Introdução
Será que a orientação partidária dos atores domésticos influencia de alguma forma o seu apoio discursivo a questões relacionadas com a integração regional? O principal objetivo deste artigo é verificar se a orientação ideológico-partidária dos legisladores brasileiros no Congresso interfere com a sua postura discursiva em temas relativos a iniciativas de integração regional. Mais especificamente, em relação ao seu apoio à UNASUL, a União de Nações Sul-Americanas.
Hoje em dia, a literatura académica é unânime em considerar a importância de variáveis domésticas para entender fenómenos de política internacional3, e aqueles autores que vão contra esta visão maioritária são até vistos como anacrónicos4. Assim, se pretendemos estudar as iniciativas de integração regional e as suas consequências, é importante ter em conta o papel de atores e estruturas nacionais, cujas responsabilidades e posições são também determinadas pelo contexto doméstico5.
Os partidos políticos, e o seu posicionamento no espetro político, são uma das variáveis domésticas que afetam a política internacional. As ligações dos partidos às iniciativas de integração regional têm sido bastante exploradas no contexto europeu6. No que diz respeito à América Latina, a clivagem histórica entre estudos de opinião pública e as pesquisas sobre política internacional, bem como a falta de políticas comunitárias distributivas relevantes, justificam a ausência de estudos sobre projetos regionais. No entanto, a situação mudou quando a emergência de governos de esquerda na América Latina coincidiu com uma ênfase no regionalismo enquanto linha orientadora para a promoção dos mercados e para a saliência internacional destes países7. Ainda assim, este objeto carece de maior reflexão metodológica e teórica, para que melhor se possa entender como e até que ponto as variáveis domésticas influenciam assuntos de política externa.
Por conseguinte, este artigo visa contribuir para esta área de pesquisa, investigando a relação entre o posicionamento ideológico dos atores domésticos e o seu apoio discursivo a iniciativas de integração regional. O argumento explora até que ponto a orientação ideológica dos congressistas brasileiros influenciou de algum modo a forma como estes se posicionaram discursivamente em questões de integração regional. A análise de discurso é da maior importância quando se trata de projetos de integração regional, uma vez que, como defendem Nolte e Comini, «devemos levar a sério as afirmações, declarações, e propostas dos atores envolvidos em projetos regionais, e para além disso não devemos esperar pelo cumprimento de promessas que nunca foram feitas por aqueles que neles participam»8.
Mais especificamente, focámos no caso da UNASUL, uma vez que este projeto de integração foi a menina dos olhos da esquerda e, ao mesmo tempo, foi a única iniciativa a ser interrompida pelo Governo Bolsonaro, alinhado à direita. É da maior importância analisar como os legisladores entenderam e se posicionaram em relação a este projeto, para melhor compreender, em pesquisas futuras, o seu posicionamento face a outras iniciativas de integração regional, como o PROSUL, ou Foro para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul, uma iniciativa conotada com a direita.
Para realizar este objetivo, o artigo é estruturado da seguinte forma: a primeira seção faz uma revisão da literatura sobre a relação entre partidos políticos e integração regional. A segunda parte detalha todos os aspetos metodológicos da pesquisa, apresentando cada um dos passos da nossa análise. A terceira parte apresenta os resultados da pesquisa, seguidos das conclusões do artigo.
Partidos políticos, orientação ideológica e iniciativas de integração regional: uma revisão da literatura
Este artigo visa contribuir para a literatura que explora a relação entre a orientação partidária dos atores domésticos e o apoio a questões relacionadas com a integração regional9. Neste sentido, é da maior importância apresentar sumariamente o que foi produzido e discutido sobre estas matérias. Esta seção abordará em primeiro lugar a realidade europeia, o locus classicus e a referência no que diz respeito à integração, e depois irá discutir o que foi produzido a respeito da experiência de integração da América Latina, o objeto empírico da análise deste artigo.
Desde o desenvolvimento do modelo de jogos de dois níveis por Robert Putnam10 e da emergência de estudos sobre estruturas domésticas11 e sobre o papel das coligações de poder12, que a ligação entre fatores domésticos e o processo de formação da agenda de política externa ganhou um lugar especial na análise da natureza e legitimidade do processo de tomada de decisão. Uma das consequências imediatas da proliferação de estudos sobre o caráter intersecional dos níveis de análise foi uma integração teórica entre a área da análise de política externa (APE) e o estudo dos processos de tomada de decisão13.
O uso de modelos cognitivos tornou-se popular entre estudos de APE, enquanto alternativa menos sofisticada teoricamente do que a complexidade exigida pelas premissas da escolha racional14. De acordo com esta abordagem, a formação de posicionamentos em questões de política externa é delimitada não apenas pelo ambiente institucional e psicológico do processo de tomada de decisão, mas também - e em grande medida - pelos constrangimentos cognitivos à racionalidade dos atores envolvidos15.
Porém, estas análises afirmam que os atalhos informacionais gerados pelos sistemas de crenças e perspetivas, tais como os derivados dos partidos e configurações ideológicas, determinam o lugar inicial ou ponto de partida dos indivíduos em relação a um conflito político. Por conseguinte, considerando que as famílias partidárias se debruçam sobre agendas relativamente estáveis, baseadas em perspetivas que refletem as preferências do segmento social que representam16, é expectável que os seus representantes assimilem as questões políticas de acordo com ideologias pré-existentes17.
Assim, a aplicação do mapeamento cognitivo na análise do processo de tomada de decisão em política externa presta-se a estudos focados nos líderes e no papel dos partidos políticos na condução de projetos de integração18. A maioria destes estudos analisa o posicionamento dos partidos na formação de blocos regionais, observando como esse posicionamento varia no que diz respeito à formação e ao aprofundamento do regionalismo19.
Por conseguinte, nos estudos de integração regional, os programas partidários foram absorvidos por uma agenda de pesquisa que está especialmente orientada para explicar como atores situados na interseção entre as esferas doméstica e internacional chegam a decisões em múltiplos níveis20. Fatores que eram previamente tratados como os determinantes principais das decisões - como os indicadores macroeconómicos e os acordos bilaterais - são agora vistos como componentes de uma rede mais vasta de interesses que regula o comportamento dos atores21.
Naturalmente, a literatura sobre integração regional e partidos políticos tem-se debruçado sobre os estudos europeus. Na União Europeia (UE), a dimensão do impacto distributivo das políticas do bloco determina até que ponto o conteúdo programático dos partidos reflete um posicionamento específico face à integração22. No caso da América Latina, a clivagem histórica entre os estudos de opinião pública e a pesquisa em política internacional, bem como a falta de políticas comunitárias distributivas relevantes, justifica a ausência de estudos sobre projetos regionais.
Esta situação mudou quando a emergência de governos de esquerda na América Latina coincidiu com uma ênfase no regionalismo enquanto linha orientadora para a promoção dos mercados e para a saliência internacional destes países23. Para além disso, o desenvolvimento paralelo de estudos sobre o papel do poder legislativo nos projetos regionais - especialmente aqueles relativos ao Parlamento Europeu - tem privilegiado análises dos mecanismos através dos quais a influência dos partidos é canalizada através dos legisladores24. Todavia, esta literatura inclui um número muito reduzido de estudos empíricos que considerem como estes elementos influenciam o posicionamento dos atores nacionais em relação a questões de integração.
Antes de analisarem a conexão entre o posicionamento político interno dos partidos europeus e as suas posições em relação à integração, Hooghe et al.25 começam por categorizar os partidos de acordo com duas dimensões. Em primeiro lugar, os partidos são classificados de acordo com o seu posicionamento face a questões económicas; os partidos de esquerda são aqueles que defendem uma maior intervenção do Estado na economia, enquanto os partidos de direita preferem a desregulação dos mercados, a privatização e a redução de impostos e despesas estatais. A segunda dimensão refere-se às visões dos partidos acerca de direitos e liberdades políticos. Partidos com tendências libertárias ou pós-materialistas defendem uma expansão das garantias de direitos e da liberdade de escolha, em questões como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, aborto, eutanásia e, em geral, a defesa das minorias. Por seu lado, partidos tradicionais ou autoritários - frequentemente associados com a direita conservadora - rejeitam estas ideias e defendem que o governo deveria determinar as referências morais a serem seguidas. Para Simon Hix26, a intervenção estatal nas relações sociais e políticas é a principal diferença entre estas duas posições.
Hooghe et al.27 recorreram à base de dados das pesquisas Chapel Hill (PCH) e encontraram uma relação significativa entre as dimensões esquerda-direita da competição partidária nacional e o tema da integração regional. Em termos económicos, os autores apontam que a extrema-esquerda e a extrema-direita se opõem ao processo de integração, uma vez que os partidos menos bem-sucedidos na atual estrutura competitiva têm maiores incentivos para procurar uma reestruturação do jogo político. Os autores também descobriram que as diferenças de nível doméstico entre a esquerda e a direita em questões económicas influenciam o seu apoio à integração, em especial quando políticas específicas da UE são consideradas. Os testes levados a cabo por Hooghe et al.28 respeitantes a políticas de coesão social, laboral e ambiental demonstram uma relação linear entre a esquerda, que apoia a integração, e a direita, que dá um menor apoio à integração.
Porém, é preciso ter em conta que a direita se torna mais favorável à integração quando se trata de políticas de comércio livre. Os partidos de centro-esquerda aumentaram o seu apoio ao projeto de integração quando as medidas de regulação do capitalismo entraram na agenda política da UE. No que diz respeito aos direitos e liberdades políticas - a segunda dimensão de análise proposta por Hooghe et. al.29 -, a diferença entre a esquerda e a direita face à integração regional reside basicamente na questão da soberania nacional. Por um lado, partidos tradicionalistas ou autoritários reagem ao que consideram ameaças à comunidade nacional: imigração, políticas de asilo e influências culturais estrangeiras, entre outras. Por conseguinte, estes partidos de direita tendem a oferecer uma resistência geral ao processo de integração. Por outro lado, partidos com tendências libertárias ou pós-materialistas tendem a não apoiar a UE indiscriminadamente, mas, em vez disso, orientam-se por objetivos políticos específicos, como as políticas ambientais no caso dos partidos verdes30.
Numa contribuição mais recente, Liesbet Hooghe - junto com outros colegas31 - analisou a versão de 2010 do relatório Chapel Hill, que visava posicionar partidos de acordo com as suas opiniões sobre ideologia, integração europeia e outras 13 políticas. Os dados em questão indicavam que a relação entre uma ideologia geral esquerda-direita e o apoio a iniciativas de integração era cada vez mais semelhante na Europa Ocidental e de Leste. A grande alteração de posicionamento verificou-se nos partidos verdes, que costumavam ser neutros ou eurocéticos em 1999 e que, em 2010, se tornaram apoiantes de um aprofundamento do processo de integração. Finalmente, Bakker et al.32 confirmam que entre os anos de 1999 e 2002 a oposição à integração se concentrava na extrema-esquerda e na direita populista.
Embora a UE seja a principal referência quando falamos de projetos de integração,as iniciativas de integração na América Latina, em especial o Mercosul (Mercado Comum do Sul), também representam um importante estudo de caso. Na literatura, existem poucas análises das ligações33 e da participação dos partidos em projetos de integração porque o acesso de representantes domésticos legítimos a centros supranacionais de tomada de decisão ainda não foi consubstanciado na prática. Apesar da criação do PARLASUL em 2006, o processo de integração é ainda predominantemente intergovernamental34, com pouca atenção dada aos legisladores e pouco espaço para estes atuarem supranacionalmente35.
No que diz respeito à conexão entre o apoio à integração no Mercosul e os programas dos partidos, a tese de Fabiano Santos36 afirma que os partidos de esquerda se posicionam favoravelmente em relação ao processo de integração. Para o autor, a aproximação dos países vizinhos foi fundamental para a criação de uma alternativa consistente de esquerda, por exemplo no Brasil durante a Administração Lula37.
A primeira alternativa era a integração baseada em acordos de comércio livre, que geralmente também envolviam acordos bilaterais entre as grandes potências. O segundo modelo incluía não apenas aspetos comerciais, mas também atuação conjunta em projetos de infraestrutura e energia, bem como laços culturais e políticos entre os Estados que participavam nesses projetos. Por outras palavras, existia «a percepção da integação como um plano mais abrangente para uma atuação em bloco de vários países»38. Como seria de esperar, os partidos de direita da região apoiaram a integração no período em que o modelo de comércio livre predominou, enquanto os partidos de esquerda preferiram o segundo modelo.
Janina Onuki e Amâncio de Oliveira39 expressaram as suas reticências em relação ao argumento de que os partidos de esquerda apoiaram projetos de integração na América Latina. O forte nacionalismo associado aos partidos de esquerda na região terá levado estes países a uma posição mais favorável a uma abordagem intergovernamental, em detrimento de uma abordagem supranacional, que está geralmente ligada a projetos regionais liberais. Para além disso, durante o período observado por Santos40 registou-se uma tendência para a manutenção de elevados níveis de liberdade nacional em termos de política industrial, o que gerou um problema de coordenação nas políticas do bloco. Em resultado, Onuki e Oliveira41 sublinham a necessidade de «estudos dos processos de integração latino-americanos que tenham em consideração aspetos relacionados com regimes políticos, o fenómeno do nacionalismo e as forças políticas partidárias que operam no sistema político»42.
Mais recentemente, Feliú e Onuki43 analisaram os níveis de unidade partidária em seis países latino-americanos, em votações respeitantes a política externa. Observaram que estas questões não geraram incentivos específicos em termos de comportamento legislativo. As decisões dos parlamentares eram frequentemente baseadas nas principais diretivas partidárias, fosse a questão em causa doméstica ou internacional. A conclusão a que chegaram é que não existe diferenciação entre estes dois tipos de políticas; neste sentido, questões de política externa, incluindo os projetos de integração regional, estariam sujeitas à coordenação das diretivas partidárias.
Numa versão revista do seu argumento, publicada em 2010, Oliveira e Onuki44 confirmaram que, no que diz respeito à política externa, os partidos políticos são importantes em duas dimensões: a) diretamente, nas tomadas de decisão do poder executivo; b) e indiretamente, através das dinâmicas de freios e contrapesos nos processos de formulação e implementação de políticas. As posições dos partidos são especialmente relevantes em dois grandes temas: parcerias estratégicas Norte-Sul e integração regional. Os autores afirmam que nestas duas áreas existe uma intensa polarização induzida pelos dois principais partidos políticos contemporâneos do Brasil - o Partido dos Trabalhadores (PT), que representa a esquerda, e os Sociais Democratas (PSDB), que representam a direita. Opondo-se à ideia de que os partidos políticos e suas orientações ideológicas não são importantes, Oliveira e Onuki defendem que «os partidos políticos brasileiros não só têm posições diferentes em assuntos externos, mas também, dependendo da composição do governo, modificam os rumos do país na arena internacional»45.
Flávio Contrera e Matheus Hebling46 identificaram o posicionamento ideológico dos partidos políticos brasileiros em matérias de política externa durante a eleição presidencial de 2014. A sua principal observação foi que a maioria dos partidos defendia que o Brasil deveria agir como protagonista na arena internacional. No entanto, divergiam fortemente em relação às parcerias estratégicas que o país deveria estabelecer. De acordo com Contrera e Hebling47, embora tanto o PT quanto o PSDB defendessem um papel de liderança para a atuação externa do país, o primeiro privilegiava relações mais próximas com países emergentes e um maior envolvimento em organizações internacionais, enquanto o segundo - o PSDB - preconizava uma atuação externa alinhada com as economias capitalistas do centro, em especial os Estados Unidos, e um papel periférico nas organizações internacionais.
Embora a integração do Mercosul ainda não tenha atingido a dimensão distributiva ou a visibilidade na opinião pública alcançada pela sua congénere pioneira na Europa, cada vez mais os legisladores latino-americanos procuram envolver-se e posicionar-se em questões internacionais48. E por causa do maior envolvimento dos legisladores nestas matérias, é expectável que as plataformas políticas dos partidos brasileiros se traduzam no posicionamento dos seus representantes legislativos face ao processo de integração.
No entanto, poucos estudos olham para a forma como o espetro ideológico influencia o posicionamento discursivo dos congressistas brasileiros em questões de integração regional. Há ainda menos estudos com foco na UNASUL, uma vez que a maioria dos trabalhos prioriza o caso do Mercosul. Considerando todo o exposto, este artigo visa analisar até que ponto a dimensão ideológica é importante no posicionamento discursivo dos congressistas brasileiros face à integração regional. A próxima seção irá explicar como coletámos e analisámos os dados.
Dados e métodos
Este artigo segue uma estratégia metodológica assente em duas etapas. Em primeiro lugar, coletámos, explorámos e descrevemos estatisticamente todos os dados discursivos do Congresso brasileiro relativos à UNASUL. Depois, selecionámos e analisámos criticamente 59 discursos. O objetivo desta seção, portanto, é explicar cada um dos passos que permitiram obter os resultados desta investigação.
A 15 de setembro de 2020, acedemos ao repositório de discursos do Congresso brasileiro49 em busca de todos os discursos que contivessem a palavra «UNASUL» ou a expressão «União de Nações Sul-Americanas», e que tivessem sido proferidos entre 1 de janeiro de 2000 e 15 de setembro de 2020. Incluímos apenas estes termos porque demonstraram ser diretos, pragmáticos e não ambíguos. Pela mesma ordem de ideias, decidimos excluir outras possíveis referências anteriores a projetos que precederam a UNASUL, particularmente a Comunidade Sul-Americana de Nações e a sua abreviação (CASA). Esta exclusão deve-se ao facto de a própria UNASUL representar uma longa trajetória da política externa brasileira assente na busca de autonomia e na construção da América do Sul enquanto entidade política e estratégica.
Assim, é difícil estabelecer (sem enviesar a análise) um momento definitivo para o início do projeto. Poderia ser 2004, com o arranque da Comunidade Sul-Americana de Nações. Mas também poderia ser 2000, quando se realizou a primeira cimeira de presidentes sul-americanos. Poderia até ser 1993, com a ideia, jamais implementada, de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana50. Devido a este leque de possibilidades, apenas incluímos referências à UNASUL. Apesar de excluirmos projetos anteriores, procurámos, por curiosidade, menções entre 2000 e 2020, ainda que o bloco apenas tenha sido estabelecido oficialmente em 2008. A intenção era saber se a UNASUL alguma vez tinha sido discutida na Câmara antes de ser oficialmente proposta pela presidência brasileira. Não foi o caso. Como mostra a próxima seção, a primeira referência ao bloco ocorreu em dezembro de 2007.
Depois da coleta de todos os dados, os ficheiros foram pré-processados e cada partido político foi classificado de acordo com a sua associação ideológica. Para fazer essa classificação, utilizámos a categorização apresentada pela primeira vez por Tarouco e Madeira51 e depois adaptada por Amaral e Pinho52. Enquanto os primeiros autores criaram uma escala numérica de classificação ideológica (espetro político), os segundos converteram os números em categorias nominais (extrema-esquerda, esquerda, centro-esquerda, centro-direita, direita e extrema-direita), o que veio simplificar o trabalho do presente artigo. No entanto, por razões de simplicidade, reduzimos as categorias de seis para três. Assim, os partidos que Amaral e Pinho53 consideraram de extrema-esquerda e esquerda foram, neste artigo, colocadas na posição de esquerda. De igual modo, os partidos que tinham sido considerados de extrema-direita e direita foram colocados no espetro da direita. Não mudámos as unidades políticas consideradas por Amaral e Pinho54 como sendo de centro.
Depois deste processo, obtivemos uma base de dados com informação importante sobre a data de um determinado discurso, o seu respetivo autor, partido político, região e ideologia. Por seu lado, isto foi importante para responder a algumas das questões levantadas na nossa revisão da literatura, respeitantes à forma como os diferentes partidos e atores políticos apoiam temáticas de integração regional. A primeira fase da investigação empírica deste artigo deu-nos suficiente informação sobre quando, como e por quem a UNASUL tem sido apresentada como um tema retórico no contexto da Câmara dos Deputados do Brasil.
Na segunda e última fase da pesquisa empírica, realizámos uma análise de discurso crítica. Selecionámos todos os discursos dos dez principais congressistas que demonstraram maior interesse em mencionar o bloco regional. Analisámos cinco congressistas de esquerda e cinco de direita. Consequentemente, o corpo de análise do artigo incluiu 59 discursos (partidos de esquerda: 44; e partidos de direita: 15). Depois de obtermos os dados textuais para análise, recorremos ao KWIC (Key Words in Context) para selecionar porções do texto relativas aos termos «UNASUL»/«União Sul-Americana de Nações». O passo seguinte foi ler e avaliar criticamente cada frase, de forma a descobrir as principais conotações que os partidos de direita e esquerda deram ao bloco.
O número zero (0) foi atribuído a todas as frases com um tom mais neutro. Por exemplo, afirmações com dados fatuais ou com a razão pela qual a UNASUL foi criada, bem como o seu significado. Menos um (-1) foi atribuído a todas as afirmações que criticavam, condenavam, atacavam, reprovavam ou censuravam o projeto regional. Finalmente, o número um (1) foi atribuído a todas as afirmações positivas. No entanto, ressalvamos que estes números não tentam quantificar os discursos políticos. Em vez disso, foram utilizados apenas para nos ajudar a identificar e selecionar as narrativas mais representativas e predominantes das visões positivas, neutras ou negativas da questão em causa. Antes de apresentar os resultados, é importante referir que todos os documentos coletados, analisados e criados nesta pesquisa estão disponíveis em acesso livre para que qualquer pessoa possa replicar e/ou avaliar o seu nível de fiabilidade.
Resultados e discussão
Como mencionado anteriormente, o objetivo deste artigo é duplo: a) explorar e descrever a forma como a UNASUL (enquanto tema retórico) entrou no Congresso brasileiro, e b) descobrir se podemos ou não identificar diferentes conotações relativas ao bloco, dependendo da ideologia partidária. Para atingir estes dois objetivos, recorremos a múltiplas formas de medição. Uma delas é a frequência de referências à UNASUL nos discursos dos congressistas brasileiros, tal como mostra a figura 1.
É interessante verificar que a UNASUL, enquanto tema retórico, seguiu uma trajetória clássica de ascensão e queda. O bloco foi pela primeira vez introduzido no Congresso brasileiro a 4 de dezembro de 2007, com o discurso do Dr. Rosinha (Partido dos Trabalhadores, PT). De 2008 a 2017, manteve-se numa posição estável, oscilando de 13 (em 2016) a 39 menções (em 2011, quando atingiu o ápice). No entanto, a partir de 2018 as referências à UNASUL decaíram claramente (seis menções) e praticamente desapareceram dos discursos dos congressistas, sendo que o bloco foi referido apenas duas vezes (uma em 2019 e outra em 2020). A figura também indica que o declínio da UNASUL ficou associado ao crescimento das forças de direita depois da impugnação de Dilma Rousseff (2011-2016).
Porém, a figura não nos diz muito sobre quais os partidos políticos que foram responsáveis pela inclusão da UNASUL na Câmara dos Deputados brasileira. Não apresenta quais partidos se referiram mais e menos a este projeto regional, bem como a sua associação ideológica. Esta informação é da maior importância, especialmente tendo em conta o principal objetivo deste projeto. Afinal, esta informação ajuda-nos a demonstrar parcialmente a plausibilidade da nossa hipótese, segundo a qual os partidos de esquerda tendem a prestar mais atenção e a ser mais otimistas do que os partidos de direita em relação ao regionalismo latino-americano (no nosso caso, representado pela UNASUL). Assim sendo, a figura 2 procura colmatar esta lacuna.
Note-se a importância do PT no que concerne a trazer e manter a UNASUL no seio do Congresso Nacional brasileiro. Isto torna-se ainda mais relevante se considerarmos que «os partidos podem “deter” certos assuntos»55 e que «os partidos são livres de fazer o que quiserem com os “seus” assuntos - pelo menos de os enfatizarem e utilizarem para seu próprio benefício na definição da agenda»56. O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi o segundo maior interessado em mencionar a UNASUL nos seus discursos políticos. Considerada no seu conjunto, a esquerda representa 66,9% de todas as menções ao bloco. Isto sugere que os partidos de esquerda no Brasil têm de facto uma maior tendência para «deter» este tema regional do que os partidos de direita (que respondem por 21,2% das menções, enquanto o centro responde pelos restantes 11,9%).
Apesar de não ser tão proeminente no espetro da direita e do centro, a UNASUL também prendeu a atenção retórica de alguns partidos importantes como o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), os Democratas (DEM), o Partido Progressista (PP) e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Dentro de cada unidade política há certos congressistas, em especial, que mostraram maior interesse em trazer a UNASUL para as discussões na Câmara dos Deputados, como mostra a figura 3.
A figura mostra os principais congressistas que se referiram à UNASUL nos seus discursos políticos e na sua respetiva associação ideológica. Uma vez mais se torna claro como o espetro da esquerda foi predominante. Na esquerda, José Genoino, Nilson Mourão, Dr. Rosinha, Jandira Feghali e Sibá Machado foram os cinco congressistas mais proeminentes. No que diz respeito aos partidos de direita, os congressistas que mostraram maior interesse em falar sobre o projeto regional foram Jair Bolsonaro (o atual Presidente do Brasil, 2019-2022), Duarte Nogueira, Waldir Maranhão, Onyx Lorenzoni e Inocêncio Oliveira. Ao centro, os principais nomes são Raul Jungmann, Alex Manente, Carlos Manato e Augusto Carvalho. Como explicado anteriormente, tendo em conta a importância destes congressistas levámos a cabo uma análise de discurso crítica de cada afirmação destes dez legisladores (os cinco principais da esquerda e os cinco principais da direita), de forma a avaliar os seus padrões e conotações narrativos e, em seguida, aferir se os congressistas de esquerda tendem a ter uma visão do regionalismo mais positiva do que o espetro de direita.
No geral, o tom narrativo que predominou no espetro de direita foi negativo (12 referências) e neutro (sete frases), com apenas cinco menções positivas. Jair Messias Bolsonaro foi, de longe, o congressista que criticou a UNASUL com mais frequência e veemência. Por diversas vezes acusou o bloco de ser apenas um pseudónimo para o Fórum de São Paulo. Para além disso, mais do que uma vez lamentou a abertura do espaço aéreo do Brasil a países sul-americanos. Para Bolsonaro, esta abertura necessariamente implicaria tráfico de armas, munições e drogas. Para Bolsonaro, a UNASUL está intimamente ligada a fraudes eleitorais. Nos seus discursos, sugeriu repetidas vezes que havia uma associação oculta e intensa entre o uso de urnas de voto eletrónicas e a perpetuação de alguns líderes no poder. Além do mais, Bolsonaro acredita que a UNASUL (ou o Fórum de São Paulo) é um local onde os partidos de esquerda - que ele denomina de «a escória da América Latina» - se encontram e engendram planos para ganhar eleições. Em suma, nos discursos de Bolsonaro a UNASUL é frequentemente associada a Cuba, à corrupção, ao comunismo, à fraude eleitoral, ao terrorismo (em especial ao Estado Islâmico) e à luta armada.
Ainda assim, a estrutura retórica de Bolsonaro não é representativa dos outros discursos do espetro de direita. Por exemplo, Duarte Nogueira foi outro congressista que manteve, em algumas ocasiões, uma imagem negativa do bloco. No entanto, não articulou um discurso tão violento e iconoclasta como Bolsonaro. Pelo contrário, Nogueira defendeu que a UNASUL poderia alavancar a liderança do Brasil na região, bem como equilibrar a posição do país nas negociações com Estados mais desenvolvidos da América Central e do Norte. Porém, é claramente contra a ideia de o Brasil ser o tesoureiro da integração regional sul-americana. Nogueira argumenta que a maioria dos custos de funcionamento e das iniciativas para reduzir as discrepâncias entre os países signatários da UNASUL seria suportada desproporcionalmente pelo Brasil. Para Nogueira, isto é errado uma vez que se desvia em muito da iniciativa original de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) para a América do Sul, que tendia a ser mais pragmática, consistente, equitativa e equilibrada.
Esta relutância em ver o Brasil como o tesoureiro da UNASUL também estava presente nas afirmações de Onyx Lorenzoni. Por exemplo, a 31 de março de 2011 Lorenzoni explicou que a sua posição contra o bloco era «para defender a população brasileira de uma situação em que nós vamos gastar com os nossos irmãos latino-americanos o que não estamos gastando com as pessoas em saúde, em educação e em segurança. E a nossa prioridade é o Brasil»57.
Waldir Maranhão e Inocêncio Oliveira foram os únicos congressistas de direita que não apresentaram uma visão negativa da UNASUL; em vez disso, expressaram uma posição positiva ou neutra. Em abril de 2009, Oliveira elogiou o bloco regional pela sua iniciativa de combater a dengue através de uma atuação coordenada. Para Oliveira, tal atuação era essencial porque «[o] vírus Aedes aegypti transita sem passaporte nesses territórios»58. Waldir Maranhão comentou positivamente a UNASUL, juntamente com outras iniciativas de Lula (2003-2011) como o Mercosul, o Conselho de Defesa Sul-Americano e a cooperação Sul-Sul, porque estas poderiam catapultar a liderança regional do Brasil e promover a justiça social.
No que toca ao espetro de esquerda, não se registaram afirmações negativas sobre a UNASUL; apenas menções positivas (47) e neutras (22). A maioria dos comentários favoráveis enalteceu o bloco regional pela sua capacidade de transformar o continente sul-americano numa entidade mais pacífica, autónoma e estratégica. Dr. Rosinha, por exemplo, expressava a sua admiração pelo bloco por este instituir uma região mais interligada e coesa. Ao mesmo tempo, defendeu que a viabilização da UNASUL poderia fazer diminuir a interferência militar e económica dos Estados Unidos na América do Sul. Dr. Rosinha usa até alguns argumentos de Hélio Jaguaribe que, na sua visão,
«tem defendido que ou o Mercosul com a união sul-americana dá certo, ou seremos mero segmento da economia mundial, principalmente dos Estados Unidos que têm essa hegemonia. […] Quando não, seremos uma província daquele país, mais um Estado norte-americano»59.
Para além disso, Rosinha via a UNASUL como uma forma de libertar o Brasil da Organização dos Estados Americanos e dar aos países sul-americanos a liberdade de definirem as suas políticas.
Por seu lado, Jandira Feghali tinha uma visão mais nostálgica da UNASUL. Em declarações proferidas entre 2014 e 2017, Feghali acusou repetidamente o governo de Michel Temer (2016-2018) de retroceder e deteriorar a anteriormente bem-sucedida política externa brasileira. De acordo com Feghali, a nomeação de José Serra como ministro das Relações Exteriores representou uma quebra nas relações internacionais do Brasil, que prejudicou a cooperação brasileira com países africanos. Além do mais, Feghali sugeriu que Serra não suportava o BRICS, o Mercosul ou a UNASUL porque apenas desejava fazer o Brasil «voltar a ter uma relação subalterna ao império norte-americano e a outras potências»60. As suas críticas contra o alegado imperialismo norte-americano vão ainda mais longe quando, num outro discurso, associa a vitória eleitoral de Dilma Rousseff à persistência do regionalismo sul-americano. Para Jandira Feghali, a UNASUL era vital para derrotar os «setores imperialistas que tentam dominar econômica e culturalmente o nosso País e as economias da América Latina, em especial da América do Sul»61. Feghali também condenou as novas práticas do Banco de Desenvolvimento brasileiro (BNDES) que, na sua visão, estava a ser utilizado para apoiar privatizações quando no passado tinha sido um instrumento para desenvolver uma política autónoma e independente.
Tal como Feghali, José Genoino expressou a preocupação de que os partidos de direita estavam mais interessados em priorizar as relações bilaterais com os Estados Unidos e a ue. Em consequência disso, a UNASUL e o regionalismo sul-americano seriam colocados numa posição secundária. Em agosto de 2009, Genoino afirmou que o bloco regional - juntamente com o Conselho de Defesa Sul-Americano - tinha sido essencial para a proteção da floresta amazónica. Em 2010, criticou a oposição de direita por esta ter seguido critérios ideológicos para adiar a ratificação do tratado constitutivo da UNASUL. Nos discursos de Genoino, o Conselho de Defesa Sul-Americano recebe a maior atenção e reveste-se da maior importância. Para Genoino, trata-se de um mecanismo fundamental para assegurar a assistência mútua a nível regional, com o intercâmbio de experiências, negociações e instrumentos democráticos. É interessante verificar que, de acordo com Genoino, a UNASUL (em conjugação com o Mercosul e o Conselho de Defesa Sul-Americano) foi essencial para o insucesso da Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA) e para reduzir a importância do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) na região. De facto, quando olhamos cuidadosamente para estes discursos de esquerda, podemos perceber uma estratégia retórica clara que visa estabelecer a UNASUL e a América do Sul enquanto uma entidade única e homogénea, e os Estados Unidos enquanto força exógena e intervencionista.
Nos discursos de Nilson Mourão, a UNASUL é caraterizada como uma forma de construir «uma região sem fronteiras, uma comunidade de nações, com ampla liberdade de trabalho e de movimentação econômica e de pessoas. Esse é o nosso sonho»62. Mourão também considerava o bloco regional um instrumento para integrar plenamente a região de um ponto de vista comercial, cultural, científico, económico e tecnológico. Para Mourão, a UNASUL era a melhor forma de resolver quaisquer possíveis disputas entre os países sul-americanos. Apesar de ter uma perceção profundamente positiva do bloco, Mourão esclarece que se trata de um longo processo: «Ainda é uma ideia, um sonho, uma utopia vermos os países do continente sul-americano […] integralmente unificados na parte cultural, econômica, física, para que o seu povo possa, inclusive, desenvolver alguns programas de educação e saúde»63.
Para Sibá Machado, a UNASUL poderia transformar o hemisfério sul do continente num grande bloco no qual os países cooperam para lidar com várias barreiras em diferentes esferas como energia, infraestrutura, defesa, tecnologia, saúde e o combate ao tráfico de drogas. Para além disso, Machado tinha esperanças de que o bloco pudesse fortalecer a relação entre o Brasil e o Peru. Neste contexto, o estado brasileiro do Acre iria tornar-se o epicentro da integração dos dois países.
Conclusões
Tal como mencionado ao longo do artigo, o nosso principal objetivo era averiguar se a orientação partidária dos congressistas brasileiros de alguma maneira influenciava a forma como estes se posicionavam em relação ao projeto de integração regional da UNASUL. Analisámos 59 discursos que continham a palavra «UNASUL» ou a expressão «União de Nações Sul-Americanas», considerando o período de tempo entre 1 de janeiro de 2000 e 15 de setembro de 2020. O objetivo era descobrir quem de entre os congressistas brasileiros falou mais sobre a UNASUL, assim como as conotações que os partidos de direita e esquerda deram ao bloco.
As conclusões do artigo poderão validar alguns dos argumentos previamente mencionados na revisão da literatura. Como é demonstrado pelos indicadores quantitativos, no que diz respeito à UNASUL o espetro de esquerda «deteve» o assunto no Congresso brasileiro. Os partidos de esquerda respondem por 66,9% de todas as referências ao bloco. Em termos qualitativos, descobrimos que tanto os partidos de direita como os de esquerda por vezes tendiam a referir-se à UNASUL em termos neutros. Ainda assim, os partidos de direita foram os únicos a pronunciar-se negativamente em relação à UNASUL, enquanto o espetro da esquerda nunca criticou o bloco. Em suma, com base nos dados analisados nesta pesquisa, é possível confirmar que os partidos de esquerda tenderam a apoiar discursivamente a UNASUL com maior frequência do que os seus congéneres de direita.
Obviamente, para fins de fiabilidade, a nossa classificação deve ser reproduzida, testada e melhorada. Para que isto seja possível, todos os ficheiros foram disponibilizados numa plataforma pública (Dataverse). Futuros trabalhos de pesquisa devem fazer um esforço para verificar se as conclusões deste artigo são válidas para outras instituições regionais para além da UNASUL, como o Mercosul e o PROSUL, por exemplo. É possível afirmar que os partidos de esquerda e direita apoiam estas iniciativas de forma semelhante à da UNASUL?
Uma outra agenda de investigação resultante deste artigo poderia incluir outras esferas de poder, como o Senado brasileiro ou o poder judiciário. Assim que começamos a vislumbrar que as questões de política externa vão além do âmbito exclusivo do poder executivo, outros estudos podem investigar como e até que ponto outros atores influenciam ou apoiam estas mesmas questões. Finalmente, também se afigura como desejável que as conclusões deste artigo sejam enriquecidas com outras técnicas de investigação qualitativas e quantitativas.