Em um momento de profundas incertezas nos campos econômico, político e social ao redor do mundo, e em que a política externa brasileira parece apresentar contornos que destoam de suas orientações tradicionais, trataremos de um aspecto de relativa estabilidade em contextos de longa duração, cujo peso de permanência como influenciador das relações internacionais do Brasil poderá ser avaliado nos anos vindouros.
Partimos do seguinte argumento: existe uma lógica estrutural na política externa brasileira que é condicionada pela geografia e que se concretiza conjunturalmente de maneiras diferentes, em função da relação entre os contextos interno e externo, mas que mantém certos níveis de definição relacionados com escalas geográficas distintas. Esta é a hipótese central deste trabalho e, ao mesmo tempo, sua premissa, sendo aqui aplicada na análise comparada de duas situações distintas, distanciadas no tempo de praticamente um século: a política externa levada a cabo pelo barão do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos Jr., à frente do Ministério das Relações Exteriores (o Itamaraty), no início do século XX (1902-1912, passando pelos mandatos dos presidentes Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca), e aquela proposta pelo primeiro governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no início do século XXI (2003-2006).
A respeito da escolha dos termos da comparação, vemos que a recorrente alusão à política riobranquiana, por analistas da política e das relações internacionais, e mais recentemente com referência à proposta de política externa de Lula, marca o interesse sempre renovado, por um lado, pelo que Ricupero1 denominou «primeiro paradigma» da política externa brasileira e, por outro, abre a possibilidade de comparações entre os dois «modelos». O último, de Lula (e mesmo mais amplamente, do Partido dos Trabalhadores), que se encerrou como ciclo, por sua vez já pode ser tratado sob a ótica de um distanciamento histórico adequado.
De fato, recentemente variados trabalhos têm sido apresentados analisando questões como a relação entre os âmbitos multilateral e regional, a redefinição de parcerias tradicionais, a integração no Cone Sul, o papel da política doméstica, a posição em relação à globalização, à América do Sul, aos organismos internacionais, à ALCA, às potências emergentes do «Sul» ou ao «BRICS», e mesmo realizando a comparação entre as políticas externas de Lula e de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso2. No entanto, salvo engano, nenhuma proposta foi feita em termos de uma análise sistemática de longa duração histórica, conquanto a comparação de fato já tenha sido aventada3, bem como a questão da continuidade da política externa tenha sido abordada, por exemplo, em termos da «oscilação entre americanismo e globalismo»4.
O que trataremos, portanto, é de uma análise comparada da política externa de Rio Branco, marcada pela unwritten alliance, a «aliança não escrita» como definida por Bradford Burns5, com os Estados Unidos, e da autodenominada «política externa afirmativa» pretendida pelo Governo Lula. Esta comparação é política, em termos da natureza dos objetos comparados; é histórica, conquanto se trate de fenômenos políticos posicionados historicamente em contextos específicos e diferenciados, tanto no âmbito interno como internacionalmente; e, finalmente, é geográfica, em função do método de análise aplicado.
Metodologia: história política comparada, geohistória e raciocínio geográfico multiescalar
A expressão «política comparada» é usada para indicar o uso do método comparativo no estudo dos fenômenos políticos e designa, em decorrência, também um campo de estudos dentro da Ciência Política. Como método, a análise política comparativa deve procurar minimizar o perigo de confrontar fenômenos que não admitem confrontação6, notadamente quando, além de política, a comparação é também histórica, envolvendo fenômenos diacrônicos. Como advertem os historiadores, a comparação histórica exige uma série de cuidados, como evitar o anacronismo e a possibilidade de semelhanças fenomênicas superficiais virem a ser tomadas como elementos essenciais de comparação, bem como localizar as diferenças, buscar os fatores que as determinam e fixar as regularidades ou uniformidades manifestadas entre os processos observados7. A premissa de tal tipo de análise, portanto, é que, apesar das particularidades históricas de cada fenômeno político, estes podem apresentar algo significativamente comum8.
Como diz Fernand Braudel, as comparações são «condição necessária quando se pesquisa nas águas turvas do tempo, malgrado a turbidez das águas», representando os «pontos de apoio, sem os quais nada seria possível»9. Ou, nas palavras de Joseph Nye, «algumas características estruturais da política internacional predispõem os acontecimentos numa direção em vez de outra»10. Em nosso caso, temos a geografia como «característica estrutural» e, como ressalta Pierre Milza, os dados geopolíticos posicionam-se em primeiro lugar quando se trata de estudar as «forças profundas» que influenciam, do exterior, o comportamento internacional dos Estados11.
A comparação só é possível em um contexto homogêneo, a definição do qual implica uma classificação: «pôr em ordem uma realidade multiforme, fixar os critérios segundo os quais se há de distinguir entre fenômenos só aparentemente semelhantes, ou até mesmo dentro de fenômenos que apresentam atributos tão intrincados que podem criar perigosas confusões»12. Além disso, quando se trata de estudar a política externa, a influência do contexto interno e de suas «forças profundas» aparece com importância13, e as análises que têm por objeto o relacionamento entre os países devem, antes de tudo, debruçar-se sobre os motivos das opções em âmbito nacional14.
A ferramenta da análise geográfica, aqui, provê categorias suficientemente flexíveis que propiciam atender às necessidades básicas do processo comparativo de fenômenos de política externa em situações históricas diferenciadas. O conceito braudeliano de geo-história, como uma geografia humana que veja os problemas humanos dispostos no espaço e no tempo, de maneira retrospectiva, tomando como pressuposto a «formidável permanência» do espaço (ou melhor, do que este fator suporta, engendra, facilita ou contraria), pode ser referido como ponto de amarração teórico geral de nossa perspectiva, ressalvando-se, como faz Braudel, a justa medida e alcance de sua influência15.
Ao se tratar da influência das injunções externas e dos elementos pertencentes à esfera das relações internacionais na política dos Estados, tem sido lembrada a fórmula de Napoleão segundo a qual «[a] política de um Estado está em sua geografia». Alexandre Defay esclarece o sentido da afirmação ao considerar que ela só faz sentido quando se considera que à «geografia» se relaciona, por um lado, a representação que o Estado faz de si mesmo em certo momento e, por outro, os meios humanos e econômicos de que dispõe16. Dessa maneira, afasta-se a questão do determinismo do meio sobre a política, concepção na qual teriam caído os primeiros teóricos da geopolítica, como também ressalta Milza17.
Como escreve Yves Lacoste, os dados geográficos, como os argumentos da história, são na maioria das vezes escolhidos em função das necessidades da causa, e uns e outros são em grande medida contestados pela parte adversa18. Assim, os raciocínios geográficos, como os históricos, não podem ser neutros e, no caso das matérias de relações internacionais, formariam pares contraditórios: «tal argumento que convém ao dirigente de tal Estado é recusado pelos dirigentes do Estado rival». No entanto, Milza considera que as reservas referentes à aplicação do raciocínio geográfico às relações internacionais formuladas por Lacoste não implicariam que se deva deixar de recorrer a ele:
«É preciso simplesmente [...] ter consciência da extrema complexidade dos problemas, evitar todo determinismo latente, considerar de maneira muito ampla a ideia de fator geográfico [...], cruzar, como faz o historiador com o “tempo longo” e os “tempos curtos”, os diferentes níveis de análise espacial e admitir que a “análise geográfica não trata apenas de permanências, mas também das situações de crise. Pagando-se esse preço, a geopolítica pode contribuir muito para o estudo das relações internacionais»19.
Portanto, ao se estabelecer uma leitura geográfica da política internacional, a questão da definição dos níveis de análise se torna metodologicamente central. Como ressalta Olivier Dolfuss20, a análise de um espaço geográfico e dos elementos que intervêm em sua composição, bem como das combinações de processos atuantes no interior desse espaço ou sobre ele, só é inteligível quando efetuada no interior de um sistema de escalas de grandeza. Os fenômenos da política externa, inclusive. Podemos entender aqui por sistema de escalas a série ordenada de dimensões de um espaço, um fenômeno ou processo, indo do local ao mundial, cada qual configurando um nível de escala «embutido» em outro mais amplo.
Nesse contexto, o raciocínio geográfico multiescalar aplica-se quando, para construir uma explicação, referimo-nos a fenômenos que se expressam em níveis diferentes da escala geográfica21, mas que se relacionam de modo tal a exercerem, todos, certo grau de influência na configuração do fenômeno estudado. Nenhum nível é suficiente para se compreender o fenômeno em sua totalidade, uma vez que a natureza dos fatos considerados varia conforme o nível de análise.
A política externa de Rio Branco
A análise geográfica multiescalar foi utilizada por Any Ortega para estabelecer uma visão abrangente da política externa de Rio Branco22. No nível da conjuntura internacional, colocava-se a questão da previsão do conflito europeu e de suas consequências que, no cálculo do Barão, adviriam para as relações comerciais e diplomáticas mundiais. No nível hemisférico, a questão do avanço norte-americano na América Central e Caribe e do estabelecimento de uma hegemonia continental, por meio da definição de uma «esfera de influência» pan-americana. Já no nível regional se ressaltava a situação de enfrentamento com a Argentina, país em desenvolvimento econômico acelerado e fortemente vinculado ao Reino Unido. Estava em jogo, nesse nível, a disputa pela «hegemonia subcontinental» (inclusive no campo militar, por meio de certa «corrida armamentista»).
Sérgio Danese lembra que a política de Rio Branco era «mais do que nada interamericana, respondendo muito mais diretamente às necessidades e desafios da nova aliança com os Estados Unidos do que a um interesse de aproximação com os países latino-americanos ou sul-americanos»23. Sendo esse, de fato, seu grande «eixo articulador», é importante ressaltar que, tão importante quanto sua definição, deve ser considerada a relação e articulação deste com os demais «eixos», correspondentes aos outros níveis escalares citados.
Ortega faz tal raciocínio recorrendo às considerações de Rubens Ricúpero, que interpreta a «aliança» com os Estados Unidos como uma forma de exploração e utilização das rivalidades intra-imperialistas em nosso favor, bem como uma forma de «integrar e articular o eixo de relativa simetria das relações fronteiriças com o eixo desigual das relações com as potências, subordinando eventualmente o primeiro ao segundo quando isso se pudesse fazer com proveito e sem maior dano às convicções e aos interesses»24.
A autora citada recorre ainda a Hélio Jaguaribe, para considerar que a posição brasileira no continente havia se tornado, à época, vulnerável ante a possibilidade de constituição de um bloco hispano-americano liderado pela Argentina e hostil ao Brasil25. Assim, o estreitamento de relações com os Estados Unidos, sob a égide ideológica do pan-americanismo, responderia às necessidades da política de «equilíbrio de poder» no Cone Sul. A opinião de José Honório Rodrigues, de que a aceitação da preponderância norte-americana teria em vista contrapor manobras hostis de nossos «rivais de então, os argentinos»26, é também trazida pela autora citada, de maneira a se chegar à seguinte conclusão:
«Temos, portanto, três categorias explicativas, relacionadas à conjunção de diversos níveis de análise, e que permitem, em conjunto, compreender a “opção americanista” riobranquiana: (1) evitar os prejuízos que poderiam advir de um conflito europeu em larga escala; (2) admitir como fato a predominância continental norte-americana e “conviver com ela como possível” e, ao mesmo tempo; (3) garantir o apoio norte-americano para a sustentação da influência brasileira nas questões regionais. Nenhuma dessas alternativas explica isoladamente, assim como a questão da exportação do café, a opção de Rio Branco»27.
Assim, para Ortega, a explicação estritamente econômica (referente ao mercado norte-americano) da adoção do pan-americanismo como direcionamento da política externa brasileira no tempo de Rio Branco teria caráter reducionista e não encontraria justificação suficiente sequer na própria economia, sendo a inclusão da solução política - como vimos, pautada na articulação de eixos referentes a níveis geográficos diferenciados - de conteúdo explicativo mais interessante28. E o entendimento de tal estratégia política se dá, significativamente, com referência ao que hoje se denominaria soft power, o «poder suave» representado pela primazia da ação diplomática29.
A política externa do primeiro governo lula
A proposta de política externa do primeiro Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi denominada em 2003, pelo então presidente do Partido dos Trabalhadores, José Genoíno, de «Política Externa Afirmativa», significando um contraponto ao que seria uma «política externa subalterna» caracterizada pela «idéia de aceitação das diretrizes externas propostas pelos grandes blocos de poder»30. Segundo Genoíno, tal «nova» política externa privilegiaria dois eixos, o primeiro referente à esfera continental (envolvendo a América do Sul ou a Latina e, principalmente, o Mercosul) e o segundo à esfera das relações globais (representando a articulação com países em desenvolvimento e emergentes).
Outro texto de Genoíno, publicado ainda em 2003, delineia a estruturação geográfica da política externa de Lula, cujas atenções se voltavam, por um lado, para o nível que denominamos de regional ou subcontinental (o «Prata», hoje Mercosul) e, por outro, para o nível mundial31. Ocorre que, entre tais níveis, temos justamente a política hemisférica, em que se posiciona o que nos ameaçaria, certamente em primeiro lugar, de «subalternidade»: os Estados Unidos. É possível verificar, no entanto, que tal articulação já aparece com razoável clareza, na forma de proposições, desde o Programa de Governo da Coligação Lula Presidente, de 200232, tendo sido reafirmada no discurso de posse presidencial33, bem como no próprio discurso de posse do então ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, em 200334.
De fato, o próprio título do item do Programa de Governo, dedicado às relações internacionais, já indica a estruturação geográfica citada acima: «Política Externa para Integração Regional e Negociação Global» - não se colocando aqui em evidência, portanto, o nível hemisférico, como vimos eixo central na política de Rio Branco. O Programa previa, como objetivo central de política externa, a viabilização de um projeto nacional alternativo, centrado na garantia da presença soberana do Brasil no mundo e buscando «contribuir para reduzir tensões internacionais».
Tomando por base os mesmos níveis de escala geográficos definidos na análise da política externa de Rio Branco, exposta acima, podemos verificar que é no âmbito regional ou subcontinental que recai a ênfase da política proposta por Lula, especificamente no Cone Sul. O Programa de Governo propõe um «pacto regional de integração, especialmente na América do Sul», mas deixando aberta a possibilidade de extensão de um «relacionamento especial» a todos os países da América Latina, aspecto em que, na verdade, somente se reafirma o disposto no artigo 4.º da Constituição Federal do Brasil, de 1988, que, ao tratar dos princípios que regem as relações internacionais, estabelece que o país buscará a «integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações».
Mas, de fato, o Programa de Governo se preocupava muito mais com o âmbito do Mercosul, o qual propunha-se a revigorar de modo a torná-lo uma «zona de convergência de políticas industriais, agrícolas, comerciais, científicas e tecnológicas», rumo a uma política monetária comum e a uma política externa comum, o que o deixaria em «melhores condições para enfrentar os desafios do mundo globalizado». O que se propunha, em síntese, era uma política de regionalização convergente, com cerne no Mercosul (e especial atenção à Argentina) e fundamentada na «complementaridade» da região, com a finalidade de «fazer frente ao tema da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA)».
Enfim, como sintetiza o discurso de posse de Amorim:
«No Governo Lula, a América do Sul será nossa prioridade. O relacionamento com a Argentina é o pilar da construção do MERCOSUL, cuja vitalidade e dinamismo cuidaremos de resgatar. [...] Consideramos essencial aprofundar a integração entre os países da América do Sul nos mais diversos planos. A formação de um espaço econômico unificado, com base no livre comércio e em projetos de infraestrutura, terá repercussões positivas tanto internamente quanto no relacionamento da região com o resto do mundo»35.
O Programa de Governo, partindo de críticas à política comercial norte-americana, considerada protecionista e «problemática» para países de PIB baixo, apontava a ALCA como um «processo de anexação econômica do continente», que deveria ser negociado conforme o «interesse nacional do Brasil». Dessa maneira, não há como não relacionar a menção feita por Lula, em seu discurso de posse, à existência de «ameaças à soberania nacional», com tal esfera hemisférica da política externa. Apesar disso, a relação a ser mantida com os Estados Unidos seria «sadia e equilibrada», conforme o Programa, ou «madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo», conforme o discurso de posse presidencial ou, ainda, um «entendimento construtivo e parceria madura» por meio de um «diálogo fluido», conforme o discurso de posse do chanceler.
Conferido o nível hemisférico, as propostas do Programa partem para o nível mundial, para o qual há referência a uma «relação equilibrada» com a União Europeia e o «bloco em torno do Japão», de modo a «permitir contornar constrangimentos internacionais, diminuir a vulnerabilidade externa a criar condições mais favoráveis para a inserção do Brasil no mundo». No mesmo âmbito, o Brasil deveria promover a aproximação com «países de importância regional» (a saber, África do Sul, Índia, China e Rússia), de maneira a construir relações bilaterais e articular esforços de atuação nas relações internacionais, particularmente no que diz respeito aos organismos internacionais. Lula, no discurso de posse, reafirma tais intenções e se refere a tais países como «grandes nações em desenvolvimento».
Quanto ao nível da política mundial, no entanto, é interessante destacar o discurso de posse do chanceler Celso Amorim, em que este apresenta uma visão geral da conjuntura internacional:
«O cenário em que teremos de realizar essa tarefa [de traduzir nossos interesses e valores em pontos da agenda internacional] é complexo e nem sempre amistoso. A economia mundial está estagnada. Os fluxos financeiros se comportam de forma errática e segundo uma lógica perversa que penaliza os países em desenvolvimento. A despeito das muitas promessas, os mercados dos países desenvolvidos continuam fechados a grande parte dos nossos produtos. Práticas comerciais predatórias dos países ricos nos privam dos benefícios da nossa competitividade. No plano político, conflitos que se supunha estarem em vias de solução recrudesceram, alimentados pela intolerância e o fanatismo. Atos terroristas de indescritível barbárie provocam reações e suscitam posturas que têm o potencial de afetar os princípios do multilateralismo. O risco de guerra volta a pairar sobre o mundo. Tudo isso se reflete em crises econômicas, financeiras e políticas, que tendem a ser mais graves nos países pobres. Nossa região - a América do Sul - também sofre os efeitos desses abalos.»36
O que se observa, portanto, é a caracterização de um quadro pessimista quanto às possibilidades de relacionamento com os «países ricos» e de uma perspectiva de ameaça potencial pairando sobre os «países pobres». E, enfim, o próprio Amorim37 caracteriza o caráter «multiescalar» da proposta de política externa: «nossa política externa não pode estar confinada a uma única região, nem pode ficar restrita a uma única dimensão».
Discussão
Como foi visto, as políticas externas de Rio Branco e de Lula podem ser compreendidas com referência a três eixos, referidos a níveis escalares geográficos distintos: corresponde ao nível hemisférico o papel de articulador ou definidor do caráter geral dessas políticas; ao eixo regional (subcontinental), o caráter de circunstância geográfica mais definida ou «determinada»; e, por fim, caracteriza-se o nível mundial como domínio de conjuntura, que atua como contexto universal a partir do qual se definem as orientações particulares.
Comecemos pelo nível regional. Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores, ao tratar do relacionamento entre Brasil e Argentina e do contexto da reaproximação dos países no final do século XX, e discutindo o caráter especial dessa relação (entendida pelo autor como parceria estratégica), considera que para os dois países a variável geográfica pode ser considerada de três maneiras distintas: a interação entre geografia e comércio, que se relacionaria à geoeconomia e não à geopolítica38; o fato de que o contexto de vizinhança é diferenciado do europeu, sendo este mais propenso a conflitos; e a relevância adquirida pelo fator geográfico no plano hemisférico, levando-se em conta o peso dos Estados Unidos na dinâmica de convergência econômica39. Enfatiza o autor a questão da vantagem comparativa, no processo de inserção competitiva na economia mundial, obtida a partir da contiguidade física da América do Sul e relacionada a fatores políticos e econômicos decorrentes da geografia e vinculados a vetores de logística e transportes, telecomunicações e energia. Estes, desenvolvidos simultaneamente de modo a agregar valores e reduzir custos, ampliariam vantagens comparativas em um processo de inserção competitiva na economia mundial40.
Conclui Lafer ser por esta razão que a vizinhança, ou contiguidade, está entre os fatores geográficos mais determinantes, concedendo sempre às relações entre os Estados envolvidos o «caráter da necessidade, da obviedade». Para ele, «do ângulo brasileiro, como tenho dito, inspirado por Ortega y Gasset, a América do Sul é a nossa circunstância, com ênfase no Cone Sul»41. Concepção onde se verifica um viés de determinismo discreto, pouco acentuado, mas presente.
Por outro lado, para Samuel Guimarães, a América do Sul seria a «circunstância inevitável, histórica e geográfica, do Estado e da sociedade brasileira». E se, até ao presente, com exceção do Cone Sul, as relações com os países vizinhos foram relativamente tênues, diversos elementos (como os vínculos de infraestrutura, o povoamento de áreas fronteiriças, o aumento dos fluxos comerciais etc.) estariam progressivamente contribuindo para o desenvolvimento de situações de cooperação e conflito que exigiriam «níveis muito mais profundos de cooperação política e econômica»42.
É interessante aqui notar como, em dois autores vinculados a campos políticos diferenciados como Lafer e Guimarães, a consideração da efetividade da circunstância geográfica da política externa brasileira seja colocada de forma convergente - e sejam quais tenham sido as consequências de atuação decorrentes -, o que vem a reforçar a consideração do elemento geográfico como um fator relativamente estável da política externa brasileira.
Seja como for, já no que diz respeito à política hemisférica, para Magnoli, a definição das relações com a potência norte-americana, então «hiperpotência» mundial, seria «questão central que repercute em todas as esferas da nossa política exterior»43. O autor se refere a tal circunstância sul-americana como «a tirania da geografia»: «do ponto de vista do Brasil, não existe América Latina, só América do Sul. [...] A sombra do gigante do norte cobre o México e a América Central, onde está o Canal do Panamá»44. O próprio Samuel Pinheiro Guimarães, ex-secretário-geral das Relações Exteriores do Itamaraty, considerou que «os Estados Unidos constituem, por inexorabilidade geográfica, o grande desafio para a política exterior brasileira, visto que o Brasil se encontra na zona de influência direta da superpotência»45, sendo que a situação geopolítica do Brasil na América do Sul e os fenômenos a ela associados (desde a «capacidade de articulação de iniciativas em defesa dos interesses da região» até a «internacionalização da Amazônia»), dentro de tal esfera de influência, seriam temas que poderiam levar a «situações conflitivas».
Quanto ao nível mundial, Guimarães, ainda ao tratar dos «grandes desafios geográficos» da política externa brasileira, considera que a África (e em especial seu Cone Sul), até então «pouco mais de que uma hipótese de política externa», deveria ser objeto de um «programa estratégico do Estado brasileiro», para a construção de vínculos políticos, militares, comerciais e tecnológicos46. A Europa, por sua vez, e apesar de sua participação «no âmbito das estruturas hegemônicas de poder, quando se trata de definir suas políticas em relação à periferia do sistema internacional», abriria oportunidades, por suas disputas com os Estados Unidos em diferentes instâncias, de cooperação com o Brasil. Por fim, na Ásia, a Índia e a China, vistas como «grandes Estados com interesse na multipolaridade do sistema internacional e na luta contra hegemonias que tentam impedir a plena realização do potencial dos Estados da periferia», eram apontadas como um desafio político para a diplomacia brasileira.
A comparação efetuada entre as políticas de Rio Branco e Lula permite verificarmos, portanto, a organização geográfica da política externa em diferentes níveis escalares embutidos e inter-relacionados, mas cuja articulação básica é o nível hemisférico, representado politicamente pela relação com os Estados Unidos, ou configurado geopoliticamente por sua «esfera de influência». A diferença é, essencialmente, a função política atribuída a cada nível, partindo-se desse eixo-pivô - assim considerado pois é a partir de sua consideração que emana, em ambos os casos, a diretriz prioritária de política externa.
Com Rio Branco o cerne da política externa era a aproximação com os Estados Unidos, e isto se dava, como vimos, além da questão econômica (do mercado do café), em função da intenção de afastamento e precaução em relação à esfera mundial (e de seus conflitos e expansões imperialistas), marcada pela política europeia do «equilíbrio de poder». E, por outro lado, pela circunstância platina, do Cone Sul, em que o vizinho argentino era entendido, na ausência de complementaridade econômica, como adversário político.
Com Lula, por sua vez, como foi mostrado, os níveis e o eixo são os mesmos, mas os papéis ou «polaridades» se invertem. A relação hemisférica (ainda condicionada pela «esfera de influência» norte-americana, e que então estaria materializada pela ALCA) assume caráter de negatividade - indicando o afastamento ou, no mínimo, restrição, posição «diplomaticamente» referida como «relação saudável e madura» - para a definição das políticas no nível escalar inferior (a América do Sul e o Cone Sul) e superior (as relações «mundiais» diversificadas). Quanto a este nível, também aqui não há uma perspectiva latino-americana que não seja meramente protocolar (ou, como visto, uma determinação constitucional kantiana).
A relação com os vizinhos do Cone Sul, a Argentina em primeiro lugar, renova a circunstância geográfica regional em termos políticos, agora, de integração política e econômica, e foi vista como forma de fortalecimento frente à ALCA, ou seja, aos Estados Unidos. A que era considerada a «grande irmã do Norte», ao tempo de Rio Branco, é vista como a «grande ameaça do Norte». Quanto ao nível mundial, a política externa procuraria explorar oportunidades nos campos tradicionais (como nas relações com a Europa e a Ásia - bloco japonês) e, de forma mais acentuada, abrir novos campos de relacionamentos «estratégicos» na periferia (Índia, China, África do Sul) mas, como se viu, sempre na mesma perspectiva de fortalecimento frente à necessidade de «enfrentamento» com os Estados Unidos.
Considerações finais
Quando, no início deste trabalho, afirmamos que existe uma lógica geográfica que condiciona certas regularidades da política externa brasileira em tempos históricos diferentes, não indicamos uma determinação geográfica em sentido ratzeliano, ou seja, uma relação causal irrecorrível. O alinhamento com os Estados Unidos não era a única opção de Rio Branco, assim como a postura de «afastamento» mais recente (em Lula) também não o era, como demonstra o alinhamento do Governo do Presidente Jair Bolsonaro. Porém, o que se observa com regularidade é a presença obrigatória dessa opção, em relação à qual a política externa brasileira teve sempre que se posicionar.
A gênese dessa circunstância é histórica, mas uma história de longa duração condicionada geograficamente, e localiza-se no estabelecimento da esfera de influência ou hegemonia norte-americana - como potência continental e depois mundial - no hemisfério ocidental, cuja origem remonta à Mensagem Monroe de 1823. O pan-americanismo republicano e a «aliança não escrita» de Rio-Branco (perfeitamente adequados ao contexto político interno de então) foram formas de resposta a tal circunstância, dadas a partir do contrapeso das variáveis presentes nas escalas regional (platina) e mundial (imperialista). Em síntese, um alinhamento hemisférico (com os Estados Unidos) para «enfrentar» as ameaças internacionais e regionais.
A marca da circunstância geográfica em nossa política externa é mostrada pela repetição de certos «padrões políticos», ou melhor, de certas linhas operacionais de política externa que, porque condicionadas por tais fatores, acabam repetindo fórmulas semelhantes. A política de «círculos concêntricos», implementada no governo do Presidente Castello Branco, em meados da década de 1960, pelo chanceler Vasco Leitão da Cunha, é um exemplo bastante claro47: o «primeiro círculo» (de menor «raio»), prioritário, englobava os países vizinhos e, por extensão, a América do Sul; o «segundo círculo», por sua vez, compreendia as relações com os Estados Unidos, mas no contexto da Guerra Fria, que condicionava fortemente e, diríamos, diluía o que poderia ser um «terceiro círculo», mais amplo, mundial ou «universalista»48. Como se vê, nada mais que o esquema de níveis escalares embutidos, o regional no hemisférico. Este exemplo foi usado por Ortega49, considerando que, nesses termos, seria possível pensar em uma política de círculos concêntricos (cada círculo correspondendo a um nível de escala) já em Rio Branco.
Com Getúlio Vargas, por exemplo, em seu primeiro governo na década de 1930, e em função da variação da referência contextual da escala mundial e da mudança do quadro interno, outras opções se abriam, de maneira a propiciar sua «política pendular», ou atuação de equilíbrio entre imperialismos50. Com Lula, a condução ao governo de forças no mínimo «fortemente desconfiadas» da potência hegemônica, em um quadro internacional bastante diferenciado daquele do período da Guerra Fria (em que as opções eram poucas), volta-se a caracterizar, no entanto, como foi mostrado. O forte condicionamento entre os níveis regional e internacional, por um lado, e o hemisférico (relação com os Estados Unidos), por outro, em que o que se vê é a busca de apoios nos dois primeiros para «enfrentar» o segundo ou, como diz Danese51, construir «coalizões de poder de que o Brasil procura participar para se proteger e projetar o seu poder nacional».