Introdução: a adaptabilidade da NATO
Num sistema internacional em contínua crise de transição, associada à crescente competição entre os aliados transatlânticos, a Rússia e a China, ao retraimento estratégico dos Estados Unidos e às incertezas face ao futuro da defesa europeia, a NATO permanece a organização política e militar central para a política de segurança e defesa dos Estados do espaço euro-atlântico. A visita do Presidente norte-americano Joe Biden à Europa e a cimeira da NATO em Bruxelas, em junho de 2021, confirmaram a vontade norte-americana de revitalização da Aliança Atlântica. Contudo, a forma como os Estados Unidos procederam à retirada militar do Afeganistão, dois meses depois, e as circunstâncias em que foi celebrado o acordo Aukus, três meses depois, assim como o recente escalar das tensões entre a Rússia e a Ucrânia e as respostas dos aliados transatlânticos às mesmas, levantam novas questões sobre a coesão na Aliança. Acresce que momentos de transição internacional são muitas vezes acompanhados de redefinição das alianças. Partindo das transformações da relação transatlântica no seio da NATO, entre 2010 e 2021, este artigo faz a análise do relatório «NATO 2030», da cimeira da NATO e da visita de Biden a Bruxelas, em 2021, e da preparação da adoção do novo Conceito Estratégico, na cimeira da NATO em Madrid, em junho de 2022, para responder aos novos desafios e ameaças que a Aliança enfrentará na próxima década.
O paradoxo da sobrevivência e longevidade da NATO é muitas vezes o ponto de partida para analisar o papel da NATO no pós-Guerra Fria1. A implosão da União Soviética, em 1991, e o fim da ameaça político-militar e nuclear soviética sugeriam o fim da raison d’être da Aliança Atlântica - a defesa contra um inimigo externo. Para Kenneth Waltz, «sem a perceção comum de uma grave ameaça soviética, a NATO nunca teria nascido. A União Soviética criou a NATO, e o desaparecimento da ameaça soviética “libertou” a Europa, tanto a Ocidente como a Oriente»2. Por seu turno, John G. Ikenberry argumenta que o compromisso de segurança no seio da NATO foi desde sempre «marcado pela relutância americana e pela persistência europeia»: no pós-guerra,
«os líderes europeus concordaram em avançar no sentido de uma maior integração apenas em troca de garantias e compromissos correspondentes por parte dos Estados Unidos. O compromisso de segurança americano incorporado na NATO era uma solução para múltiplos problemas interligados: preocupação com um regresso do militarismo alemão, ambivalência britânica sobre a integração económica europeia, a crescente ameaça soviética, e incertezas sobre o poder americano»3.
Segundo esta lógica, o fim da ameaça soviética, em 1991, não anulava os outros problemas interligados e, logo, não apenas justificava a sobrevivência da Aliança Atlântica, como também a permanência dos Estados Unidos na Europa enquanto potência europeia. Outros argumentavam que, apesar do desaparecimento da ameaça soviética, a NATO cumpria ainda uma segunda função - a da gestão da relação entre os aliados - e consequentemente a presença militar norte-americana na Europa era essencial para evitar a competição securitária entre os Estados europeus4. Em 1984, Josef Joffe caracterizou o papel dos Estados Unidos na NATO como o reflexo de
«uma curiosa reviravolta na teoria da aliança. A teoria convencional sustenta que os Estados se unem a fim de garantir a sua segurança. No caso da NATO, porém, uniram-se porque a sua segurança foi assegurada - por um poderoso [Estado exterior] que forneceu tanto proteção externa como ordem interna à Europa Ocidental. A ordem era a pré-condição da aliança e da integração» [europeia. Assim,] sem os Estados Unidos, a Europa Ocidental poderia voltar ao padrão de interação semelhante ao período pré-guerra em vez de avançar para uma verdadeira integração»5.
Para Joffe, os Estados Unidos atuavam como «pacificador europeu» que empoderava os europeus a prosseguirem com o projeto de integração europeia; logo, quanto menos os Estados Unidos estiverem envolvidos na Europa, maior será a probabilidade de desentendimentos6. Depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, o alargamento da Aliança Atlântica foi, na perspetiva do então ministro da Defesa alemão, Volker Rühe, a fórmula para assegurar o contínuo envolvimento dos Estados Unidos nos assuntos europeus7. Seth Jones, por seu turno, argumentava, em 2007, que a cooperação de segurança entre os Estados europeus dependia diretamente do envolvimento dos Estados Unidos na Europa, através da NATO8. Uma década e meia mais tarde, o reposicionamento estratégico extraeuropeu dos Estados Unidos, que a Administração de Joe Biden operacionalizou, iria potenciar novas divisões europeias.
Assim, o paradoxo da sobrevivência da Aliança Atlântica explica-se por dois motivos essenciais; primeiro, pela comunidade de segurança pluralista que os aliados conseguiram criar entre si ao longo de quatro décadas - «um conjunto de Estados que se integrou e em que existe uma garantia efetiva de que os membros da comunidade não lutam fisicamente entre si e resolvem as suas disputas por outros meios»9; segundo, pela capacidade de adaptação da NATO ao seu novo ambiente estratégico no espaço euro-atlântico e fora dele10. Inevitavelmente, o ambiente de segurança modificado, após a implosão da União Soviética e o fim da URSS como principal ameaça aglutinadora dos interesses securitários dos Estados-Membros da NATO, produziria diferenças de perceção de ameaça entre os aliados. O alargamento do espectro de potenciais ameaças ficou patente nas dimensões de operacionalidade que os três conceitos estratégicos do pós-Guerra Fria abordam.
Os conceitos estratégicos da NATO
Os conceitos estratégicos visam dar um sentido de direção estratégica à Aliança Atlântica. Durante a Guerra Fria, a NATO adotou quatro conceitos estratégicos, que, devido à ameaça do expansionismo militar da União Soviética, foram documentos elaborados pelo Comité Militar da NATO e centrados no papel militar da Aliança11. Em contraste, os três conceitos estratégicos que a NATO adotou no pós-Guerra Fria foram redigidos pelo «braço» político da Aliança e, para além de cada uma das estratégias conter um documento adicional secreto sobre medidas militares em caso de conflito armado, são documentos de acesso aberto. Os conceitos estratégicos da NATO são simultaneamente focados na preparação da Aliança para os desafios futuros, mas refletem sempre também uma avaliação das melhores práticas desde que o último conceito foi adotado.
O caminho de adoção de um novo Conceito Estratégico da NATO (nce), numa aliança a 30, demora e prolonga-se em várias reuniões a nível ministerial, de subcomissões, de especialistas etc. Quando o novo documento estratégico é adotado, chega muitas vezes tarde e não consegue antecipar mudanças que ocorrem simultaneamente: o nce de 1991 não anteviu a dissolução da URSS, que aconteceu poucos dias depois da Cimeira de Roma. O nce de 1999 foi adotado no decorrer da Guerra do Kosovo, onde a NATO foi parte decisiva. O nce de 2010 fez-se no pressuposto de um reset de relações com a Rússia, sem precaver a hipótese de rejeição desse reset pela Rússia pouco tempo depois.
O primeiro Conceito Estratégico após a Guerra Fria, adotado na cimeira do Conselho do Atlântico Norte, em Roma, em dezembro de 1991, reconheceu a transformação do contexto geoestratégico euro-atlântico, decorrente da unificação alemã, do fim da Guerra Fria e do fim da ameaça hegemónica soviética - a implosão da União Soviética aconteceu poucos dias depois da cimeira. Assim, o novo Conceito Estratégico definiu os novos parâmetros de atuação da NATO neste novo ambiente estratégico, ao prever a possibilidade de operações de manutenção da paz e gestão de crises «fora de área», ampliando a sua área geográfica de intervenção para gerir conflitos em áreas instáveis, ao mesmo tempo que identificava o terrorismo, a proliferação nuclear e os nacionalismos como as novas ameaças «multifacetadas» e «multidirecionais» para a Aliança12.
O Conceito Estratégico de 1991 reconhecia assim a transformação necessária - pouco depois testada nas guerras balcânicas da secessão jugoslava - e articulava-a com a continuidade de a NATO permanecer como a principal instituição para as relações transatlânticas, essencial ao equilíbrio estratégico na Europa e à defesa coletiva contra qualquer ameaça de agressão direcionada aos Estados-Membros. Segundo um relatório da Assembleia Parlamentar da NATO, de 2002, a Aliança tinha
«demonstrado durante os anos 1990 o seu valor em três aspetos duradouros: na prevenção de uma renacionalização da defesa na Europa, no estabelecimento de parcerias com países pós-comunistas, incluindo a Rússia, e no forjar de um papel como um dos mais importantes atores na área da gestão de crises internacionais e na implementação de missões de paz»13.
Contudo, se o Conceito Estratégico de 1991 visou preparar a Aliança para o pós-Guerra Fria ele foi invalidado, no momento da sua adoção, pela implosão da União Soviética, em 25 de dezembro de 1991.
O segundo Conceito Estratégico foi adotado em 24 de abril de 1999, na cimeira do Conselho do Atlântico Norte, em Washington14. Este documento estratégico consolidou o alargamento institucional da Aliança através da política da porta aberta à adesão de novos membros e tirou as consequências das guerras balcânicas, ao reconhecer a relevância do papel da NATO na gestão de crises, tendo sido adotado durante a intervenção da NATO no Kosovo15. Mas a sua relevância foi, no entanto, posta em causa pouco tempo depois pelos ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos. Nenhum Conceito Estratégico da Aliança anterior tinha feito uma referência específica a atos de terrorismo no seio da Aliança nem a implicações globais de tais atos. A qualificação do Presidente George W. Bush da resposta norte-americana aos ataques perpetrados pelo regime talibã no Afeganistão como uma «Guerra Global ao Terror» (Global War on Terror) obrigou a NATO a adaptar a sua estratégia com o debate agora centrado «na capacidade da Aliança tomar medidas antiterroristas, de alargar o seu alcance operacional e geográfico, e de reformular a adaptação militar da Aliança para fazer face a contingências pós-11 de Setembro»16.
Uma década depois, em novembro de 2010, na cimeira da Aliança Atlântica em Lisboa, o Conselho do Atlântico Norte adotou o seu terceiro Conceito Estratégico do pós-Guerra Fria. Com base no relatório «NATO 2020», de 17 de maio de 2010, elaborado por um grupo de peritos chefiado por Madeleine Albright, antiga secretária de Estado do Presidente norte-americano Bill Clinton, o novo Conceito definiu os parâmetros de atuação estratégica da Aliança para a década de 201017. Perante a multiplicidade e multivetorialidade das ameaças da década de 1990, este novo Conceito Estratégico caracterizou-se pela panóplia de ameaças e desafios contra os quais a Aliança se pretendia preparar, conflitos «fora de área», armas de destruição maciça, terrorismo, ataques cibernéticos, mas afunilou o propósito da Aliança nos três objetivos da defesa coletiva, gestão de crises e segurança cooperativa como as core tasks da Aliança. Mais do que atuar enquanto organização de defesa coletiva, contudo, a NATO nessa altura atuava como uma gestora de crises «fora de área», com forças expedicionárias para intervenções fora do território da Aliança e com uma abordagem de segurança cooperativa tanto em relação à Rússia como na promoção da adesão de novos Estados-Membros do Sudeste europeu, como aconteceu com a Albânia e a Croácia em 200918.
Alguns anos depois da adoção deste Conceito Estratégico, no entanto, a Rússia anexou a península ucraniana da Crimeia, em março de 2014, o que provou ser um gamechanger e o fim da política do reset que caracterizava a parceria estratégica entre o Ocidente e a Rússia19. Por seu turno, na China, Xi Jinping assumiu, em 2013, a presidência da República Popular da China, com a clara ambição estratégica de tornar a China uma grande potência ressurgente no sistema internacional20. O regresso da competição entre as grandes potências, que viria a marcar a segunda metade desta década, tornava também o Conceito Estratégico de 2010 ultrapassado pouco tempo depois da sua adoção.
Desde então, durante a última década, entre 2010 e 2021, assistimos à oscilação da relação transatlântica entre três momentos: um primeiro momento de consenso transatlântico (2010-2016); um segundo momento de crise transatlântica (2016-2020); e um terceiro momento, no qual nos encontramos, de revitalização transatlântica incerta (2021-…). Este momento de revitalização transatlântica coincide com a redefinição do propósito estratégico da Aliança Atlântica num contexto de turbulentas mudanças geopolíticas globais e de processos de redefinição de política externa em alguns dos Estados-Membros da Aliança. Agora, a Aliança prepara-se para adotar o seu quarto Conceito Estratégico, na cimeira da Aliança, em Madrid, em 29-30 de junho de 2022.
A oscilação entre diferentes perceções estratégicas mostra a crescente dificuldade dos aliados em concordarem sobre a revisão das escolhas estratégicas a que as múltiplas mudanças no mundo os obrigam: o consenso transatlântico generalizado do pós-Guerra Fria está a chegar ao fim, e a erosão da comunidade de segurança transatlântica é um primeiro sinal21. Por isso, o novo Conceito Estratégico, de 2022, será, porventura, o mais importante da Aliança desde o último, durante a Guerra Fria, com a Doutrina Harmel de 1967, aquela que na sua altura reafirmou a sua dupla dimensão militar e política, conjugando a defesa e a dissuasão com a doutrina da resposta flexível e o diálogo político22.
Uma década de três momentos transatlânticos: Consenso, Crise e Revitalização
Um momento de consenso transatlântico (2010-2016)
O último Conceito Estratégico da NATO, adotado na cimeira da Aliança Atlântica, em Lisboa, em 2010, marcou um momento de importante consenso transatlântico depois do 11 de Setembro de 2001 e do rescaldo da crise transatlântica, em 2003-2004, devido às sérias divergências sobre a intervenção militar norte-americana no Iraque23. A Administração de Barack Obama iniciava o seu primeiro mandato com o objetivo claro de recuperar o vínculo transatlântico e de restabelecer as relações com aliados como a Alemanha, cuja chanceler Angela Merkel o Presidente norte-americano reconhecia como a sua principal aliada24.
O consenso transatlântico fundamentava-se sobre três questões. Em primeiro lugar, face à pretensão da Rússia em consolidar-se enquanto potência revisionista com ambições de alteração da ordem do pós-Guerra Fria na Europa. Na linha da argumentação do Presidente russo Vladimir Putin, num discurso que proferiu na Conferência de Segurança de Munique, pelo menos desde 2007, que a ordem do pós-Guerra Fria e em concreto o statu quo do espaço da antiga União Soviética deveriam ser alterados25. Com esse objetivo, a Rússia interveio militarmente na Geórgia, em agosto de 2008, em apoio às repúblicas secessionistas da Abecásia e Ossétia do Sul através de uma incursão militar que aconteceu apenas quatro meses depois da cimeira da NATO em Bucareste, em abril de 2008. O timing não foi por acaso já que na cimeira os aliados, apesar da declaração pública a favor de uma adesão futura da Geórgia e da Ucrânia à Aliança, não conseguiram evitar a sua desunião sobre quando e como essa adesão seria feita, o que na prática correspondeu a um adiamento sine die da adesão destes dois países à NATO26. Enquanto os Estados Unidos, o Reino Unido, a Polónia e os países bálticos apoiavam a adesão daqueles dois países à Aliança, a Alemanha e a França opuseram-se à integração imediata da Geórgia e da Ucrânia na NATO, em função da sua relação bilateral com Moscovo, definida ora por interesses de fornecimento energético de gás natural russo, ora por preocupações securitárias de que a Rússia pudesse sentir-se ameaçada por esses alargamentos da Aliança ao espaço pós-soviético.
Assim, o eixo franco-alemão desacelerou o processo de adesão da Geórgia e da Ucrânia à NATO, com a consequência de a Rússia considerar que poderia apoiar a autoproclamação da independência da Abecásia e da Ossétia do Sul na sequência da «Guerra dos Cinco Dias», em agosto do mesmo ano, sem ter que recear uma reação substancial por parte da Aliança Atlântica.
Seis anos mais tarde, a NATO teve uma reação diferente quando, em março de 2014, a Rússia anexou a península ucraniana da Crimeia e iniciou uma guerra híbrida na Ucrânia oriental. Claramente, a Rússia mantinha a trajetória revisionista de rejeição do statu quo do ordenamento securitário europeu de 1989-1991, de inversão da fórmula de recuo estratégico da União Soviética nas vésperas do fim da Guerra Fria e de destabilização da ordem securitária euro-atlântica ao proceder à alteração de fronteiras no espaço euro-atlântico alargado, por via da violação de vários tratados internacionais, desde a Ata Final de Helsínquia de 1975, à Carta de Paris de 1990 e ao Memorando de Budapeste de 1994.
A Aliança qualificou a anexação da Crimeia como a maior ameaça à ordem securitária europeia desde o fim da Guerra Fria e reforçou a capacidade de dissuasão estratégica e da postura de defesa da Aliança. Na cimeira da NATO, no País de Gales, em setembro de 2014, os aliados reafirmaram o princípio da defesa coletiva territorial e a dissuasão estratégica como os objetivos principais da Aliança Transatlântica27. Os Estados Unidos aumentaram a presença terrestre, aérea e naval na região, no âmbito da Operação Atlantic Resolve, financiada ao abrigo da Iniciativa Europeia de Dissuasão28. Dois anos mais tarde, na Cimeira de Varsóvia, em julho de 2016, a NATO decidiu colocar quatro batalhões multinacionais, rotativamente, na Estónia, na Letónia, na Lituânia e na Polónia através da Enhanced Forward Presence, liderados, respetivamente, pelo Reino Unido, Canadá, Alemanha e Estados Unidos, assim como posteriormente a Tailored Forward Presence na Bulgária e na Roménia, com cobertura na parte sudeste da Aliança na região do mar Negro29.
Na cimeira da Aliança no País de Gales, os aliados concordaram ainda que os países membros europeus teriam de investir mais na defesa da Aliança e reafirmaram o compromisso de 2006 de alcançar o alocamento de 2% do PIB para as despesas militares na NATO até 202430. A exigência de um maior burden sharing (partilha de encargos) por parte de Washington não era obviamente nova. Em junho de 2011, o secretário da Defesa cessante, Robert Gates, alertava os europeus de que a NATO enfrentaria um futuro «dim, if not dismal», caso os europeus não aumentassem consideravelmente os seus orçamentos de defesa e não investissem seriamente no desenvolvimento de capacidades31. Independentemente do reposicionamento estratégico dos Estados Unidos para o Indo-Pacífico, o alerta de Gates inseria-se na linha de repetidas reivindicações norte-americanas sobre um maior contributo financeiro e de desenvolvimento de capacidades europeias.
Em segundo lugar, chegava-se à conclusão de ambos os lados do Atlântico que as intervenções militares de grande envergadura do pós-11 de Setembro deveriam ser terminadas: a decisão de retirada das tropas norte-americanas do Iraque foi tomada no final do mandato de George W. Bush, e a decisão de retirada do Afeganistão foi tomada no início do mandato de Barack Obama, numa clara demonstração de retirada militar e recuo estratégico global dos Estados Unidos32.
Por último, paradoxalmente, o momento de consenso transatlântico foi acompanhado simultaneamente pelo risco de erosão da comunidade de segurança transatlântica da ordem de segurança europeia. Se em 1990-1992 havia autores realistas que questionavam a longevidade da NATO pelo fim da ameaça hegemónica soviética, agora havia quem afirmasse que a Aliança se tinha tornado a vítima do seu próprio sucesso33. O alargamento institucional da NATO levou ao incremento dos interesses e das estratégias diferenciadas em resposta ao número crescente de ameaças. Assim, o risco de desunião e de erosão da comunidade de segurança transatlântica reforçou-se, com a NATO a transformar-se, cada vez mais, a caminho de uma aliança clássica, em que os Estados-Membros recuperavam a flexibilidade de alinhamento com aqueles parceiros que mais partilham dos seus interesses. Um exemplo de divergência política entre Washington e Berlim no Conselho do Atlântico Norte que expôs a vulnerabilidade da coesão da Aliança, por exemplo, foi a intervenção da NATO na Líbia contra o regime de Muammar al-Khadafi, em março de 2011, quando forças da NATO decidiram o patrulhamento de uma no-fly zone e a Alemanha se recusou a apoiar os aliados norte-americanos, britânicos e franceses e absteve-se na votação da Resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, encontrando-se ao lado da Rússia, da China e da Índia34.
Em suma, este momento de consenso transatlântico refletia que a Aliança Atlântica, agora com 28 Estados-Membros, continuava a ser o fundamento da segurança transatlântica, como instituição de defesa coletiva contra ataques convencionais, na participação em operações internacionais de manutenção da paz e de estabilização, e de contraterrorismo e de combate à pirataria. Contudo, pouco depois de ter sido adotado o Conceito Estratégico de 2010 foi ultrapassado pelos eventos que ocorreram no espaço euro-atlântico alargado e nas suas fronteiras: iniciou-se a guerra civil na Síria, ocorreu a operação da NATO na Líbia, em 2011, e deu-se a anexação russa da Crimeia em 2014.
Um momento de crise: a segunda crise transatlântica do pós-guerra fria
Os eventos não foram, contudo, a principal razão que esteve na origem da deterioração das relações transatlânticas. No período da Administração do Presidente Donald Trump, a Aliança Atlântica entrou na sua segunda crise transatlântica do pós-Guerra Fria no espaço de apenas treze anos, numa altura que refletia uma «combinação perigosa de uma Rússia revisionista, uns Estados Unidos relutantes, e uma Europa em crise»35. O novo Presidente norte-americano fez campanha eleitoral, em 2016, criticando o que considerava ser o aproveitamento pecuniário dos aliados europeus do parceiro norte-americano.
Esta segunda crise transatlântica, que colocou em causa o consenso transatlântico, explica-se a partir de quatro razões. Em primeiro lugar, o Presidente Trump procedeu a uma viragem unilateralista da política externa norte-americana sem consideração pelos interesses dos aliados de longa data de Washington. No plano estratégico, ordenou a revisão da Estratégia de Segurança Nacional, adotando um novo documento, em setembro de 2017, que identificou a Rússia e a China como os adversários dos Estados Unidos, num novo quadro estratégico que reconhecia o regresso à competição entre as grandes potências e que consolidava a região do Indo-Pacífico como a principal prioridade estratégica norte-americana. A adoção de uma nova estratégia nacional é evidentemente uma prerrogativa soberana de qualquer chefe de Estado, mas, com Trump, a falta de consulta ou informação que articulasse a sua estratégia à estratégia da Aliança foi um sinal claro do novo unilateralismo nacionalista que iria caracterizar as ações da sua Administração.
Em segundo lugar, a NATO foi criticada por Trump como sendo uma aliança obsoleta, transacional, e, consequentemente, desvalorizada pela liderança da principal potência militar. Esta desvalorização estratégica da aliança ocidental deveu-se não apenas à nova importância do Indo-Pacífico, mas também porque Trump considerava a maioria dos países europeus como free riders ou aproveitadores do investimento americano. Como penalização, Trump não garantiu o compromisso com o artigo 5.º da NATO aos seus aliados e ameaçou mesmo retirar os Estados Unidos da NATO. Para travar a atitude unilateralista do Presidente, em janeiro de 2019 o Congresso aprovou o «NATO Support Act», que impedia o Presidente de usar fundos federais para retirar os Estados Unidos da Aliança36.
Em terceiro lugar, inevitavelmente, esta nova postura unilateral norte-americana causou um mal-estar junto dos aliados europeus que, por um lado, começavam a questionar a fiabilidade da garantia norte-americana em corresponder às obrigações do Tratado do Atlântico Norte, pelo seu artigo 5.º, em caso de um ataque armado a um dos Estados-Membros e, por outro lado, se viram ainda mais expostos à já antiga insistência de sucessivas administrações de uma maior partilha de encargos, ou burden sharing, uma reivindicação dos Estados Unidos que antecede o fim da Guerra Fria. Na França, o Presidente Emmanuel Macron, numa alusão clara ao papel paralisante do Presidente americano, acusou a Aliança de se encontrar em «morte cerebral», pouco antes da Cimeira de Londres, em dezembro de 2019, identificando a falta de consulta política entre os aliados como a principal razão para a diminuição de coesão entre europeus e norte-americanos37.
Mais graves eram as implicações militares decorrentes de uma Aliança politicamente fragmentada, já que o consenso político é essencial para cumprir os objetivos militares da NATO e manter uma dissuasão credível. Por outras palavras, a coesão transatlântica e a unidade da Aliança foram seriamente postas em causa: as bases da comunidade de segurança transatlântica, que se desenvolveu entre os aliados durante a Guerra Fria, começaram a erodir, o que levou ao enfraquecimento do vínculo transatlântico, que já se encontrava fragilizado pela ausência de uma ameaça singular, como aconteceu com a União Soviética, e pela simultaneidade de múltiplos desafios estratégicos e das perceções diferenciadas entre os Estados-Membros sobre como dissuadir potenciais ameaças38.
A Alemanha reconheceu a posição difícil dos europeus quando a chanceler Merkel, em 2017, afirmou que os europeus já não poderiam contar com o apoio do parceiro americano. Na relação bilateral entre Berlim e Washington a temperatura política desceu a um nível inferior ao dos anos 2003-2004 e teve o seu apogeu no verão de 2020, em plena campanha eleitoral presidencial norte-americana, quando Trump anunciou a retirada de cerca de 9500 tropas norte-americanas de território alemão e a sua recolocação na Polónia39. Por último, perante a rejeição aberta de Donald Trump em apoiar o projeto de integração europeia e de deliberadamente minar as normas democráticas no interior do seu país assim como na Europa, «o colapso da democracia liberal no seio da própria Aliança» foi considerado por alguns como «o problema mais sério» na relação transatlântica40. Para Wallander, «a maior ameaça para a NATO hoje poderão ser os Estados Unidos», já que a NATO «não sobreviverá se a democracia liberal americana falhar».
Inevitavelmente, o entendimento europeu generalizado sobre o papel prejudicial de Trump para a Aliança não conseguiu impedir a emergência de divergências políticas entre os aliados europeus, com o inevitável risco de paralisia. Ao colocar em causa o papel dos Estados Unidos na NATO, Trump provocou respostas diferenciadas entre os próprios europeus. Por exemplo, enquanto o Presidente Macron viu a posição de Trump como justificativa da retirada dos Estados Unidos da Europa e aceleradora de uma maior autonomia estratégica da União Europeia (UE) - em boa parte a autonomia estratégica francesa dos Estados Unidos -, Annegret Kramp-Karrenbauer, então ministra alemã da Defesa no governo de Angela Merkel e antiga líder do estado federado do Sarre, insistia no reforço do pilar europeu dentro da NATO, tendo esta divergência vindo a público em 2019 e em 202041. A assinatura do Tratado de Aachen, em janeiro de 2019, que celebrou os 56 anos de reconciliação franco-alemã desde o Tratado do Eliseu de 1963, fez-se sob a leitura franco-alemã diferenciada não apenas sobre o papel da UE na defesa europeia, mas também do papel dos Estados Unidos na NATO e na segurança europeia. Em suma, a Presidência de Trump acelerou o enfraquecimento já existente do vínculo transatlântico devido às perceções diferenciadas dos Estados-Membros sobre as novas ameaças e os múltiplos desafios estratégicos simultâneos provocados por Estados revisionistas e atores não estatais, para além das ameaças terroristas, cibernéticas e híbridas.
Um momento de revitalização transatlântica incerta
O terceiro momento da última década iniciou-se com a eleição de Joe Biden como novo Presidente dos Estados Unidos, em novembro de 2020, o que tornou possível a revitalização da relação transatlântica ao fim de quatro anos de incerteza, imprevisibilidade e ressentimentos. Quando assumiu a Presidência dos Estados Unidos, em janeiro de 2021, o Presidente Joe Biden inaugurou a política externa da sua Administração sob o lema «A América está de volta», com o intuito claro de na política externa sinalizar aos aliados que podiam contar com uma América mais multilateralista e mais transatlântica42. A Administração Biden iniciou o regresso dos Estados Unidos ao multilateralismo, suspendeu as querelas transatlânticas entre a Airbus e a Boeing, assumiu uma posição pública menos crítica do gasoduto Nordstream II e qualificou a Alemanha de «melhor amiga dos Estados Unidos».
Esta política de revitalização transatlântica inseriu-se numa abordagem mais ampla da Administração Biden de «revigorar e modernizar as […] alianças e parcerias [dos Estados Unidos] em todo o mundo». Como se lê na Interim National Security Strategic Guidance, de março de 2021, os Estados Unidos irão «reafirmar, investir e modernizar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e as nossas alianças com a Austrália, o Japão e a República da Coreia, que, juntamente com as nossas outras alianças globais e parcerias, são o maior bem estratégico da América»43.
No contexto de segurança europeu e transatlântico cada vez mais complexo, agravado pelo início da pandemia de covid-19, a persistência da crise transatlântica até novembro de 2020 dificultara o início do processo de revisão do Conceito Estratégico da NATO. Como forma de antecipar a discussão sobre o novo Conceito Estratégico abaixo do nível dos chefes de Estado e de governo, os Estados-Membros da Aliança mandataram o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, na Cimeira de Londres, em dezembro de 2019, para designar um grupo de dez personalidades de alto nível que elaborasse uma reflexão prospetiva sobre como reforçar a dimensão política da Aliança. Dias depois da eleição de Joe Biden, este grupo de peritos independentes - copresidido por Thomas de Maizière, antigo ministro do Interior e da Defesa alemão, e Wess Mitchell, antigo secretário de Estado Adjunto dos Estados Unidos para a Europa e Eurásia - apresentou, em 25 de novembro de 2020, o relatório «NATO 2030: United for a New Era» ao secretário-geral da NATO, que, não sendo um documento estratégico da Aliança, propôs o fundamento para o processo formal de revisão do Conceito que se iniciou na cimeira da NATO em Bruxelas, em junho de 202144.
O relatório «NATO 2030: united for a new era»
Partindo da fórmula de Jens Stoltenberg de que a NATO deveria «manter-se forte militarmente, aproximar-se politicamente, e adotar uma abordagem mais ampla a nível global», o relatório «NATO 2030» foi desenvolvido tendo em conta três objetivos: primeiro, a adaptação estratégica urgente da NATO «aos novos desafios estratégicos e geopolíticos que a comunidade transatlântica enfrenta» perante o ressurgimento da competição geopolítica «de grandes potências concorrentes, no qual Estados assertivos autoritários com agendas de política externa revisionistas procuram expandir o seu poder e influência»; segundo, o aumento da «consulta política e a coordenação entre os Aliados para reforçar a centralidade do vínculo transatlântico e coesão entre Aliados» e o «reforço do papel político da Aliança e dos instrumentos relevantes para responder às ameaças atuais e futuras para fortalecer a coesão política»; terceiro, identificar as prioridades estratégicas da NATO que permitam a «convergência de prioridades políticas e estratégicas para atenuar os diferenciais na avaliação das ameaças» para a próxima década45.
Entre as 138 recomendações do relatório para a adoção do sétimo Conceito Estratégico da Aliança, as principais são a manutenção das três tarefas fundamentais (defesa coletiva, gestão de crises e segurança cooperativa), o reforço da postura de dissuasão nuclear e convencional e da defesa coletiva, e o desenvolvimento e aquisição das capacidades necessárias para operações de espectro total, através da cooperação multinacional para promover economias de escala, reduzir custos e proporcionar interoperabilidade e tal como sintetizado no Processo de Planeamento da Defesa da NATO (NDPP)46.
Quanto à Rússia, o relatório afirma que esta representa a principal ameaça militar para a NATO na próxima década, incluindo ameaças e atores hostis russos, formas híbridas de agressão e um desafio aéreo e naval nos mares de Barents, Báltico, Negro e Mediterrâneo. Quanto à China, o relatório afirma que este país terá uma influência crescente na área euro-atlântica porque representa «um rival sistémico de espectro total, em vez de um ator puramente económico ou um único ator de segurança centrado na Ásia», com «ambições estratégicas cada vez mais globais, uma diplomacia intimidatória, coerção económica e capacidade de projetar poder militar a nível mundial». Sobre a área «Sul» da Aliança, que se estende geograficamente desde o Norte de África e grandes partes do Médio Oriente à África Subsariana, os peritos sublinharam a importância da segurança marítima e recomendaram o aprofundamento da segurança cooperativa com organizações regionais do Sul, como a União Africana (UA), a Liga dos Estados Árabes (LOAS), a Organização de Cooperação Islâmica (OIC), o Conselho de Cooperação do Golfo (GCC) e as Nações Unidas, também para acautelar a crescente influência da Rússia e da China na região.
Para contrariar estas tendências, assim como para fortalecer a resiliência das sociedades democráticas, o relatório recomenda a modernização tecnológica em todos os domínios operacionais da NATO, incluindo o espaço e o ciberespaço, em resposta às emergências relacionadas com tecnologias emergentes e disruptivas e os seus efeitos sobre a natureza da guerra, operações híbridas, o combate ao terrorismo e outras ameaças assimétricas. A juntar a este quadro, o grupo de peritos alertou para as mudanças climáticas como um «multiplicador de ameaças» porque acelerador da escassez de recursos, o aumento dos fluxos migratórios e a abertura de novos teatros de competição geopolítica, como a Rota do Mar do Norte no Ártico. Para contrariar estas tendências e aumentar a resiliência da Aliança, o relatório exorta ao aprofundamento da cooperação entre a NATO e a UE, a um alinhamento possível entre o novo Conceito Estratégico da NATO e a «Bússola Estratégica» que a UE pretende adotar em março de 2022, por um lado, e a uma cooperação mais eficiente das suas parcerias da Aliança com terceiros Estados na defesa dos seus interesses estratégicos, por outro.
O relatório alertou para dois problemas estratégicos que podem dificultar a operacionalização destes objetivos: primeiro, o aumento da capacidade militar da NATO pode ser condicionado tanto pelas fragilidades políticas em algumas democracias representativas, como pelo reposicionamento estratégico dos Estados Unidos para o Indo-Pacífico; segundo, uma convergência de interesses entre a Rússia e a China contra a Aliança pode dar origem a «uma guerra com duas vertentes», que deixaria os aliados europeus vulneráveis a um ataque da Rússia, já que os Estados Unidos teriam de responder a um ataque da China no Indo-Pacífico47.
Na realidade, o novo Conceito Estratégico da NATO tem de articular quais são as implicações da convergência dos objetivos estratégicos das duas potências revisionistas, a Rússia e a China. Enquanto para Putin o fim da URSS foi «a maior tragédia do século XX», para Xi Jinping o século XX foi «o século da vergonha»: para o primeiro, a restituição territorial da antiga glória da União Soviética seria o revisionismo vindicado; para o segundo, a unificação com a ilha de Taiwan, que no século XX apenas integrou a China entre 1945 e 1949, seria o revisionismo reivindicado. Por isso, uma maior convergência de interesses entre Moscovo e Pequim traduzir-se-á numa ameaça mais substancial para a NATO48.
A cimeira da NATO
A viagem do Presidente Joe Biden à Europa, em junho de 2021, a sua primeira visita ao estrangeiro, foi essencial por três razões. Primeiro, e contrastando com a administração anterior, assinalou o regresso da América à Aliança transatlântica e reconheceu a importância dos aliados europeus da NATO com o objetivo de reforçar a unidade no seio da Aliança transatlântica e reforçar a comunidade de segurança transatlântica. Na Conferência de Segurança de Munique, virtual, em 19 de fevereiro de 2020, Biden tinha afirmado que
«A América está de volta. A aliança transatlântica está de volta. […] A aliança transatlântica é uma base forte - a base forte - sobre a qual a nossa segurança coletiva e a nossa prosperidade partilhada são construídas. A parceria entre a Europa e os Estados Unidos, na minha opinião, é e deve continuar a ser a pedra angular de tudo o que esperamos realizar no século XXI, tal como o fizemos no século XX»49.
Em segundo lugar, o Presidente Biden mostrou aos aliados europeus que eles eram essenciais ao objetivo de recuperar o papel dos Estados Unidos no fortalecimento da ordem internacional liberal e na cooperação multilateral entre a comunidade das democracias.
Em terceiro lugar, sinalizou às potências autocráticas que os Estados Unidos, em conjunto com os aliados europeus, iriam empenhar-se numa contranarrativa estratégica coletiva e democrática na competição de poder para conter a China e impedir uma estratégia antiocidental conjunta entre a China e a Rússia. Para recuperar as bases da unidade transatlântica, por exemplo, o desacordo em relação ao Nordstream II e a disputa Boeing-Airbus foram temporariamente suspensos e, na reunião do G7, foi decidido um modelo para um projeto de infraestruturas Build Back Better com o intuito de contrabalançar o projeto Belt and Road Initiative chinês.
A cimeira da NATO em Bruxelas, em 14 de junho de 2021, foi o encontro multilateral mais importante dos últimos cinco anos entre os países europeus membros da Aliança Atlântica e os Estados Unidos e reproduziu os objetivos da visita de Biden50. Primeiro, a cimeira marcou o início do processo de revisão formal do NCE da NATO, onze anos após o último Conceito Estratégico. Os chefes de Estado e de governo mandataram o secretário-geral da NATO para elaborar um novo documento com base nas recomendações do relatório «NATO 2030», a concluir até junho de 2022, para adoção na próxima cimeira da NATO, em Madrid, em 2022. Segundo, a nova Administração norte-americana manifestou querer recuperar um novo quadro de cooperação transatlântico e demonstrou vontade de revitalizar a relação transatlântica, com a visita de Biden à Europa, com a cimeira da NATO, do G7, Estados Unidos-UE e encontro entre Biden e o Presidente russo Putin. Terceiro, tentou inverter a tendência de erosão da comunidade de segurança transatlântica e da própria ordem internacional democrática ao demonstrar a coesão entre os membros da Aliança. Por último, a cimeira direcionou um sinal da unidade transatlântica recuperada às potências autoritárias e revisionistas de que os quatro anos anteriores não tinham afetado a unidade entre os aliados.
O comunicado final da cimeira, de 79 pontos, sublinhou que os aliados abriram «um novo capítulo na relação transatlântica» e definiram «a direção para a adaptação contínua da Aliança para 2030 e além»51. No novo ambiente estratégico a Aliança depara-se com «uma insegurança crescente de todas as direções estratégicas e de diferentes domínios», nomeadamente: desafios globais como a atual pandemia de covid-19 e a crise climática; atores estatais e não estatais que desafiam a ordem internacional baseada em regras para minar a democracia em todo o mundo e contribuir para a migração irregular; a proliferação de armas de destruição maciça e a erosão da arquitetura de controlo de armas; desafios colocados por países individuais como a Síria, o Irão, a Coreia do Norte e a Bielorrússia; e desafios dirigidos diretamente à NATO e aos seus membros, que são a China e a Rússia52.
Os novos desafios
Na preparação do novo Conceito Estratégico da NATO, os 30 Estados-Membros da Aliança enfrentam uma série de desafios fundamentais sobre a forma de reconstituir a organização face à crescente turbulência geopolítica, à incerteza e à assertividade das potências autoritárias revisionistas, bem como sobre a forma de evitar desacordos entre os aliados para enfrentar estes desafios e reconstituir a comunidade de segurança transatlântica no contexto da recuperação económica pós-pandémica e a possível redução dos orçamentos de defesa em alguns Estados-Membros.
O primeiro desafio, sobre o qual não há consenso, prende-se com o enfraquecimento do consenso transatlântico na definição do que é o objetivo principal da NATO, em termos de abrangência geográfica e de parcerias e adversários. A convergência quanto aos objetivos estratégicos da Aliança é condição para a sua coesão política, mas as divergências sobre o âmbito de projeção regional na área do Atlântico Norte ou global evidenciam diferenças significativas entre os aliados. Os aliados continuam divididos sobre a identidade da NATO: enquanto Biden entende a NATO como organização global e um veículo para reconstruir uma ordem democrática global, o Presidente Macron contesta esta posição e restringe as responsabilidades da NATO à geografia do Atlântico Norte. O debate sobre se a NATO se deve tornar uma organização global, que não é um debate novo, voltou a entrar na discussão53. Já na sequência dos ataques do 11 de Setembro de 2001, Ivo Daalder e James Goldgeier tinham defendido, em 2006, uma «NATO global» porque «só uma aliança verdadeiramente global pode enfrentar os desafios globais da atualidade». Logo, países democráticos como o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália e a Índia deveriam poder aderir à NATO, com base na coincidência de valores e interesses similares no combate a problemas globais. Assim, a defesa territorial da Aliança deixaria de ter um carácter exclusivamente transatlântico porque assentaria numa comunidade global de democracias54. Hoje, os defensores do alargamento global da NATO e da ampliação geográfica das operações militares argumentam que as principais ameaças que a Aliança irá enfrentar - como o terrorismo internacional, a proliferação das armas de destruição maciça e o cyberwarfare - justificariam esta extensão geográfica para fora da área tradicional do Atlântico Norte.
Para os críticos desta perspetiva, se a NATO adotar uma postura mais global no nce, a Aliança corre o risco de diluir a unidade que se desenvolveu nos últimos anos quanto ao seu papel central na defesa da Europa - desde a anexação da Crimeia, à guerra híbrida na Ucrânia oriental ao reforço da defesa militar dos países bálticos, da Polónia e Roménia - já que os desafios extraeuropeus - desde conflitos em áreas subjacentes à Europa e a crescente convergência estratégica entre a Rússia e a China - irão catalisar respostas diferenciadas entre os aliados. A assertividade da China e da Rússia como potências tradicionais e o alcance cada vez mais global das ameaças - desde o terrorismo cibernético às atividades híbridas, às implicações de segurança e defesa das mudanças climáticas, dos fluxos energéticos, da interconectividade global da era digital ou da erosão global de normas democráticas - irão exercer uma pressão considerável sobre a coesão da Aliança que corre novos riscos de fissura devido à avaliação diferenciada das novas ameaças.
Também em termos de parcerias existem divergências entre a posição dos Estados Unidos e o Reino Unido, e a França e a Alemanha. Fora do quadro da NATO, os Estados Unidos já responderam às alterações na distribuição de poder na região do Indo-Pacífico através da intensificação das parcerias com Estados asiáticos. O aprofundamento do Diálogo Estratégico Quadrilateral (Quad) com a Austrália, o Japão e a Índia é um sinal evidente deste upgrade qualitativo da região, mas as estratégias individuais para o Indo-Pacífico, que foram recentemente adotadas pela França, Alemanha, Holanda e Reino Unido, assim como pela UE, demonstram a falta de articulação de uma estratégia da Aliança Atlântica para o Indo-Pacífico.
Contudo, se as três potências europeias - a Alemanha, a França e o Reino Unido - admitem que a ascensão da China se tornou um problema estratégico global, os Estados Unidos reconhecem que necessitam de aliados para alcançar a sua prioridade estratégica da contenção global da China. Nesse quadro, a NATO deveria considerar o aprofundamento de parcerias com Estados democráticos e que partilham a mesma ordem normativa como estratégia integrante do seu novo Conceito Estratégico.
O segundo desafio para a NATO prende-se com a gestão das divisões internas entre os Estados-Membros europeus, entre os quais há divergências: primeiro, sobre se a missão da NATO deve ser regional ou global em que será importante analisar como se posicionarão os países mais atlantistas na Aliança; segundo, sobre como garantir uma crescente cooperação eficaz entre a NATO e a UE e tornar esta um ator estratégico relevante - a divergência franco-alemã quanto ao grau de autonomização da Europa ou um pilar europeu dentro da NATO é um claro exemplo disso; terceiro, sobre como evitar crises abertas entre Estados-Membros e lidar com Estados-Membros cuja orientação estratégica não esteja completamente alinhada com a da NATO.
O problema da falta de vontade política em adotar uma posição europeia comum não é, evidentemente, novo e marcou igualmente o processo de definição do último Conceito Estratégico55. A Turquia, Estado-Membro que deixou de ser uma democracia pluralista, evidencia o caso de um Estado-Membro que abandonou, seletivamente, a convergência estratégica com a Europa e aproximou-se à Rússia ao mesmo tempo que se confronta com a Grécia sobre as fronteiras marítimas no Mediterrâneo Oriental e com a França na Guerra da Síria e na Líbia, o que levou, recentemente, à assinatura de um tratado de defesa entre a França e a Grécia56. Este género de atitudes é importante no que se refere ao processo de decisão no seio da Aliança, já que em momentos de menor coesão entre os Estados-Membros a manutenção da obrigatoriedade da regra da unanimidade pode salvaguardar a Aliança e evitar a abertura de fissuras que poderiam ser exploradas por uma regra da maioria.
Por outro lado, e como este artigo já referiu, as divergências intraeuropeias estão associadas às opções estratégicas dos Estados Unidos. Os Estados Unidos encontram-se, há pelo menos doze anos, no seu período mais longo de retraimento estratégico, condicionado por divisões internas e pela necessidade de reconstrução da unidade interna, e isto tem provocado os momentos de incerteza para os aliados europeus, que se encontram divididos entre a perceção europeia sobre o declínio americano e a perceção europeia sobre o reposicionamento estratégico para o Indo-Pacífico, com a consequência, em ambos os casos, de uma simultânea maior vulnerabilidade e irrelevância estratégica da Europa (para os americanos)57.
Isto deve-se em parte à divergência de posições entre os Estados-Membros quanto ao tipo de ator na política de segurança em que a UE se deve tornar. Um grupo, liderado pela França, quer uma política ambiciosa em que UE possa conduzir operações de gestão de crises em larga escala e desenvolver capacidades militares e estruturas de comando que sejam autónomas em relação às dos Estados Unidos e da NATO. Um outro grupo, em redor da Alemanha, considera que deve ser fortalecido o pilar europeu dentro da NATO ao invés da autonomia estratégica europeia preferida por Paris. E tendo em conta que a adoção do NCE da NATO, em finais de junho de 2022, será precedida pela adoção do documento da «Bússola Estratégica» da UE, em março de 2022, é sintomático que não tenha havido, ao longo dos últimos dois anos, reuniões de alto nível entre a NATO e a UE para tentar conciliar estas diferentes abordagens estratégicas.
O terceiro desafio que o novo Conceito terá de abordar prende-se com a forma de assegurar como os membros da Aliança conseguem garantir o desenvolvimento, o reforço e a interoperabilidade das capacidades militares dos Estados-Membros para que a NATO mantenha uma capacidade de dissuasão convencional e nuclear credível: dotar a Aliança dos recursos necessários é condição para a sua eficácia.
As novas ameaças
Para além dos vários desafios que o comunicado reconhece poderem vir a transformar-se em ameaças para a Aliança, a Rússia destaca-se como o Estado que é agora identificado como o adversário com o qual a Aliança já não pode fazer business as usual porque as suas «ações agressivas representam uma ameaça à segurança euro-atlântica»58. O comunicado afirma que
«durante mais de vinte e cinco anos, a NATO trabalhou para construir uma parceria com a Rússia, nomeadamente através do Conselho NATO-Rússia (NRC). Contudo, a Rússia continua com a sua acumulação militar na Crimeia, as suas atividades provocatórias perto das fronteiras da NATO, a colocação de mísseis em Kaliningrado, o apoio político e a integração militar com a Bielorrússia, as repetidas violações do espaço aéreo aliado, bem como ações híbridas contra os aliados, tentativas de interferência nas eleições aliadas e nos processos democráticos, pressões e intimidações políticas e económicas, campanhas de desinformação generalizadas, atividades cibernéticas maliciosas. Todas estas ações ameaçam cada vez mais a segurança do espaço euro-atlântico e contribuem para a instabilidade ao longo das fronteiras da NATO e para além destas. Assim, a NATO suspendeu toda a cooperação prática civil e militar com a Rússia, mantendo-se ao mesmo tempo aberta ao diálogo político. Até a Rússia demonstrar o cumprimento do direito internacional e das suas obrigações internacionais [implementação dos Acordos de Minsk] e responsabilidades [respeito pela integridade territorial dos Estados vizinhos], não poderá haver um regresso ao “business as usual”»59.
Quanto à estratégia em relação aos países adversários da Aliança, a dificuldade é definir um consenso transatlântico em como lidar com a assertividade crescente da China no sistema internacional e as implicações que isto produz para a segurança da Aliança face ao aumento de capacidades militares, do uso da desinformação e instrumentos híbridos, assim como a cooperação militar entre a China e a Rússia. Na definição das ameaças, se a declaração de Londres de 2019 fez uma breve mas ambígua referência à China como o «rival sistémico e competidor económico», o relatório «NATO 2030» afirmou que China terá capacidade para projetar o seu poder militar à escala global incluindo no Atlântico Norte60. Daí que o novo Conceito Estratégico da NATO deverá reconhecer, pela primeira vez, que passou a ter dois rivais estratégicos simultaneamente. Se a Rússia já era reconhecida como a principal ameaça desde 2014 - o comunicado da Aliança referiu a Rússia como ameaça principal à NATO 61 vezes -, a China foi referida dez vezes, e apenas como um «desafio sistémico».
Mas será particularmente difícil os aliados concordarem numa estratégia transatlântica de contenção face à China61. Os Estados Unidos concebem o alargamento do âmbito geográfico de intervenção da NATO em função da contenção da China como prioridade estratégica, ao passo que a França e a Alemanha, Portugal e a Espanha focam-se no arco de crises, do Sahel, MENA e Leste europeu, ainda mais porque o recuo dos Estados Unidos do Médio Oriente e do Mediterrâneo tornou a NATO mais importante nessa região aos olhos dos aliados europeus do Sul, incluindo Portugal62. Se o novo Conceito Estratégico da Aliança não fizer extensa referência à China - mais pela falta de consensualidade entre os parceiros em como lidar com a China do que por falta de relevância da mesma - os Estados Unidos e o Reino Unido, os dois Estados com capacidades militares significativas, continuarão o seu «pivô» para o Indo-Pacífico, por considerarem a assertividade e o poder da China como a sua principal prioridade estratégica63. Consequentemente, qualquer decisão política e militar no futuro será inevitavelmente afetada por esse posicionamento estratégico, o que por seu turno tem implicações para os países europeus.
Como o consenso interno nos Estados Unidos entre democratas e republicanos sobre a China como prioridade estratégica para a política externa e a política de defesa norte-americanas não é partilhado pelos aliados europeus, não é evidente que os Estados Unidos consigam liderar uma contranarrativa estratégica democrática para conter a China nem que consigam, com os seus aliados europeus, impedir uma estratégia conjunta sino-russa antiocidental, em cujos territórios a China já se encontra direta ou indiretamente presente através de projetos de infraestruturas ou dependências tecnológicas.
Por seu turno, parece difícil que a competição bipolar entre os Estados Unidos e a China não venha obrigar os europeus a fazer escolhas de aliança política, militar e económica. Não parece sustentável, a médio prazo, que os europeus consigam conciliar duas formas de alinhamento: um político-estratégico numa aliança de defesa com os Estados Unidos (e ter acesso à garantia militar nuclear americana) e um comercial numa parceria económica e tecnológica com a China, principalmente em domínios críticos como o G5 e a inteligência artificial, por um lado, ou infraestruturas portuárias, por outro. A Alemanha é o aliado que mais evidencia este problema de querer prosseguir com uma política de equidistância entre os Estados Unidos e a China e resistir à pressão de ambos os lados64.
Da parte das potências revisionistas, o que se tornou evidente é que a Rússia e a China convergem em três objetivos: a recuperação da soberania política sobre territórios que consideram ser da sua zona de influência ou parte integrante, como a Ucrânia e Taiwan, respetivamente; o desafio aberto à preponderância global dos Estados Unidos; e a identificação da NATO como a perpetuação institucional da ordem internacional liberal liderada pelos Estados Unidos à qual as duas potências revisionistas se opõem. Da perspetiva da NATO, a crescente convergência estratégica entre a Rússia e a China como perturbadoras da ordem internacional condiciona a estratégia de segurança transatlântica, mas não anula a divisão quanto à resposta: os Estados Unidos, o Reino Unido e o Canadá concentram-se cada vez mais na ameaça chinesa; a Alemanha perspetivou uma Aliança para o multilateralismo e a França, por seu turno, mantém uma separação analítica entre a Rússia e a China65.
Devido a esta nova realidade, verifica-se o desenvolvimento de dinâmicas bi e multilaterais dentro e fora dos quadros institucionais existentes: por exemplo, com a assinatura do acordo Aukus, entre os Estados Unidos, o Reino Unido e a Austrália, em meados de setembro de 2021, e, em finais do mesmo mês, quando a França e a Grécia, ambos membros da NATO e da UE, assinaram um tratado de assistência mútua em caso de agressão por um terceiro país, que visa fornecer, por parte da França, três fragatas Mistral e mais de 20 caças a jato Rafale, à Grécia66. Estes novos acordos institucionais visam a contenção militar de um terceiro país, nomeadamente a China, no caso do Aukus, e a Turquia, no caso franco-grego, com implicações para a dinâmica interna da NATO, e mesmo a aplicação do artigo 5.º do Tratado de Washington, no caso do tratado entre Paris e Atenas. Contudo, duas décadas depois do 11 de Setembro, e das lições aprendidas com as diferentes intervenções militares no Médio Oriente, os aliados não perspetivam um alargamento institucional da Aliança Atlântica.
Daí que o regresso dos Estados Unidos à família transatlântica não tivesse decorrido da melhor forma devido a sinais contraditórios ou problemáticos vindos de Washington. Quatro meses depois de ter estado na Europa, o Presidente Biden regressou para convencer os europeus que ainda permaneciam aliados essenciais dos Estados Unidos67. Primeiro, a reação inicial dos europeus, principalmente da Alemanha e da França, à eleição de Joe Biden não correspondeu a um entusiasmo que sugerisse um regresso ao statu quo antes de 2016 e à subscrição automática das políticas da nova Administração. A Alemanha mostrou-se indiferente à pressão norte-americana quanto ao gasoduto Nordstream II e a França continuou a insistir na «autonomia estratégica europeia».
Segundo, a forma apressada e caótica como os Estados Unidos procederam à retirada militar do Afeganistão, em 15 de agosto de 2021, levantou novas questões sobre a consulta política entre aliados na Aliança. As duras críticas dos aliados europeus, mais do que questionarem a retirada militar em si, já prevista, prenderam-se com a forma apressada da retirada e a falta de consulta prévia com os aliados, e com dúvidas quanto à fiabilidade que os europeus podiam ter nos Estados Unidos na realização de operações militares conjuntas futuras68.
Por último, o anúncio da assinatura do já referido acordo Aukus - um tratado de cooperação estratégica, em 17 de setembro, entre os Estados Unidos, o Reino Unido e a Austrália, sobre o fornecimento de submarinos nucleares norte-americanos à Austrália - gerou uma forte controvérsia franco-americana, por três razões69. Primeiro, porque o Aukus confirmou a política de Biden de adição de novas parcerias bi e multilaterais com aliados regionais democráticos. Segundo, porque a operacionalização do foco estratégico norte-americano no Indo-Pacífico marcou o fim da Europa como prioridade estratégica dos Estados Unidos. Terceiro, porque mostrou que na perceção do papel internacional da China não existia convergência nem transatlântica nem europeia sobre a contenção da China como prioridade estratégica.
Inevitavelmente, momentos de revisão do Conceito Estratégico da NATO implicam momentos de tensão, incerteza e divergência entre aliados sobre as suas perceções quanto à análise do sistema internacional e às prioridades estratégicas. Esta tensão reflete-se também em 2021, na necessária conciliação entre a manutenção das core tasks da NATO, a começar pela defesa coletiva e a manutenção entre a comunidade de segurança transatlântica, por um lado, e as divergências que emergem na resposta dos aliados às novas ameaças à estabilidade internacional, por outro. O novo Conceito Estratégico da NATO levanta o dilema da relação transatlântica atual: enquanto a França insistia em que uma maior capacidade de defesa europeia não enfraqueceria a NATO, vários aliados europeus alertavam que essa autonomia iria minar a coesão da Aliança transatlântica. Este dilema está a ser posto à prova na revisão paralela em curso das estratégias de segurança e defesa, com dois novos documentos, o Conceito Estratégico da NATO e a «Bússola Estratégica» da UE, a serem adotados na primeira metade de 2022: estes processos de revisão deveriam ser a plataforma de crescente articulação entre ambas as instituições na definição das posições estratégicas quanto ao futuro quadro de competição geopolítica global e de reforço de alianças democráticas de defesa, mas não parece que este seja o caso.
Da parte dos europeus, espera-se que tanto o novo Governo alemão, liderado pelo chanceler Olaf Scholz, como o novo chefe de Estado francês, resultante das eleições presidenciais de maio de 2022, se posicionem de forma clara face à nova competição geopolítica internacional a tempo da adoção do novo Conceito Estratégico a adotar na cimeira da NATO de Madrid, em junho de 2022, e que garanta o reforço da coesão transatlântica, da consulta política entre aliados e da comunidade de segurança transatlântica. Caso contrário, o gradual fortalecimento do braço militar da NATO será insuficiente para evitar a erosão da comunidade transatlântica.
Num discurso em Riga, na Letónia, em 30 de novembro de 2021, Jens Stoltenberg sublinhou que o novo Conceito Estratégico da NATO deveria reafirmar os valores da NATO - democracia, liberdade e Estado de direito - a nível interno e externo; reafirmar a defesa coletiva como forma de manter a NATO forte militarmente, modernizar a dissuasão e a defesa; reforçar o papel da Aliança no fortalecimento da resiliência das sociedades, instituições e infraestruturas; sublinhar que a NATO precisa de ter uma perspetiva global devido às ameaças não territoriais sem que isto signifique que ela se torne um polícia global; e reafirmar que a NATO continua a ser o elo fundamental entre a Europa e a América do Norte70.
Se o reforço da coesão transatlântica é a condição sine qua non para uma Aliança Atlântica eficaz, a preparação de um Conceito Estratégico que identifica as ameaças do momento e perspetiva a melhor estratégia para antecipar e minimizar os efeitos das mesmas será a melhor garantia da adaptação da NATO ao ambiente estratégico internacional mais hostil.
O «desafio» da China tende a avançar para a categoria de ameaça, mas levanta questões sobre como deve ser contida a ascensão da China, em que área geográfica e como? Como foi a URSS durante a Guerra Fria? Essa contenção foi uma contenção militar (convencional e estratégica), e não económica e civil-tecnológica. Um conflito devido a Taiwan não poderia envolver a NATO, seria uma decisão dos Estados Unidos. Por outras palavras, a contenção da China deve ser um objetivo global, mas a aplicação do artigo 5.º deveria limitar-se à atuação da China na área geográfica do Atlântico Norte. O relacionamento difícil com a Rússia perdura e encontrou, em dezembro de 2021, o auge da confrontação entre o Ocidente e a Rússia, com o estacionamento de cerca de 100 mil tropas russas na fronteira russo-ucraniana e a suspeita de que a Rússia poderá estar a planear uma invasão da Ucrânia para breve71. A perspetiva de um conflito latente na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia levanta grande preocupação e fez soar os sinais de alarme nas capitais da Aliança sobre a alteração do statu quo europeu e uma alteração de toda a ordem do pós-Guerra Fria. Não sabemos quais são as intenções de Putin ou se ele próprio já decidiu, e se usa as tropas no terreno para pressionar os europeus e norte-americanos para obter concessões e dividir os aliados transatlânticos. Parece decidido em forçar uma alteração da ordem europeia do pós-Guerra Fria. Que Putin quer travar o alargamento da NATO para a Ucrânia não é novo, mas exigir da NATO o fim da perspetiva de adesão assim como a saída das tropas aliadas que se encontram nos países bálticos e na Polónia, países membros da Aliança Atlântica há vários anos, apenas contribui para a escalada das tensões. O custo do lançamento pela Rússia de uma incursão militar seria substancial e acarretaria sanções sem precedentes, com a Rússia a poder vir a perder mais do que a ganhar, mas a Europa e os Estados Unidos têm de ser claros e unidos na sua posição. Neste contexto de tensão crescente, o pior dos cenários para 2022 seria a simultaneidade de um conflito com a Rússia por causa da Ucrânia e de um conflito com a China por causa de Taiwan72.
Considerações finais
As três décadas do pós-Guerra Fria produziram um ambiente de segurança euro-atlântico mais hostil e as diferenças de perceção de ameaça entre os aliados tornaram-se mais evidentes. Se os conceitos estratégicos da Aliança de 1991, 1999 e 2010 tentaram responder ao alargamento das ameaças e em boa parte aceitaram a igualização das mesmas - segurança cooperativa, gestão de crises e defesa coletiva -, o Novo Conceito de 2022 deverá provavelmente adotar uma visão mais restrita e hierárquica das ameaças. A defesa coletiva, a identificação da Rússia enquanto principal ameaça à Aliança Atlântica e a China como crescente desafio irão ser a prioridade do novo Conceito Estratégico. Neste sentido, o leque de opiniões diversas no seio da Aliança sobre a importância relativa das ameaças que existiu nas últimas três décadas poderá diminuir. Face à crescente contestação da Rússia sobre as opções estratégicas da Ucrânia e a possibilidade, em finais de 2021, de ocorrência de um conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia em 2022, a NATO enfrenta duas possibilidades: ou aumenta a sua coesão face à ameaça de guerra ou corre o sério risco da sua desunião.
A vinda de Biden à Europa e a cimeira da NATO foram importantes para estabelecer os termos da cooperação transatlântica e da revitalização do CET, mas os pormenores de como esta cooperação pode ser reforçada serão medidos pelo grau de convergência que os Estados Unidos e os seus aliados europeus alcançarem na forma como lidam com a Rússia e a China. Em última análise, é do interesse de todos os aliados europeus apoiar o regresso da Administração Biden a uma política externa e de segurança multilateralista e cooperativa, em primeiro lugar, porque a janela de oportunidade americana na política interna é muito curta e, em segundo lugar, porque os europeus ainda confiam muito nos Estados Unidos como ator pacificador da Europa em termos de segurança e defesa.
O próximo Conceito Estratégico da NATO, de 2022, será adotado num clima de crescente hostilização com a Rússia, e também a China, e num quadro geopolítico que desafia a ordem de segurança europeia e transatlântica do pós-Guerra Fria. A melhor forma de evitar que os documentos já estejam ultrapassados pelas circunstâncias quando forem adotados é assegurar ao máximo que se mantenha a coesão e união transatlântica.