. Uma aproximação que começa, felizmente, a ficar cada vez mais clara.
Que a NATO é uma organização regional com preocupações globais. É uma Aliança regional, pela via da defesa coletiva com áreas físicas bem determinadas, que tem também um carácter transnacional, considerando que as inúmeras ameaças e riscos (no espaço e no ciberespaço9, e concernente aos recursos comuns e ao terrorismo transnacional), obrigam a uma atenção e a uma capacidade e atuação, sempre que necessário, de índole global. Dito de outra forma, e no que toca à defesa coletiva, a NATO será sempre uma organização regionalizada. Contudo, quando se fala das dimensões da segurança cooperativa e da gestão de crises, passa-se, claramente, para uma dimensão global.
Que no futuro, mais do que as posturas operacionais já conhecidas do «multi-domain»10 ou do «all domain operations» chegar-se-á, cada vez mais, a um «hybrid all domain operations», com um conjunto de 13 domínios a serem permanentemente complementados, como um conjunto. Aos conhecidos do «all domain» («land-sea-air-space-cyberspace») somam-se os restantes domínios de ação política: infraestrutura, economia, cultura, contexto social, administração pública, sistema jurídico, intelligence (que em português se diz «informações», mas que se confunde com outro domínio a seguir elencado), política (propriamente dita), diplomacia e informacional.
Que terão de analisar-se, com profundidade, os efeitos da retirada do Afeganistão sobre a ação/intervenção (passada, presente e futura) da NATO neste tipo de cenários. Embora não tenha sido a NATO quem iniciou a operação, nem sequer foi a única organização ali presente (recordo que chegaram a estar mais de 60 países e dezenas de organizações internacionais, envolvidos na operação da ISAF), foi, sem dúvida, a NATO quem deu a cara pela estabilidade e segurança da região. Em face do que se está agora a passar neste território é importante recordar a retirada «apressada» dos Estados Unidos e dos aliados em 2011-2013 do Iraque e a rápida ascensão do Daesh que, em menos de dois anos, conseguiu ocupar um território do tamanho da França (na Síria e no Iraque), coordenando e incentivando, a partir dessa posição, ataques em todo o mundo, nomeadamente, contra os Estados Unidos e os seus aliados europeus. Os Estados Unidos entraram e a NATO entrou depois. Os Estados Unidos saíram, e saíram todos «in together, adjust together, out together». Só que a saída de 3500 militares dos Estados Unidos e mais oito mil dos restantes aliados da NATO também levou à saída de inúmeras empresas que faziam e apoiavam a manutenção dos sistemas complexos das forças afegãs (em especial os meios aéreos)11. À data deste texto, acredito ser possível dizer que as populações estão mais seguras e vivem melhor, e que os terroristas da Al-Qaida foram efetivamente afastados do território, mas os recentes movimentos dos talibãs, além do regresso de elementos associados ao Daesh, acompanhados de uma retórica bem publicitada (de vitória), poderão ter efeitos muito negativos na imagem (e mesmo na credibilidade) da Aliança.
Que Portugal deve acompanhar de perto todos os temas mencionados, com destaque para as relações NATO-UE em que, durante a recente Presidência portuguesa da UE, conseguiu fortes impulsos e clarificações. Das novas e velhas parcerias, incluindo nas remotas regiões do Indo-Pacífico onde Portugal tem interesses diretos (basta lembrar Macau e Timor-Leste). Da crescente atenção ao Sul e, como referi no início, ao Sul do Sul até às regiões mais afastadas (mas de forte interesse nacional) de Moçambique. Portugal pode, e deve, privilegiar tanto a geografia como a efetiva credibilidade conseguida, através de uma participação constante e eficaz nas missões mais exigentes da NATO. A este nível, importa recordar que as Forças Armadas Portuguesas estiveram nas regiões mais exigentes do Afeganistão, no reforço efetivo da presença a leste, no Mediterrâneo e no Atlântico, e também nos programas contínuos de treino e apoio no Iraque. Portugal pode, por isso, criar sinergias por forma a valorizar iniciativas que concorrem para os seus interesses nacionais mais relevantes, tais como o Atlântico, o Mediterrâneo, o Magrebe, o Sahel e o Subsara.
Em síntese
A cooperação NATO-UE é um facto, tal como é a estreita relação entre a NATO e a ONU.
Outro facto é a maioria dos aliados deter uma postura prudente, traduzida num dual-track com a Rússia, que, recordo, no anterior Conceito Estratégico ainda era considerada como parceiro, tendo passado a ameaça em 2014, no decurso da invasão da Crimeia. Uma postura de aliados assertivos, mas dialogantes, neste caso com a Rússia. Uma postura também refletida na posição maioritária (não total/absoluta, porque há aliados que têm uma posição bastante divergente) de lidar com o «desafio sistémico» que é a China, propondo que seja estudada a hipótese de construir uma plataforma permanente de diálogo e de cooperação NATO-China, sem descurar a atenção para possíveis crescimentos militares relevantes.
A manutenção de uma atitude de constante análise das ameaças, riscos e desafios (externos, mas também internos, em face das ações que alguns aliados tomam dentro da NATO), ancorada numa visão a 360 graus e completa em variadíssimas dimensões, é igualmente um facto. No fundo, uma atitude e visão atentas e integradoras de inúmeras realidades, como sejam as armas de destruição maciça (que continuam a ser uma das maiores preocupações dada a possibilidade de uma arma nuclear poder ser usada por um grupo terrorista em qualquer ponto do globo, a par do uso crescente de armas químicas e/ou biológicas), os crescentes ciberataques, as ameaças à segurança das linhas de energia e das comunicações aéreas navais e terrestres, as ameaças híbridas, as pandemias e as emergentes tecnologias disruptivas (biotecnologia, nanotecnologia e, fundamentalmente, inteligência artificial).
É ainda um facto o carácter único e afirmador que a NATO continua a deter dentro de uma qualquer possível ordem internacional, porque permanece como um espaço político que se afirma, acima de tudo, pela defesa de princípios e de valores partilhados e assentes na defesa do direito e da democracia.
Um outro facto associa-se à circunstância de a NATO ser, como sempre foi, e mais ainda é ao congregar em si 30 membros, um espaço de variadas perspetivas, interesses e pressões, que exige a adoção de abordagens flexíveis e dialogantes, a fim de evitar disrupções e desentendimentos entre os seus aliados. No fundo, a efetiva adoção dos seus já comprovados mecanismos eficazes para fazer face a um mundo em acelerada mudança, mesmo com novas ameaças, desafios e riscos, e o seu efetivo «saber estar» em e face à permanente adaptação.
Por último, é ainda um facto que Portugal, membro fundador, cresceu, afirmou-se e continua a afirmar-se - em especial no seu modo de estar e de cumprir as suas missões (embora num esforço terrível para cumprir as metas 2/20) - como um aliado credível da e na NATO. Os interesses mais amplos da NATO são os interesses de Portugal, tal como devem ser os de todos os aliados, mas a idiossincrasia de uma história própria, uma geografia única atlântica e voltado para o Sul e, fundamentalmente, uma postura arrojada na proposta de soluções, no desempenho de missões (sem restrições operacionais, os ditos caveats) no mar, em terra, no ar e, cada vez mais também, no ciberespaço e espaço, posicionam esta nação como membro pleno do pelotão da frente que garante a dissuasão pela inovação, coragem, disponibilidade e, acima de tudo, pela credibilidade demonstrada e amplamente reconhecida.