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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.72 Lisboa dez. 2021  Epub 31-Dez-2021

https://doi.org/10.23906/ri2021.72a03 

Portugal e a NATO

O paradigma do Flanco Sul da NATO e a relevância geoestratégica para Portugal

NATO’s southern flank paradigm and the geostrategic relevance to Portugal

Luís Manuel Brás Bernardino1 

1 Instituto Universitário Militar, Rua de Pedrouços, 122, 1400-287 Lisboa, Portugal | bernardino.lmb@ium.pt


Resumo

Num momento em que a NATO se prepara para discutir e aprovar na Cimeira de Madrid (2022) o seu novo Conceito Estratégico, e num enquadramento geopolítico e geoestratégico global complexo e imprevisível, onde a segurança cooperativa e coletiva continua a ser o instrumento que faz funcionar a Aliança, parece-nos relevante refletir sobre o papel da organização no mundo e especialmente no seu Flanco Sul. Esta reflexão, focada na vertente estratégico-operacional, pretende apontar elementos importantes para o novo Conceito Estratégico da Aliança e analisar o impacto para Portugal.

Palavras-chave: NATO; segurança coletiva; defesa global; Conceito Estratégico da Aliança

Abstract

At a time when NATO is preparing to discuss and approve at the Madrid Summit (2022) the new Strategic Concept, and in a very complex and unpredictable global geopolitical and geostrategic framework, where cooperative and collective security remains the instrument that makes the Alliance work, it seems relevant to reflect on the role of the organization in the world and especially on its southern flank. This reflection, focused essentially on the strategic-operational aspect, aims to point out crucial elements for the new Strategic Concept of the Alliance and the impact for Portugal.

Keywords: NATO; collective security; global defense; NATO Strategic Concept

«…to the extent that more resources

for the Southern Flank

means fewer resources for the Eastern Flank,

differences between the threat perception

of the NATO allies can create a real bottleneck…»1

Quando o embaixador Pedro Teotónio Pereira, em nome de Portugal, juntamente com representantes de mais 11 países «fundadores», assinaram em 4 de abril de 1949, em Washington, nos Estados Unidos, o designado «Tratado de Washington», estava criada a que viria a ser, nos dias de hoje, a maior e mais duradoura aliança militar (institucionalizada) da história da humanidade: a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), ou, na designação original na língua inglesa, North Atlantic Treaty Organization (NATO)2.

Ao longo de setenta anos, a «Aliança», como é comummente conhecida, tem tido um significativo impacto nas políticas de defesa e segurança globais, contribuindo, direta ou indiretamente, para os propósitos e objetivos dos seus Estados-Membros, onde quer que eles se tenham materializado… no tempo e no espaço. A Aliança, ao longo deste lapso de tempo, acompanhou um mundo em mudança… serviu os propósitos das políticas da reconstrução da Europa, relacionou-se com a criação da União Europeia (UE) e adaptou-se, mais recentemente, aos interesses globais de alguns dos seus Estados-Membros, nomeadamente os Estados Unidos na questão da Líbia e do Afeganistão. A Aliança expandiu a sua dimensão regional, tornou-se mais relevante a Sul e definiu o Flanco Sul como uma das suas áreas prioritárias de intervenção operacional.

Esta dimensão mais recente de organização político-estratégica de vocação regional, mas de dimensão global, colocou novos e mais desafiantes objetivos para a Aliança, e também para os seus Estados-Membros. Mas a grande questão que urge refletir é sobre as capacidades que a NATO tem (ou não) de se tornar, ao serviço dos interesses de alguns dos seus países, numa organização global, e saber nomeadamente qual a relevância para Portugal do papel desempenhado no designado «Flanco Sul»33.

Como salientava o então ministro da Defesa Nacional de Portugal, José Azeredo Lopes, na abertura da conferência sobre o «Flanco Sul da NATO», na Assembleia da República em 24 de setembro de 2018, e abordando a relevância estratégica para Portugal, «hoje, a NATO não pode ser encarada como autossuficiente do ponto de vista global, para a resolução de todas as questões que contendam com a segurança e com a defesa», pois que «a Aliança Atlântica continua a ser o nosso património e um desafio comum»4, nomeadamente no seu Flanco Sul.

Esta afirmação define só por si duas ideias-chave: a primeira é de que o Flanco Sul da Aliança é também o nosso flanco sul em termos de segurança, apontando para que a relação com as assimetrias em África se torne relevante para a NATO, para a UE e para Portugal.

A segunda ideia é que a Aliança continua a ser o nosso principal instrumento operacional para contribuirmos para a paz e a segurança na região do mar Mediterrâneo e consequentemente para garantir a nossa própria segurança. Ambas as considerações colocam em evidência a nossa interdependência da Aliança para continuarmos a ser produtores de segurança na região e a necessidade que existe em coordenarmos, mais e melhor, o nosso empenhamento operacional em África e no mar Mediterrâneo.

Assim, olhando para o passado e para o presente, pretendemos neste artigo identificar as principais ameaças e riscos para Portugal que derivam do seu flanco sul e perspetivar qual o empenhamento futuro das Forças Armadas Portuguesas (FA) no sentido de contribuir, integrado nas operações da NATO, para a segurança na região do mar Mediterrâneo e em África.

Os principais dilemas de segurança para Portugal nos 70 anos da NATO

Centrada, desde sempre, no Atlântico Norte, a NATO serviu o propósito político de após a Segunda Guerra Mundial unir os Estados Unidos (e o Canadá) à Europa, criando uma aliança transatlântica que perdura até aos dias de hoje. Em termos europeus, era vista como uma segurança adicional (e talvez a única possível na altura) para permitir a paz e a reconstrução no período pós-Segunda Guerra Mundial, garantindo segurança e estabilidade na Europa. Como alguns especialistas referiam, a Aliança Atlântica tinha, nessa época, o propósito filosófico-moral e político de «manter os Americanos In [Europa], os Russos Out [Europa] e os Alemães Down»5.

A Aliança contribuiu, desde a sua fundação, para manter o equilíbrio de forças global e foi um estabilizador da segurança na Europa, ou, como salientou Adriano Moreira,

«o projecto comunitário [construção DA UE] desenvolveu-se sob a proteção de um bipolarismo em que a Aliança Atlântica e o Pacto de Varsóvia, usando a variável do medo recíproco, conseguiram, assim mesmo, impor uma ordem durante meio século semeado de guerras marginais e por procuração, mas evitando a subida aos extremos que implicaria o holocausto»6.

Um dos primeiros artigos de opinião escritos em Portugal sobre a adesão de Portugal à NATO foi publicado na Revista Militar. O general José Justino Teixeira Botelho, então presidente da direção da Revista Militar, publicou, em janeiro de 1950, um artigo intitulado «1950 - Ano de guerra? Ano de paz?», no qual salienta a relevância, mas também a incerteza, do que seria pertencer ao pacto do Atlântico Norte, em nome de uma segurança europeia e obviamente em prol da segurança nacional, pois, segundo o autor, «o pacto do Atlântico Norte é, das providências para fazer face a tão grande inimigo, decerto a mais concreta e importante. Portugal, associando-se a esse pacto, assume obrigações internacionais, muito para ponderar, mas que não constituem novidade na sua História»7.

No sentido de se afirmar como uma entidade coletiva de segurança, a NATO definiu o seu primeiro Conceito Estratégico em 1 de dezembro de 1949 (DC 6/1), em que apresentou as primeiras orientações que viriam a guiar o conceito estratégico-militar de 1950 (MC 14 de 28 de março de 1950), designado por Strategic Guidance for North Atlantic Region Planning e que viria a ser operacionalizado através do NATO Medium Term Plan (DC 13 de 1 de abril de 1950). Passadas sete iterações sucessivas8, chegamos ao atual Conceito Estratégico da Aliança (em revisão) aprovado na Cimeira de Lisboa (2010) e que já se encontra desadequado da realidade geopolítica e geoestratégica atual9.

Nos 70 anos da NATO e nos sete conceitos estratégicos aprovados, como salienta Vieira Borges10, a segurança transatlântica e a cooperação entre as duas margens do Atlântico Norte foram sempre os elementos centrais que alimentaram a cooperação inter-Estados. Neste contexto, a posição geoestratégica de Portugal, e nomeadamente do arquipélago dos Açores, foi, desde sempre, relevante para a Aliança, constituindo para Portugal um elemento charneira, ou uma moeda de duas faces, pois que a aposta na modernização e na maior capacitação operacional das nossas Forças Armadas contribuiria também para esse desiderato estratégico transatlântico.

Como organização para a paz, a NATO desenvolveu um conceito alargado de coesão e cooperação coletiva nos vários conceitos estratégicos e transportou, ao longo dos 70 anos, um conjunto de valores, representando um corpo de ideais que a fazem valer no contexto atual do mundo moderno em que vivemos. A Aliança é comummente identificada como uma «comunidade de valores» ou uma «aliança político-militar de valores», que, ao serviço da paz, da segurança e do desenvolvimento sustentado (e obviamente dos interesses dos seus Estados-Membros), vem ampliando o seu nível de empenhamento e intervenção regional, atuando cada vez mais à escala global. Aspeto que Portugal tem incluído nos mais recentes quatro conceitos estratégicos de defesa nacional (1985, 1994, 2003 e 2013), em que a referência explícita à NATO surge associada à nossa posição geoestratégica transatlântica e à possibilidade de beneficiarmos de um estatuto de relevo e assim contribuir para uma maior capacitação operacional das nossas FA.

No quadro da atual conjuntura geoestratégica portuguesa, em que nos debatemos com inovadores desafios securitários semelhantes aos da Aliança e do mundo, e onde o terrorismo, as migrações descontroladas, o tráfico de pessoas e de armas, e, mais recentemente, a cibercriminalidade (entre outras ameaças), constam da nossa agenda de segurança e defesa, será porventura interessante aprofundar a reflexão em torno de um novo e mais atual Conceito Estratégico da Aliança. E, eventualmente, alinhar interesses nacionais que no futuro possam ser considerados à luz da atual revisão do Conceito Estratégico de (Segurança e) Defesa Nacional, nos superiores interesses de Portugal11, tal como foi feito no passado.

Este último aspeto será, porventura, no futuro próximo, o maior desafio para Portugal e para as FA portuguesas: ser capaz de pertencer a uma aliança militar global e aceitar o desafio de um maior investimento na área da defesa, apostando para isso na tecnologia e no desenvolvimento tecnológico, no fortalecimento das indústrias de defesa, procurando integrar os elevados padrões e standards internacionais associados à investigação, ao desenvolvimento e à produção industrial em áreas de reconhecida mais-valia técnica e tecnológica.

Quando foi assinado o Tratado de Washington, em 1949, as FA, que não tinham intervindo na Segunda Guerra Mundial, apresentavam graves deficiências em termos de equipamento e armamento, tanto em quantidade como em qualidade, e estavam desligadas da evolução tecnológica e das dinâmicas inovadoras da doutrina militar e da tática da maioria das forças armadas europeias e mundiais. O foco tinha-se centrado na manutenção da segurança nacional e no apoio ao desenvolvimento das províncias coloniais, centrado na consolidação de um statu quo internacional que lhes permitia politicamente algum conforto e paz social, mas que nos afastou do paradigma de modernidade evolutivo da Aliança.

Quando foi decidido, quase que por instinto diplomático, que Portugal não poderia perder esta oportunidade de, ao aderir à NATO, se ligar às dinâmicas da segurança global e principalmente europeias, os líderes políticos não contariam certamente com a relevância e o impacto inicial que esta decisão política teria nas FA e concretamente no Exército. Os primeiros tempos, ao longo da década de 1950, foram anos inovadores e muito difíceis para quem sentia uma barreira ideológica, tendo como referência outra doutrina militar e vivido um afastamento ao nível da tecnologia, da educação militar (nomeadamente o domínio da língua inglesa) e do treino operacional, estando afastados dos padrões das forças armadas europeias e mundiais que tinham participado na Segunda Guerra Mundial.

Os desafios, que pareciam ser gigantescos, iriam motivar toda uma geração de oficiais das FA que via nessa ligação à NATO uma oportunidade de se desenvolver em termos pessoais e profissionais, de criar condições técnico-táticas e doutrinárias para cumprir com os compromissos assumidos por Portugal no seio da Aliança. Este aspeto implicaria uma mudança de mentalidade, de equipamento e de organização militar, essencialmente ao nível da doutrina militar e da educação e treino no seio das FA. O paradigma tinha mudado e Portugal e as suas Forças Armadas tinham de se adaptar a esse novo paradigma de futuro…

O final da década de 1950, que viria a ser conhecida por uma fase fundamental de modernização nas FA, implicaria, nas décadas seguintes, a elaboração de quadros orgânicos das unidades com base no modelo das unidades americanas, a criação de um sistema operacional alinhado com a Aliança, assim como a adoção de um plano de reequipamento apoiado na aquisição de equipamento militar americano. Implicava ainda uma atualização do sistema de recrutamento e mobilização, e uma aposta na preparação de quadros e na constituição de quartéis-generais, bem como no treino operacional e na realização de manobras militares, e ainda ao nível do planeamento e preparação de unidades constituídas para integrar o sistema de forças da Aliança12.

Neste contexto, como salientaria, mais tarde, o general Ferreira de Macedo, «as relações estabelecidas com oficiais dos exércitos estrangeiros, especialmente com os oficiais do Exército dos Estados Unidos [...] muito contribuiriam para a abertura dos espíritos e novas ideias e novos métodos, para a satisfação da ânsia de aquisição de conhecimentos, para a vontade de alteração e de melhoramento de que todos estavam imbuídos», aspeto que marcaria a diferença nesta fase inicial de adesão à NATO13.

A mudança de mentalidades levou a que uma percentagem significativa de oficiais tivesse sido indigitada para tirar cursos nas escolas militares dos Estados Unidos, iniciando-se uma cooperação militar bilateral (principalmente), enquadrada num quadro multilateral, criando-se nessa década o que se designou como «geração OTAN»14. Esta formação militar visava preparar alguns dos oficiais superiores e oficiais generais mais habilitados, para incorporarem a estrutura de comando militar da Aliança e iniciarem o planeamento nacional de forma a integrar o dispositivo de forças atribuído à organização e a fazer convergir a doutrina militar e os procedimentos operacionais com os da Aliança.

A posição geoestratégica de Portugal, a boa capacidade de mobilização e a vontade política de se alinhar com os vencedores da Segunda Guerra Mundial levaram o, na altura, ministro da Defesa, Santos Costa, a garantir um compromisso nacional significativo com a Aliança, baseado essencialmente no Exército, que, em caso de guerra, via-se na obrigação de disponibilizar um efetivo em termos de homens e de material bem acima da nossa realidade, capacidades e possibilidades, funcionando contudo como incentivo nacional para maximizar e usufruir dos benefícios de pertencer à Aliança e beneficiar essencialmente dos programas de reequipamento e treino operacional que viriam a ter lugar nas décadas seguintes.

Verificou-se, contudo, ser um comprometimento de disponibilização de meios e forças algo «irrealista» de Portugal para a Aliança, que viria a ser redimensionado no seio da NATO, tendo sido atribuído a Portugal, no Plano de Defesa de Médio Prazo (1951), o compromisso de mobilizar uma «Divisão OTAN», obedecendo a critérios de meios e operacionalidade que colocariam, ainda assim, nos anos seguintes, relevantes desafios para as lideranças militares das FA.

Na Cimeira de Lisboa (1952) viria a ser revisto este objetivo inicial e ficaria estipulado que Portugal teria a responsabilidade de mobilizar e atribuir, de forma faseada, duas «divisões de campanha», ficando ainda com a responsabilidade de mobilizar e preparar duas «divisões SHAPE» a empenhar à ordem. Embora Portugal, na sequência da supracitada reunião de Lisboa, se tenha comprometido a

«alcançar níveis de forças significativos, tal como os que a Aliança para si própria estabelecera, quer uns, quer outros, revelam-se no curto prazo irrealistas. Em termos nacionais admitia-se uma contribuição que podia atingir para o Exército, nos dois anos seguintes, o levantamento de quatro Divisões. O reconhecimento do irrealismo daqueles objectivos, quer da Aliança, quer nacionais, levará a que a NATO os reveja em 1959», o que viria a acontecer15.

Assim, tendo por base o compromisso nacional com a Aliança entre 1952-1953, seria estipulado um novo dispositivo territorial do Exército português, fixando o estabelecimento de cinco regiões militares, com cinco divisões de campanha, e ficando a «Missão SHAPE» em Lisboa na dependência do Secretariado-Geral da Defesa Nacional16, com a missão de acompanhar o processo de elaboração da doutrina nacional. Processo que se revelou fundamental para acelerar a integração militar das FA na Aliança17.

Entre 1952 e 1954, o material de guerra (material de artilharia, carros de combate M42, material de transmissões, material de engenharia, viaturas sanitárias e material de transporte) cedido pelos Estados Unidos para equipar uma divisão começou a chegar a Portugal, marcando o início do processo de reequipamento das FA, pois que

«a participação de Portugal na OTAN teve profundas repercussões nas Forças Armadas, organização, equipamento, métodos e programas de instrução, técnicas de Estado-Maior, processos de trabalho foram significativamente alterados mercê do acesso a nova documentação e regulamento, dos contactos internacionais, da frequência de cursos no estrangeiro e do equipamento recebido ao abrigo da ajuda mútua»18.

Com o início dos conflitos na região norte de Angola, em fevereiro de 1961, dá-se início a uma nova fase nas FA, com implicação na nossa relação de cooperação e compromisso com a Aliança Atlântica. O esforço de guerra nas províncias ultramarinas exigido pela nossa política para África nas décadas seguintes, levaria à adoção de novas prioridades para as FA que agora «marchavam em força para África». O processo de reequipamento associado à nossa adesão à NATO e a aprendizagem de novas técnicas e doutrinas no seio da Aliança cedo deram origem a uma preparação para uma doutrina contrainsurrecional e a adoção de uma organização militar virada para África, com técnicas e procedimentos operacionais próprios e obviamente com equipamentos bem diferentes… o material pesado e empregue segundo o princípio da massa, típico da doutrina NATO, deu origem a material ligeiro e empregue cirurgicamente em ações de contraguerrilha. No início da década de 1960, o paradigma das FA tinha mudado com a guerra em África e a relação com a NATO «desvaneceu-se»19.

Deixamos assim de ter capacidade de reagir às exigentes demandas da Aliança Atlântica e passamos um período em que, contrariamente ao porventura esperado, não se assistiu ao comprometimento da NATO no conflito africano, onde não tivemos qualquer apoio declarado no nosso envolvimento em África, nem tivemos as necessárias condições económicas e estruturais para investir em pessoal e material, e obviamente de assumir, em simultâneo, os compromissos nacionais com a NATO. As FA e Portugal estiveram, entre 1962 e 1975, num período de alguma letargia e pouco ou quase nada envolvidos no processo de crescimento político-militar da Aliança Atlântica. Esta situação resultou

«no abrandamento de preparação das tropas da Divisão para o ambiente operacional convencional e NBQ. Em compensação, a preparação para a actividade da contra-subversão e contra-guerrilha atingiu índices elevados, designadamente no que diz respeito às Tropas Especiais (Caçadores Especiais, Paraquedistas e Comandos)»20, com consequências para o futuro das FA e para Portugal.

O assunto da guerra de África não constava das agendas da Aliança e não viria a ser colocada a hipótese de intervenção, nem equacionado o apoio direto ou indireto da Aliança aos esforços de guerra de Portugal em África. A NATO não serviria os interesses de Portugal em África, mas seria relevante na dinâmica que as FA colocaram ao nível da mobilização, formação e aperfeiçoamento operacional de unidades constituídas para defesa dos interesses de Portugal em África21.

A Revolução dos Cravos ocorrida em 25 de abril de 1974 marcou um virar de página na história de Portugal e teve um impacto nas Forças Armadas que fizeram a revolução e obviamente no Exército português que liderou (em grande medida) o processo revolucionário e que viria a empenhar-se decisivamente na estabilização do Estado de direito e na complexa transição para a democracia nos anos seguintes.

Se no período inicial da nossa adesão à organização procuramos convergir para uma uniformização com as forças armadas mais avançadas, nomeadamente, pela padronização das doutrinas, dos procedimentos operacionais e dos equipamentos militares, com o período da guerra colonial (1962-1974) tivemos não só uma estagnação, mas um retrocesso e uma profunda divergência, como vimos, ao definirmos outras prioridades para a doutrina, para o emprego operacional e para as políticas de reequipamento.

O período pós-revolução surgiu como um novo realinhamento e uma nova fase de reaproximação das FA com os exigentes padrões da Aliança. As FA, que se haviam especializado na contrassubversão e nas técnicas, táticas e procedimentos de guerrilha, empregando meios não convencionais numa guerra não convencional, tinham agora de mudar de mentalidade, de cultura organizacional e de paradigma… tinham de se reafirmar no seio da Aliança. As FA, ao mesmo tempo que se desmobilizavam e desarmavam de uma guerra, tinham de, noutra perspetiva, reequipar-se, reorganizar-se e especializar-se para uma tipologia de guerra convencional clássica segundo os novos padrões NATO22.

Na sequência da queda do Muro de Berlim em 1989 e da inovadora geopolítica global, em 1991, a NATO viria a aprovar um novo Conceito Estratégico que estabelecia uma nova estrutura de forças mais consentânea com as realidades da conjuntura estratégica do momento (MC-400 - MC Directive for Military Implementation of the Alliance's Strategic Concept - 12 de dezembro de 1991). As forças convencionais da Aliança passam a ser organizadas em três tipos: as Forças de Reação Imediata e Rápida (Reaction Forces), com unidades que possam configurar uma primeira resposta da NATO perante uma situação concreta; as Forças Principais de Defesa (Main Defense Forces), orientadas para garantir a defesa da Aliança como um todo; e as Forças de Aumento (Augmentation Forces), destinadas ao reforço do conjunto das forças atrás referidas. Esta mudança de conceito implicou também uma adaptação no Sistema de Forças Nacional, bem como na missão genérica das FA. A catalogação de forças e meios viria a tornar-se mais exigente e o alinhamento entre a capacitação e o comprometimento de meios e capacidades escalou para outro patamar. Multiplicou-se a presença em grupos de trabalho, na produção de doutrina, a participação em exercícios militares e o envolvimento operacional das FA nas operações da Aliança.

As novas missões da NATO e o envolvimento de Portugal

Esta alteração do conceito de forças na NATO imprimiu uma nova dinâmica operacional para a Aliança com repercussão no Sistema de Forças Nacional, nas missões específicas e no dispositivo de forças. Fernando Nogueira, ex-ministro da Defesa Nacional, referia a este propósito que «às Forças Armadas Portuguesas colocam-se assim, para além da sua missão principal de defesa militar da república, novas missões e novas responsabilidades…, solicitações que, no futuro próximo e na actual conjuntura internacional, parecem constituir verdadeiros desafios»23.

Estas novas solicitações e desafios materializam-se na satisfação dos compromissos assumidos por Portugal no seio da NATO e consubstanciaram-se, em 1999, na primeira missão militar envolvendo as FA e, em maioria de esforço, o Exército, ao serviço da Aliança. Precisamente no centro da Europa e não muito longe, onde cinquenta anos antes tinha sido assinado o acordo de paz que poria fim à Segunda Guerra Mundial e que criaria as condições geopolíticas e geoestratégicas para a formação da primeira missão da Aliança Atlântica na Bósnia-Herzegovina (1991-1995), tendo Portugal iniciado a sua participação em 1995-1996.

Ao longo de vinte anos, entre 1999 e 2019, a NATO desenvolveu uma capacidade militar expedicionária que congregou «coligações variáveis de geometria variável» em múltiplos conflitos, transvasando a tradicional área de operações euro-atlântica e participando em operações em áreas tão remotas e distantes, designadas de operações out of area, tais como o Paquistão, o Afeganistão, o Iraque e a Líbia, entre outras, tornando-se numa organização de segurança global. Aspeto que ficou ainda mais evidente depois do atentado às Torres Gémeas em Nova York, ocorrido em 11 de setembro de 2001, quando pela primeira vez o artigo 5.º foi evocado por um dos Estados-Membros (Estados Unidos), tendo arrastado para a «Global War on Terror» a Aliança Atlântica e a maioria dos seus Estados-Membros.

No âmbito específico da NATO, as FA têm integrado, desde o início das operações militares da Aliança, múltiplas missões em distintos teatros de operações, envolvendo um efetivo de cerca de 16 500 militares, ao longo dos últimos vinte e quatro anos24. De igual modo, o Exército português garantiu, desde 2003, o aprontamento e sustentação de 23 unidades para a componente terrestre da NATO Response Force (NRF), tendo participado também no âmbito das «Assurance Measures», na Lituânia (2015 a 2017), envolvendo um efetivo de 4788 militares, enquadrados em unidades de escalão batalhão (Task Group), devidamente equipados, treinados e certificados conforme os exigentes padrões da Aliança Atlântica25.

Através da participação na NATO Implementation Force e na NATO Stabilization Force na Bósnia-Herzegovina, as FA iniciaram a sua participação em operações de paz no contexto da NATO nos Balcãs, integrando o 2.º Batalhão de Infantaria Aerotransportado (2.º BIAT) na operação Joint Endeavour (20 de dezembro de 1995 a 20 de dezembro de 1996), fazendo parte da Implementation Force (IFOR), estipulada no âmbito dos acordos de paz de Dayton. Entre 1996 e 200426, ao longo de oito anos de missões militares NATO na Bósnia-Herzegovina, as FA, e especialmente o Exército, projetaram centenas de militares, tendo o general Cerqueira Rocha, salientado que

«a participação militar portuguesa na IFOR/SFOR, que prossegue, teve características especiais que se julga de interesse sublinhar. Em termos nacionais, traduziu-se no emprego das primeiras unidades a actuar no Teatro de Operações Europeu após a Primeira Guerra Mundial e as primeiras unidades de combate a intervir, no exterior, após 1975»27.

Já a missão Kosovo Force (KFOR) no Kosovo foi estabelecida em 12 de junho de 1999, na sequência de uma campanha aérea de 78 dias denominada Operation Allied Force, com início em 24 de março de 1999, e que constituiu o primeiro empenhamento operacional da NATO, precisamente cinquenta anos depois da sua fundação. Esta campanha aérea foi lançada pela Aliança com o objetivo de deter e reverter a catástrofe humanitária na região28. As forças nacionais destacadas (FND) na missão do KFOR, empenhadas entre 1999 e 2017, essencialmente militares do Exército, envolveram 26 unidades de escalão batalhão, destacando mais de oito mil militares29.

A missão da International Security Assistance Force (ISAF)30 no Afeganistão iniciou-se em 2011 e foi concluída no final de 2014, dando lugar, em 2015, a uma nova fase do empenhamento da Aliança no Afeganistão, lançando a operação Resolute Support Mission (RSM), vocacionada para o treino, o aconselhamento e a assistência militar às forças de segurança afegãs e instituições de segurança e defesa31. Ao longo dos doze anos de empenhamento da Aliança Atlântica no Afeganistão no contexto ISAF, as FA estiveram presentes desde o início, envolvendo mais de 3200 militares, com diferentes tipologias de forças e de missões. Ao longo dos quatro anos da RSM, o empenhamento nacional foi contínuo e significativo, tendo empenhado, em média, no teatro de operações do Afeganistão cerca de 200 militares.

Em termos operacionais importa ainda destacar a presença nacional na missão Ocean Shield, na região do Corno de África, como contributo para a Operation Enduring Freedom - Horn of Africa, onde Portugal manteve um empenhamento naval significativo entre 2009 e 2016. Por outro lado, na missão NATO no Iraque, Portugal teve um empenhamento residual de cinco a seis militares (com alguma intermitência) no apoio à formação das Forças Armadas do Iraque, e, no mar Mediterrâneo, na Operation Sea Garden32, tivemos desde 2017 um empenhamento crescente, com especial realce para a componente naval e a vigilância aérea (P3-Orion), esta feita, quase sempre, a partir de bases aéreas em Portugal (Base Aérea de Beja).

Como vimos, a NATO tem vindo a ampliar o seu nível de envolvimento em operações militares, um pouco por todo o mundo, num espectro e tipologia de missões que vão desde o envolvimento em operações de combate até à assessoria e treino militar, passando pela ajuda humanitária e no apoio a catástrofes, envolvendo cada vez mais recursos humanos e materiais. Esta dinâmica de crescimento operacional, principalmente depois do 11 de Setembro de 2001, tem «obrigado» os Estados-Membros a aumentar o seu nível de empenhamento, aspeto que nas nossas Forças Armadas tem sido bem visível e que pensamos irá continuar no futuro.

O SFN e as unidades operacionais têm sido chamados a envolver-se, cada vez mais, nas diversas operações e missões NATO, implicando um nível de empenhamento acrescido, que tem contribuído para um maior nível de operacionalidade, mas também para um número de baixas como não tínhamos desde a guerra de África… aspeto que representa o custo mais pesado de pertencermos a uma aliança militar que se tornou num dos principais produtores de segurança à escala global… e que, tudo indica, irá continuar a ser…

O paradigma de segurança do flanco sul da NATO

Existe, quase sempre, uma necessidade de olharmos para as questões da geopolítica regional e global, focando-nos nos objetivos de ordem securitários de nível operacional que envolvem Portugal e os aliados em relação ao denominado «Flanco Sul», pois que o contexto exige um entendimento maior para se compreender as dinâmicas securitárias regionais em torno do mar Mediterrâneo33.

Esta breve incursão ajuda-nos não só a melhor compreender o papel de Portugal e das parcerias estabelecidas com os aliados da NATO no Flanco Sul34, mas, sobretudo, a melhor entender as razões que levam a um empenhamento constante das FA nesta região, em particular no mar Mediterrâneo e na relação com os países do Norte de África e ainda, eventualmente num futuro próximo, com o golfo da Guiné e outras regiões do Atlântico médio e da África Subsariana.

A primeira nota que importa destacar diz respeito à posição geográfica de Portugal na relação com a Europa e com África. Para além da vertente atlântica do território, em termos históricos e culturais, o país tem estado muito empenhado em acompanhar os acontecimentos e as realidades geopolíticas a sul, em particular no mar Mediterrâneo a este e no Norte de África. Em resultado da nossa posição geográfica, a relação com o Flanco Sul da Aliança assume um papel de destaque nos interesses e objetivos nacionais estratégicos. Objetivos estes que estão vertidos no Conceito Estratégico de Defesa Nacional, no Conceito Estratégico-Militar e nos principais documentos relacionados com a segurança interna e a defesa nacional. Este posicionamento geoestratégico de «charneira» entre a Europa e África, entre o oceano Atlântico e o mar Mediterrâneo, reforça a relevância de Portugal nos diferentes fóruns multilaterais, nomeadamente na NATO, em que participa nas principais missões da Aliança e é presença constante nas missões e exercícios da Aliança Atlântica no seu Flanco Sul.

Para além das questões económicas, políticas, históricas e culturais, existem em Portugal comunidades originárias dos países do Sul. Esta região, bastante extensa, é porventura a que reúne os principais desafios e ameaças ao nível da segurança internacional. Se consultarmos os principais índices de Estados frágeis, onde os índices de conflito e de criminalidade são mais elevados, verificamos que grande parte se concentra nos países que fazem fronteira a sul, tornando-se numa preocupação de todos e nomeadamente de Portugal.

Nesse sentido, os fenómenos que têm maior expressão nesta região ao nível dos riscos e das ameaças para Portugal são, designadamente, o terrorismo, a criminalidade organizada e os tráficos que lhe estão normalmente associados (droga, armas e seres humanos), as migrações e a insegurança e instabilidade gerada pela multiplicidade de existências de Estados frágeis na região35. Neste contexto, a insegurança que as comunidades dos Estados do Flanco Sul da Aliança vivem, a par dos elevados índices de pobreza, forçam muitos a migrar para outros locais, em busca de melhores condições de vida. As migrações constituem por isso um desafio em termos de segurança, em primeiro lugar de segurança humana, tendo em conta que muitos dos migrantes são vítimas de redes de imigração ilegal e de tráfico de seres humanos, sendo grande a percentagem dos que acabam por morrer durante o trajeto até às regiões de destino, normalmente países europeus e concretamente Portugal.

O segundo aspeto deste desafio de segurança diz respeito à instabilidade que as movimentações de pessoas de diferentes etnias e culturas representam para a própria região, mas também o que significam para os serviços de segurança dos países ocidentais, designadamente porque uma parte da criminalidade usa estas migrações para chegar ao território europeu. Portugal não está, até ao momento, diretamente nestas rotas migratórias massivas, mas sofre, como sabemos, os efeitos colaterais deste fenómeno.

Um dos aspetos particularmente importantes para Portugal em relação ao Flanco Sul diz respeito à existência de redes de tráfico de droga e de armas que, a partir das rotas que têm origem ou que constituem pontos de passagem, desenvolvem as suas atividades criminosas tendo a Europa como principal destino final de estupefacientes e de armamento.

Por outro lado, para além da relação sistémica que existe entre estes Estados e as diferentes tipologias de criminalidade e do terrorismo, a ausência de autoridade e a incapacidade em garantir a soberania plena, com forças armadas e forças de segurança extremamente frágeis e equipadas e formadas de forma deficiente, acarretam inúmeros desafios à comunidade internacional em termos genéricos e para a NATO em termos particulares, na parte respeitante ao apoio à garantia da ordem interna e regional e aos processos de desarmamento, desmobilização e reintegração.

Um último desafio securitário diz respeito às questões da segurança energética. Portugal e muitos dos aliados na região do Mediterrâneo dependem em grande parte, dos recursos energéticos com origem nos países do Sul. Os países do Norte de África são parceiros importantes em matéria de fornecimento de energia, pois é nesta região que grande parte dos pipelines de gás e de petróleo tem origem ou faz a sua passagem, vindo nomeadamente da África Subsariana. Fator que para Portugal é vital e que obriga as FA a manterem uma presença constante no Flanco Sul da Aliança.

O empenhamento operacional da NATO no flanco sul: contributos de Portugal

As FA, no quadro dos seus compromissos internacionais junto das organizações internacionais a que pertencem, têm contribuído com forças e meios para a segurança do mar Mediterrâneo e da margem sul, nomeadamente no continente africano. Nos últimos anos, Portugal tem conferido uma acrescida prioridade ao setor sul, quer no contexto da UE e da ONU, quer nas missões da NATO, ou ainda, de forma bilateral, contribuído para a segurança na região do Mediterrâneo.

Como vimos, os desafios são imensos e torna-se necessário, em cada momento, avaliar e definir os meios mais adequados que podem ser disponibilizados para as missões da NATO na região. Aliás, Portugal é dos países que tem pautado a sua participação em missões e exercícios no Flanco Sul da Aliança pelo lema da «continuidade». Estivemos continuamente, ao serviço da Aliança, no Afeganistão, no mar Mediterrâneo, no golfo de Adém, na Parceria para o Mediterrâneo e no quadro dos exercícios regionais que são realizados por terra, ar e mar.

Portugal atribui ao Grupo Marítimo Permanente da NATO N.º 1 uma fragata, com um helicóptero orgânico e uma equipa de embarque, num total de 195 militares, durante o segundo semestre de 2021, de forma a contribuir para a dissuasão e capacidade permanente de realização de operações navais em tempo de paz ou crise. Esta força naval da NATO pode operar no oceano Atlântico e no mar Mediterrâneo... dependendo das decisões de nível operacional da NATO.

Mais concretamente no mar Mediterrâneo um submarino da Marinha Portuguesa prestará apoio direto à operação Sea Guardian por um período de dois meses e uma semana, e apoio conjunto à operação IRINI36 da UE, fornecendo capacidades e sistemas para recolher informações sobre a consciencialização da situação marítima no Mediterrâneo Central. A Força Aérea vai participar na operação Sea Guardian com uma aeronave P-3C CUP+ e 13 militares, da Base Aérea de Beja, com missões de voo de oito horas de dois em dois meses.

A participação portuguesa no NATO Hub-South, localizado em Nápoles no NATO Joint Force Command Naples (JFCNP)37, com três militares, permite a Portugal acompanhar o esforço da NATO de olhar para o Sul, estando previsto a constituição de «mobile training teams» (MTT) que possibilitam treino e assessoria a países do Norte de África. O Diálogo para o Mediterrâneo, em que temos uma presença discreta, é mais um instrumento que pode ajudar ao diálogo entre as duas margens do Mediterrâneo e que necessitará no futuro de outro grau de empenhamento nas dinâmicas securitárias da NATO no Flanco Sul.

Os desafios futuros e o empenhamento das forças armadas portuguesas no flanco sul da NATO

Feita uma análise geoestratégica do ponto de vista de Portugal e decorrente dos riscos e das ameaças identificadas e do empenhamento operacional das FA no Flanco Sul da NATO, importa agora refletir sobre as principais linhas de envolvimento operacional em termos futuros na região.

Assim, e não sendo previsível, nos próximos anos, uma mudança significativa no nível de estabilidade e segurança da região, a mesma tende a ser considerada por Portugal como uma das áreas de atuação prioritárias, levando a um continuado engajamento na região, quer bilateral, quer multilateralmente, nomeadamente no contexto da Aliança, procurando alinhar por uma cooperação e envolvimento do tipo «bimultilateral»38. Ou seja, articular estrategicamente o envolvimento na cooperação no domínio da defesa (CDD) com os países da região, com um envolvimento multilateral no seio das organizações em que Portugal tem assento, como é o caso da NATO, em que Portugal irá continuar a empenhar meios e a contribuir para as missões no Flanco Sul.

Do empenhamento militar nacional no Flanco Sul destacamos cinco linhas de atuação principais, que traduzem, em termos gerais, em nossa opinião, o envolvimento das Forças Armadas Portuguesas nesta região, designadamente: manutenção (e possível reforço) das capacidades militares navais e aéreas; atuação em espaços regionais de forte instabilidade; apoio nas ações de State building e reforço das capacidades das forças armadas locais; reforço da cooperação com os aliados e parceiros regionais e ainda uma ligação aos atores internacionais não estatais e o envolvimento em atividades não estritamente militares.

A segurança marítima no mar Mediterrâneo irá constituir um dos aspetos centrais para Portugal, decorrente, como vimos, da sua posição geoestratégica e da sua dependência das regiões mais a sul. Assim, o empenhamento operacional de meios navais (e aéreos) nas regiões do mar Mediterrâneo (Ocidental e Oriental), do golfo da Guiné e do golfo de Adém (agora também ligada à questão do canal de Moçambique) será de atuação prioritária. Nestes, além das disputas geopolíticas, sobretudo entre a NATO e outros atores internacionais, importa preservar a livre circulação do trânsito marítimo, garantindo a sua proteção contra ataques localizados de pirataria, fenómeno este que se mantém descontrolado na maior parte destes espaços, a exemplo do golfo da Guiné. Em resultado do agravamento social que se verifica atualmente em algumas dessas regiões, continuaremos atentos às diversas dinâmicas securitárias que ocorrerem no mar e os reflexos que têm em terra, nomeadamente nas migrações e no tráfico marítimo.

A centralidade destes espaços para as questões do terrorismo, da criminalidade organizada e das migrações reforça a necessidade de manutenção do empenhamento das FA no Flanco Sul da Aliança, em termos futuros.

Destaca-se a centralidade de África, em particular da África do Norte, no contexto global, com um aumento acentuado do número de habitantes, em particular de população mais jovem. Este crescimento populacional representará grandes desafios para os países africanos, se não for acompanhado do aumento das oportunidades em termos internos, económicos e sociais, e o seu falhanço terá certamente impactos ao nível securitário, com o contínuo aumento da pressão migratória nos espaços marítimos. As ações de patrulhamento marítimo serão por isso essenciais para impedir tragédias humanas no mar, além de manterem e reforçarem as ações de vigilância aérea que impeçam as atividades criminosas nestas regiões.

A segunda linha de atuação diz respeito à intervenção em espaços regionais de forte instabilidade. O compromisso assumido por Portugal em regiões do Flanco Sul tem procurado contribuir para a estabilização de diversos Estados, aliviando a pressão que determinados grupos organizados armados exercem sobre as populações locais, a exemplo do que ocorre atualmente no Mali e na República Centro-Africana (RCA). Além das consequências ao nível interno, a estabilização procura reduzir os efeitos de contágio em termos regionais e globais. O Sahel, enquanto espaço de forte instabilidade, continuará a ser central para a intervenção das FA, em particular das suas componentes terrestres e aéreas e eventualmente envolvendo meios NATO.

A terceira linha de atuação diz respeito às ações de State building e ao reforço das capacidades das forças armadas locais. Importa a este respeito referir que uma parte significativa das ações militares nacionais tem procurado apoiar a reconstrução de Estados, durante e após os conflitos, através do reforço dos níveis de formação e de treino das forças armadas locais.

As posições assumidas por militares portugueses ao nível da assessoria, formação e treino militar complementam o engajamento nacional. Apesar da sua centralidade, este processo apenas produz efeito a médio e longo prazo, consoante o estado de desenvolvimento das estruturas locais e da existência de conflitos armados. Nesse sentido, esta linha de empenhamento das FA será continuada no tempo e no espaço, em apoio às questões diplomáticas nacionais e dos aliados da NATO nos Estados intervencionados. Acreditamos por isso que apenas com a reconstrução das estruturas e das capacidades das entidades responsáveis pela segurança e pela defesa locais poderá existir um processo de paz e de estabilidade sólido, pelo que continuaremos postados nesta linha de intervenção, quer nos atuais espaços, quer em outros que porventura possam existir num Flanco Sul alargado e onde os aliados venham a requerer o apoio das FA.

A intervenção nacional na região é, na sua maioria, realizada no quadro multilateral, não apenas no contexto da NATO, mas também da UE e da ONU. Desse modo, o reforço da cooperação com os aliados assume-se como de particular importância, no presente e no futuro. Sendo Portugal um Estados-Membro das três organizações referidas, a intervenção nacional, sob o «chapéu» destas três organizações, atribui maiores sinergias para o contexto internacional.

O empenhamento de militares portugueses em estados-maiores conjuntos e combinados será por isso essencial para o reforço da cooperação interorganizações, ao nível operacional e também estratégico. Importa salientar que, doutrinariamente, as FA seguem as normas e orientações operacionais da Aliança, mesmo quando estão ao serviço de outras organizações. Este é um aspeto fundamental quando estão presentes no mesmo espaço geográfico diferentes organizações internacionais, em particular a NATO e a UE, reforçando-se assim, formal e informalmente, as áreas de cooperação entre os diferentes atores no terreno, incluindo não estatais.

Para Portugal e para as FA a cooperação (de complementaridade) entre a NATO e a UE é essencial no âmbito da defesa, pelo que o quadro de participações militares orientadas por cada uma das organizações deve, na nossa perspetiva, contribuir para a partilha do esforço operacional entre as duas instituições, em particular no Flanco Sul onde a UE e Portugal têm maior empenhamento39.

É sobre a questão da ligação a atores internacionais não estatais e o envolvimento em atividades não estritamente militares que se ocupa a quinta e última linha de intervenção, pois que existe uma noção clara do importante papel que as diversas organizações não governamentais têm nos territórios que se encontram sob assistência internacional. O alargamento em número e em áreas de intervenção torna estas organizações cada vez mais relevantes, tendo em conta as significativas alterações na natureza dos conflitos. Constitui por isso prioridade em termos operacionais reconhecer e aprofundar as ações de cooperação com as diversas organizações, sobretudo nas matérias que têm intervenção direta nos aspetos de segurança e defesa, a exemplo das questões das migrações e da assistência humanitária.

Por último, destacamos a intenção das FA de disponibilizarem capacidades operacionais para apoio à sociedade civil. O duplo uso dos meios operacionais para acorrer a situações de crises civis, a exemplo dos desastres naturais e crises humanitárias, que são cada vez mais uma realidade, em razão das alterações climáticas, é igualmente uma prioridade futura não apenas no contexto nacional, mas também internacional, e em particular no Flanco Sul onde Portugal tem mais envolvimento. Esta participação não se esgota apenas nos meios materiais, mas igualmente nos recursos humanos, que podem e devem dar um contributo para a gestão de crises, envolvendo-se no apoio às estruturas civis, primariamente responsáveis pela resposta, e em que a NATO pode vir a ser chamada no futuro a colaborar.

Conclusões

Portugal, membro fundador da NATO, tem acompanhado ao longo dos 70 anos da sua existência as dinâmicas internas e externas da Aliança, nomeadamente no que diz respeito ao emprego de meios em operações no designado «Flanco Sul», onde as ameaças e os riscos para a Aliança têm também um impacto direto em Portugal.

Por esse motivo, o Flanco Sul da NATO coincide, em grande medida, com a nossa área de interesse estratégico e onde as Forças Armadas têm empregado meios na salvaguarda da segurança regional em linha com os compromissos associados no seio da Aliança.

Portugal e as FA apostam numa linha de continuidade e, em paralelo com os esforços da Aliança no Flanco Sul, num eventual reforço do empenhamento operacional, no sentido de contribuir para um ambiente mais seguro, constituindo-se Portugal como um produtor regional de segurança, nomeadamente no Flanco Sul da Aliança.

No futuro, no pressuposto de que a situação securitária não vai evoluir grandemente e que as ameaças e riscos à nossa segurança irão permanecer (ou mesmo aumentar), é de esperar, se não um aumento do nível de empenhamento operacional na região, pelo menos a manutenção do nível de comprometimento das Forças Armadas no mar Mediterrâneo.

Certos de que a Aliança vai continuar a ser relevante para o futuro da segurança regional no seu «Flanco Sul», também cremos que possa haver um novo posicionamento geoestratégico e uma ampliação, ou deriva, para novas regiões no quadro do seu empenhamento operacional global e integrado nas dinâmicas da segurança mundial… pois a NATO mantém a sua vocação global de contribuir, na sua medida, para a paz e segurança no mundo.

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Notas

1 ÜLGEN, Sinan; KASAPO-LU, Can - «A threat-based strategy for NATO’s Southern Flank».Carnegie Europe. 10 de junho de 2016, p. 30. Consultado em: 2 de junho de 2021. Disponível em:https://carnegieendowment.org/files/NATO_Southern_Flank.pdf.

2A Organização do Tratado do Atlântico Norte constitui um sistema de defesa coletivo através do qual os seus Estados-Membros concordam com a defesa mútua em resposta a um ataque por qualquer entidade externa à organização. A Aliança é constituída por 30 países membros, tendo a República do Montenegro aderido em 2017 e a República da Macedónia do Norte em 2020. Em 2021, um conjunto de 21 países participam na designada «Parceria para a Paz», tendo ainda cooperação com 15 países envolvidos em programas de diálogo institucionalizado, nomeadamente com os ex-países de Leste. Cf.https://www.NATO.int/.

3Em 1951-1952, a NATO estabeleceu o designado «Flanco Sul», como uma estratégia para a defesa do Mediterrâneo Oriental no contexto da Guerra Fria envolvendo a Itália, a Grécia e a Turquia. Entre os muitos objetivos, procurou mobilizar estes países como aliados e integrá-los no sistema de defesa ocidental. Ao longo da década de 1950, a Aliança desenvolveu o Flanco Sul e em 1959 foi finalmente estabilizado à medida que as relações entre a Grécia e a Turquia foram melhorando pelo envolvimento de Chipre.CHOURCHOULIS, Dionysios -The Southern Flank of NATO, 1951-1959. Military Strategy or Political Stabilization. Londres: Lexington Books, 2014.

4 LOPES, José Azeredo - «Sessão de abertura da conferência sobre o Flanco Sul da NATO». Assembleia da República. 24 de setembro de 2018. Consultado em: 2 de junho de 2021. Disponível em:https://www.portugal.gov.pt/pt/gc21/comunicacao/noticia?i=NATO-vai-ter-papel-fundamental-no-flanco-sul.

6MOREIRA, Adriano - Notas do Tempo Perdido - A Vertente Atlântica. 2.ª edição. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, 2005, p. 151.

7BOTELHO, José Justino Teixeira - «1950 - Ano de guerra? Ano de paz?». InRevista Militar. Lisboa. N.º 1, Ano 2, janeiro de 1950, p. 13.

9A Aliança tem já em execução o designado «NATO 2030 Making a Stong Alliance even Stronger», que tem em vista continuar o processo de adaptação estratégico da organização com vista a tornar a NATO uma organização resiliente aos tempos modernos. Desta reflexão irão sair as principais linhas orientadoras para o que será o novo Conceito Estratégico da Aliança. Cf.https://www.NATO.int/NATO2030/.

10PIRES, Nuno Lemos; MARREIROS, Ramalho, coords. -70 Anos de Portugal na Aliança Atlântica. Lisboa: Estado-Maior-General das Forças Armadas, 2020, pp. 247-265.

11 BERNARDINO, Luís M. Brás - «A NATO e Portugal. Alinhamentos para um novo Conceito Estratégico da Aliança». IDN Brief. Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, novembro de 2010, p. 9. Consultado em: 2 de junho de 2021. Disponível em:https://www.idn.gov.pt/publicacoes/newsletter/idnbrief_01.pdf.

12E que viriam a alterar o que até então estava plasmado na Lei n.º 1960 de 1 de setembro de 1937 - Lei da Organização do Exército, que estava desajustada desta nova realidade.

13MACEDO, Ferreira de -Subsídios para o Estudo do Esforço Militar Português na Década de 50. Lisboa: Estado-Maior do Exército, 1988, p. 8.

14TELO, António José -Portugal e a OTAN - O Reencontro da Tradição Atlântica. Lisboa: Edições Cosmos, 1996, p. 253.

15RAMALHO, José Luíz Pinto - «A contribuição do Exército Português para a OTAN». In Revista Nação e Defesa. Lisboa. N.º 89, primavera de 1999, p. 105. Consultado em: 2 de julho de 2021. Disponível em:https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/1513/1/NeD89_JoseLuisPintoRamalho.pdf.

16Em meados de 1950, fruto das lições da Segunda Guerra Mundial e principalmente da criação da NATO, foram ultrapassadas parte das objeções sobre a edificação de um comando unificado da Defesa e das Forças Armadas, tendo sido criado pelo Decreto-Lei n.º 37.909 de 1 de agosto de 1950 a Organização da Defesa Nacional, criando-se por despacho do marechal António Óscar de Fragoso Carmona um Secretariado-Geral da Defesa Nacional (Decreto-Lei n.º 37.955 de 9 de setembro de 1950) com a missão de coordenar a atividade do Ministério do Exército, Ministério da Marinha e o Subsecretariado do Estado-Maior da Aeronáutica, tendo como responsável máximo o chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA) (inDiário da República, n.º 178/ I Série, de 9 de setembro de 1950).

17No período entre 1953 e 1956, é criada de uma forma faseada uma missão doSHAPEem Portugal, constituída por três oficiais encarregados de canalizar para o Exército elementos de doutrina quer para a formação de quadros, quer para a realização de exercícios (preparação de temas, controlo e arbitragem). Estes três oficiais (um coronel e dois tenentes-coronéis dos Estados Unidos e do Reino Unido) funcionaram como assessores militares: um, junto do então Secretariado-Geral da Defesa Nacional (SGDN); outro, no Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM); e outro, no Campo de Instrução Militar de Santa Margarida (CMSM). RAMALHO, José Luíz Pinto - «A contribuição do Exército Português para a OTAN», p. 108.

18A inauguração oficial do Campo Militar de Santa Margarida teve lugar em novembro de 1952, com a presença do chefe do Estado, general Craveiro Lopes, embora só em agosto de 1953 o Decreto-Lei n.º 39316, de 14 do mesmo mês, crie formalmente o Campo de Instrução Militar de Santa Margarida e estabeleça o seu primeiro quadro orgânico. Em outubro de 1953 será içada pela primeira vez a bandeira nacional no aquartelamento da 1.ª Divisão do Corpo de Exército Português, destinada a responder aos Objetivos de Força, estabelecidos pela Aliança. RAMALHO, José Luíz Pinto - «A contribuição do Exército Português para a OTAN», pp. 106-108;CARDOSO, Pedro - «Necessidades de uma visão estratégica do ensino da História», 1999, p. 54.

19A formação dos quadros passou a ser feita na Argélia francesa, na Espanha e em escolas americanas especializadas em guerra subversiva. A criação de unidades especiais e o emprego das «tropas de quadrícula» como forças de intervenção nas províncias ultramarinas, entre 1962 e 1975, levou à imperiosa necessidade de rever o sistema de mobilização, formação e treino, tendo sido colocado em outra prioridade o envolvimento do Exército nos compromissos assumidos com a Aliança. Podemos mesmo referir, salvo melhor opinião, que o nosso envolvimento nesse período no seio da organização foi residual e pouco consistente com o que vinha sendo feito desde o momento da adesão, em 1949.

20RAMALHO, José Luíz Pinto - «A contribuição do Exército Português para a OTAN», p. 109.

21As mudanças ocorridas na tipologia do conflito em que Portugal se envolveu, entre 1961 e 1974, em África, fizeram com que as Forças Armadas fossem forçadas, mais uma vez, a operar uma mudança radical ao nível da instrução militar, das táticas, técnicas e procedimentos, na doutrina militar e ao nível dos conceitos operacionais, mudando de uma preparação para uma guerra tipo convencional para o de uma guerra contrassubversiva, mais vocacionada para o apoio às populações e preocupada em manter a ordem pública em vastas áreas de responsabilidade (quadrícula). A política ultramarina de Portugal defendida após os conflitos de 1961 e a argumentação internacional do direito de intervir e de reclamar a presença de meios militares nas colónias, vistas pela diplomacia nacional como a defesa de uma legítima extensão do espaço soberano nacional, não foram bem acolhidas no seio da Aliança, não sendo permitido o envio de material estacionado em Portugal e adquirido (ou doado) no âmbito dos acordos com os Estados Unidos (que já se haviam abstido quando o tema foi debatido no CS/ONU) e a NATO, impossibilitando assim o seu envio e emprego no teatro de operações africano.

22Neste contexto, multiplicaram-se as participações nacionais em ações de formação, em grupos de trabalho, assistindo-se ao elevar do nível de cometimento de forças, bem como a um reforço das representações nos diferentes níveis da organização (nomeadamente ao nível estratégico-operacional), em que o reforço de militares das Forças Armadas noSHAPEmarcou esta nova fase de comprometimento com a Aliança Atlântica. Assistia-se a uma verdadeira revolução pós-revolução, essencialmente ao nível das mentalidades e das vontades, pois que uma geração de oficiais via nesta renovada presença na Aliança uma forma de se valorizar profissionalmente e esquecer, um pouco, as agruras de uma guerra colonial desgastante e traumática para muitos oficiais dessa geração… o futuro parecia sorrir através da nossa ligação à Aliança Atlântica e a motivação para integrar esta mudança de paradigma era enorme. RAMALHO, José Luíz Pinto - «A contribuição do Exército Português para a OTAN», pp. 109-115.

23 NOGUEIRA, Joaquim Fernando- A Política de Defesa Nacional. Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, março de 1995, p. 145.

24Designadamente: Implementation Force (IFOR) e Stabilisation Force (SFOR), na Bósnia-Herzegovina (1996-2004); Albania Force (AFOR), na Albânia (1999); Task Force Harvest / Task Force Fox (TFH/TFF), na Macedónia (2001-2002); Kosovo Force (KFOR), no Kosovo (2005-2017); NATO Training Mission-Iraq (NTM-I), no Iraque (2005-2011); International Security Assistance Force (ISAF), no Paquistão e no Afeganistão (2005-2014); e, mais recentemente, a Resolute Support Mission (RSM), no Afeganistão (2018-2021).

26A cada seis meses, a força nacional destacada na SFOR foi cumprida rotativamente por unidades provenientes das três brigadas do Exército e, em dezembro de 2004, uma força da União Europeia (EUFOR) substitui a Aliança na Bósnia-Herzegovina e Portugal continuou a manter a sua participação com unidades escalão batalhão até 2007, ano em que reduz substancialmente a sua participação neste teatro de operações.

27 ROCHA, Cerqueira - «Portugal e as operações de paz na Bósnia: a preparação das forças». InRevista Nação e Defesa. Lisboa. N.º 92, inverno de 2000, p. 89. Consultado em: 12 de junho de 2021. Disponível em:https://core.ac.uk/download/pdf/62686184.pdf.

28A KFOR deriva da Resolução 1244/99 de 10 de junho de 1999 e do Acordo Técnico-Militar (MTA), assinados entre a NATO e a República Federal da Jugoslávia e da Sérvia. A KFOR nasce sobre o abrigo do capítulo VII da Carta da ONU como uma operação de imposição da paz, quando é geralmente referida como uma operação de apoio à paz. Inicialmente, o mandato da KFOR foi criado para: deter as hostilidades e as ameaças contra o Kosovo por forças jugoslavas e sérvias; estabelecer um ambiente seguro e garantir a segurança e a ordem pública; assegurar a desmilitarização do Kosovo Liberation Army (KLA), bem como apoiar o esforço humanitário internacional, e coordenar e apoiar a presença civil internacional. Portugal participa com forças militares na KFOR desde meados de agosto de 1999, apesar de a missão e a constituição terem variado ao longo do tempo. Em 30 de abril de 2017, a FND, que integrava a Reserva Tática do Comandante da KFOR, cessou a atividade operacional tendo a respetiva retração ocorrido até final de junho de 2017. Portugal manteve até finais de 2020 três elementos nacionais destacados (END) no Estado-Maior do Quartel-General da KFOR.

29 SOUSA, Francisco Xavier de - «A participação de Portugal nas operações de paz e a segurança nacional». InRevista Militar. Lisboa. N.º 2509-2510, fevereiro-março de 2011. Consultado em: 2 de outubro de 2021. Disponível em:https://www.revistamilitar.pt/artigo/634, pp. 17-21.

30A International Security Assistance Force (ISAF) - Força Internacional de Assistência para Segurança do Afeganistão - é uma missão de segurança liderada pela NATO no Afeganistão, estabelecida pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em 20 de dezembro de 2001, através da Resolução 1386/2001, tal como previsto pelo Acordo de Bona, e esteve envolvida diretamente nos combates contra os terroristas islâmicos no Afeganistão, de 2011 a 2014, ano em que terminou. A ISAF foi inicialmente responsável pela segurança em Cabul e em áreas ameaçadas pelos talibãs, da Al-Qaida e de outras fações terroristas, de modo a permitir o estabelecimento da Administração Transicional. Desde início de 2015, a Aliança Atlântica atua como uma força de apoio ao Governo afegão, na operação designada por NATO Resolute Support Mission (RSM) no Afeganistão. Cf.https://www.emgfa.pt/pt/operacoes/missoes/NATOISAF.

31O esforço da participação das FA, e concretamente do Exército na missão da ISAF (e depois na RSM), reflete o carácter prioritário que este teatro de operações representa para Portugal. Sendo a missão mais exigente da história da NATO, e a primeira vez que o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte foi evocado, levando ao empenhamento das diversas forças da participação nacional, permitindo, com base nos efetivos empenhados e dos tipos de unidades projetadas, avaliar a nossa contribuição para a Aliança. Rodrigues, Domingos - «As Forças Armadas Portuguesas no Afeganistão». InRevista Nação e Defesa. Lisboa. N.º 130, I Série, 2011, pp. 131-155. Consultado em: 20 de setembro de 2021. Disponível em:https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/7645/1/NeD130_DomingosRodrigues.pdf.

32A operação Sea Guardian é uma operação de segurança marítima não artigo 5.º que visa cooperar com as partes interessadas no mar Mediterrâneo para manter a consciencialização da situação marítima, dissuadir e combater o terrorismo e aumentar a capacidade de vigilância, nomeadamente apoiar a identificação da situação marítima, defender a liberdade de navegação, realizar tarefas de interdição, combater o terrorismo marítimo, contribuir para o reforço de capacidades, combater a proliferação de armas de destruição maciça e proteger infraestruturas críticas. Cf.https://mc.NATO.int/missions/operation-sea-guardian.

33 CHOURCHOULIS, Dionysios - The Southern Flank of NATO, 1951-1959….

34 MARQUES, Pedro Gonçalves - «A Geopolítica da NATO e a Estratégia de Gales. O Recurso à Europa do Sul». Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Fevereiro de 2017, pp. 45-68. Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais na especialidade de Estudos da Paz e da Segurança. Consultado em: 2 de setembro de 2021. Disponível em:https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/82330/1/A%20Geopol%C3%ADtica%20da%20NATO%20e%20a%20estrat%C3%A9gia%20de%20Gales%20-%20o%20recurso%20%C3%A0%20Europa%20do%20Sul%20_%20Pedro%20Marques.pdf.

35Ou mesmo em regiões mais longínquas, mas cujos efeitos se fazem refletir no espaço europeu e em Portugal. Por esse motivo, Portugal tem forças militares destacadas em missões multilaterais no Mali, na República Centro-Africana (RCA), na Somália e, mais recentemente, em Moçambique… estamos muito empenhados em África pois África faz parte da nossa zona de influência e da zona de interesse geoestratégico de Portugal.

38A cooperação bimultilateral desenvolve-se através da partilha de interesses e objetivos entre o que é classicamente entendido como cooperação bilateral e cooperação multilateral para o desenvolvimento e para a segurança, que deve agora ser visto, em nossa opinião, num conceito mais lato, integrado e estratégico, que apelidamos de cooperação bimultilateral, representando um paradigma de mudança para a cooperação militar em África, que Portugal pode capitalizar no quadro da sua política externa. BERNARDINO, Luís M. Brás - «A defesa como vector da cooperação político-estratégica de Portugal em África. Contributos para uma cooperação de defesa». InRevista Militar. Lisboa. N.º 2608, maio de 2019, pp. 775-789. Consultado em: 22 de junho de 2021. Disponível em:https://www.revistamilitar.pt/artigo/1436.

39 DIAS, Vanda Amaro; FREIRE, Maria Raquel - «A participação de Portugal em missões internacionais e a concretização do interesse nacional: tendências, retorno político e recomendações». IDN E-Briefing Papers. Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, 13 de agosto de 2021, pp. 13-16. Consultado em: 20 de julho de 2021. Disponível em: https://www.idn.gov.pt/pt/publicacoes/ebriefing/Documents/E-Briefing%20Papers/EBriefingPapers_13ago2021.pdf.

Recebido: 20 de Julho de 2021; Aceito: 24 de Setembro de 2021

Luís Manuel Brás Bernardino Investigador doutorado do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI-IUL). Mestre em Estratégia e doutorado em Relações Internacionais pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP-UL). Coronel de Infantaria do Exército Português com o Curso de Estado-Maior. Professor no Departamento de Estudos Pós-Graduados do Instituto Universitário Militar (IUM).

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