Introdução
Contradições internas - desigualdade social, poluição, protestos - levaram a liderança do Partido Comunista Chinês (PCC) a enveredar por um caminho que ficasse marcado por uma maior harmonia social e um desenvolvimento económico mais sustentável. A concretização política e ideológica desta procura por modelos de desenvolvimento mais sustentáveis é a civilização ecológica, um conceito recente e alvo de diferentes interpretações, como veremos.
Verificando os debates em torno do conceito procuraremos responder à pergunta: Qual o significado deste conceito na República Popular da China (RPC)? Através desta questão procuraremos, ainda, aferir a hipótese deste conceito adquirir uma faceta transformadora, representando algo de novo, ou se o mesmo reflete uma continuação do processo de desenvolvimento traçado pelo PCC.
A partir de uma revisão da literatura e da análise de fontes primárias - documentos oficiais - e fontes secundárias iremos explorar o aparecimento histórico deste conceito, analisando o discurso oficial e trazendo ao debate autores com visões distintas sobre a ideia e a sua respetiva implementação.
O artigo encontra-se, assim, dividido em três secções. Na primeira, iremos abordar um pouco da história e teoria do conceito, bem como rever a literatura existente sobre o tema. Na segunda secção, procuraremos contextualizar a situação nacional da China. Na terceira parte do artigo, iremos abordar os diferentes debates de forma que seja possível responder à nossa questão de partida.
História, teoria e revisão da literatura
Verificamos, através de Arran Gare, que nos primórdios da Revolução de Outubro já existia uma corrente de pensamento ecológico no seio do Partido Bolchevique1. Associada ao movimento cultural Proletkult - da década de 1920 -, esta corrente de pensamento ecológico alertou para a excessiva mecanização da natureza e dos efeitos que as intervenções humanas sob a mesma poderiam ter. Os planos quinquenais, a industrialização e a coletivização a que se assistiu posteriormente acabaram por eliminar estas preocupações do seio do Partido Bolchevique, ou, pelo menos, relegá-las para um plano que considerasse o momento histórico que se vivia.
Importa realçar que o nome «civilização ecológica» é a tradução chinesa para «cultura ecológica», o termo originalmente utilizado na União Soviética e que foi inicialmente mencionado na década de 1970 por diferentes autores que tratavam a relação entre a humanidade e a natureza, apelando, nos seus trabalhos, a uma nova conceção que não olhasse para os recursos naturais como existindo apenas para satisfazer as necessidades humanas2.
Posteriormente, durante o período da Perestroika, existe um certo revivalismo desse pensamento ecológico oriundo dos primeiros tempos da Revolução de Outubro. Ivan Frolov, conselheiro de Gorbachov e mais tarde editor do importante jornal Pravda, argumentaria que para se ultrapassar a crise ecológica global seria necessário passar do antropocentrismo para o biosferocentrismo, ou, por outras palavras, o desenvolvimento sustentável.
O conceito de civilização ecológica, no contexto da China, foi primeiramente usado em 1984 por Qianji Ye, num artigo publicado numa revista da antiga União Soviética. A aceção moderna do conceito, contudo, só começou a ser formulada por volta de 2006, numa altura em que a China se debatia - ainda o faz - com graves problemas ambientais3.
A civilização ecológica no contexto da RPC nasce na sequência de um conjunto de iniciativas políticas, nomeadamente o reconhecimento, por parte do PCC, de que graves desequilíbrios assolavam a sociedade chinesa e, como tal, havia que promover um modelo de desenvolvimento mais harmonioso. A consequência ideológica foi o aparecimento tanto do «olhar científico sobre o desenvolvimento», como do conceito de «sociedade socialista harmoniosa».
O socialismo com características chinesas é um termo que serve para designar o pensamento, ou o conjunto de pensamentos, que guiam o PCC e o Estado chinês. Cada geração de líderes deixa, sob a forma de elaborações teóricas, o seu legado. Foi assim com Mao Tsé-Tung e tem sido assim até aos dias de hoje. Historicamente, o termo ganhou notoriedade durante a liderança de Deng Xiaoping, mas foi Mao Tsé-Tung um dos primeiros a referir a ideia, ou, pelo menos, o esboço da mesma, num dos seus livros mais famosos - Sobre a Nova Democracia -, em que dá a entender que a revolução chinesa deveria cumprir o papel que a burguesia nunca cumpriu, nomeadamente o de romper os traços de feudalismo e de modernizar a economia.
Posteriormente, o PCC, já sob a liderança de Deng Xiaoping e pela mão de diferentes teóricos e do próprio líder histórico - o «pai» das reformas de mercado -, reconheceu que a China ainda se encontrava francamente atrasada em termos de desenvolvimento e que tal como no comunismo existem etapas, no socialismo também poderiam existir4. Daqui nasce a ideia, ainda hoje em vigor, da fase primária do socialismo, como disse Wen Jiabao: «A China está no estágio primário do socialismo e assim permanecerá por muito tempo. O estágio primário significa um estágio de subdesenvolvimento, que se manifesta, antes de mais nada, no baixo nível das forças produtivas.»5 Como nos mostra Xin, atualmente o SCC procura responder a um conjunto de desafios, nomeadamente o do desenvolvimento e a forma que este assumirá6. É neste contexto teórico que deverá ser enquadrada a civilização ecológica.
Qual a relação entre marxismo, socialismo com características chinesas e civilização ecológica? Encontramos na seguinte ideia um bom ponto de partida para responder a uma questão que mereceria atenção própria:
«Uma formação social complexa é aquela que se comporta de forma ativa diante da conjuntura econômica internacional e se vê diante de diferentes formas de produção interna que transitam de acordo com o contato entre as leis econômicas da própria formação social com as leis econômicas do centro do sistema em seu tempo. A grande indústria pode ser produto do financiamento externo e a pequena produção mercantil pode se transformar em indústria em concordância com os impulsos da superestrutura. A economia de mercado, como produto histórico das relações entre homem e natureza, é o termômetro do processo de desenvolvimento a partir do desmanche da economia voltada à subsistência (economia natural) e a entrada de seus integrantes na lógica da especialização, da concorrência, da economia de mercado em si. Sob o socialismo, a lei da correspondência entre superestrutura e base econômica deve obedecer a esta dinâmica»7.
Acrescenta Jabbour que
«[o]caráter socialista de uma formação social complexa não reside no tamanho e na extensão da propriedade privada e sim no que é dominante: caráter de classe do poder político, o controle dos meios estratégicos de produção e a detenção dos instrumentos estratégicos do processo de acumulação (câmbio, crédito, juros e sistema financeiro), além do monopólio sobre o comércio exterior»8.
Seria pertinente, nesta revisão da literatura, começar por referir o trabalho de Pan Yue que é considerado uma figura importante na divulgação do conceito e na sua concretização política9. Em 2006, o jornalista - que viria a ser vice-ministro para o Ambiente e que atualmente ocupa o cargo de vice-presidente da Academia Central do Socialismo em Pequim - publica um conjunto de artigos que apontam para uma visão romântica e transformadora do conceito. Argumenta o autor que é uma necessidade histórica a China não cometer os erros do Ocidente e de encontrar novas formas de desenvolvimento. Aponta, aliás, para um reencontro com o passado - referindo as filosofias do confucionismo e taoísmo - não num sentido reacionário, mas sim como uma possibilidade transformadora com vista à harmonização social e ao desenvolvimento sustentável.
Gare, contrariando a visão de Jabbour, acima referenciado, acredita que a China é de momento um Estado capitalista responsável por um aumento brutal das desigualdades e da destruição ambiental10. Acrescenta que a China é melhor compreendida como sendo uma economia capitalista a atravessar uma fase de acumulação primitiva, com o Estado a servir os interesses da burguesia. Apesar da caracterização oposta a Jabbour, ambos os autores confluem na questão de que a China ainda se encontra numa fase de acumulação e desenvolvimento das forças produtivas, uma visão, aliás, que nem o próprio PCC nega. Para Gare, a civilização ecológica é uma oportunidade para a China encontrar um modelo de desenvolvimento que rompa com o capitalismo, mas que para tal é necessário que haja uma mobilização popular e a reorientação política do Estado. O artigo faz ainda referência à chamada «Nova Esquerda» na China, em especial a Wang Hui11, tido como um dos representantes deste movimento que nasceu em resposta à expansão da ideologia neoliberal e das práticas capitalistas no país asiático. Seria interessante, por exemplo, entender qual o impacto da Nova Esquerda no seio da política institucional, mas também na contestação social que existe na China.
Magdoff, seguindo uma linha de pensamento semelhante à de Gare, critica o capitalismo e a sua incapacidade de oferecer condições materiais que permitam o desenvolvimento, já que este sistema promove o individualismo, a desigualdade e a guerra12. Para este autor, o conceito de civilização ecológica equivale a socialismo, isto é, a economia sob o controlo popular e a economia que deve servir os interesses populares e manter a proteção ambiental. Apesar de ambos os autores oferecerem uma análise detalhada dos problemas que assolam a China e de ser pertinente a chamada de atenção para tais questões, a ausência de resposta para a questão central - o desenvolvimento num ambiente interno e externo marcado por contradições - é algo que deveria ser considerado como uma falha ou como um ponto que poderia ser mais bem trabalhado.
O novo movimento de reconstrução rural, defendido por Tiejun et al., é também um exemplo de construção teórica que pode ser enquadrado no panorama da civilização ecológica e que oferece uma resposta, com resultados práticos, à questão do desenvolvimento, nomeadamente o desenvolvimento rural13. Os autores deste movimento criticam a dependência excessiva da China em relação a modelos de desenvolvimento oriundos do Ocidente. Em alternativa defendem um modelo que combine o desenvolvimento, a proteção ambiental e políticas de base, bem como a retenção de pensamento indígena na área agrícola. Na mesma linha de pensamento, observamos em Wang et al. uma crítica ao antropocentrismo e à divinização do crescimento económico14. Argumentam que os problemas associados a esta cegueira devem ser invertidos recorrendo a uma reorientação do sistema político e económico15. Lu et al. consideram que a civilização ecológica na China está distante de uma visão transformadora, mas, ao mesmo tempo, reconhecem os avanços dados pelo Governo de Xi Jinping16. Sobre esta questão, Yin e Zhang consideram que a civilização ecológica é uma nova etapa e representa uma continuação da aplicação do marxismo às condições materiais da China17. Esta linha de pensamento, contrastante com as anteriores que veem o capitalismo existente na RPC como uma capitulação, considera que o desenvolvimento económico, fazendo uso do mercado, da iniciativa privada e de outras leis neoliberais em nada invalida a construção socialista. Pelo contrário, auxilia a mesma através da criação de riqueza e do progresso.
Outros autores, como Hansen et al., trazem ao debate a representação institucional do conceito18. É particularmente relevante a ideia de que a civilização ecológica, oficialmente, é uma ideia tecnocrática que visa combinar desenvolvimento tecnológico com políticas ambientais. É considerada a questão do impacto global desta nova política, sendo afirmado que os inícios contraditórios do conceito foram superados e que, atualmente, a China pretende projetar a sua visão para o restante globo. No fundo, o Estado chinês foi capaz de pegar num conceito vago e de fazer a necessária ponte entre a história milenar da China - através do confucionismo - e de integrar esses valores no socialismo com características chinesas dando-lhe vitalidade e projeto de futuro. Geall e Ely, ao analisarem a narrativa do conceito, consideram que a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris criou um vazio em termos de liderança global no combate às alterações climáticas, um vazio que a China poderá querer preencher e que, sobretudo, pode fazer19.
O debate em torno do conceito é recente, mas parece que se começam a traçar duas «escolas» de análise distintas. A primeira adota uma postura de transformação social e vê a civilização ecológica como uma oportunidade de reestruturar a sociedade. Autores como Arran Gare, Fred Magdoff, Phillip Clayton ou Wen Tiejun poderão ser enquadrados nesta linha de pensamento. A outra corrente ideológica, mais ligada às instituições do Estado chinês, enquadra a civilização ecológica como uma nova etapa no socialismo com características chinesas. Longe de ser um pensamento disruptivo, a concretização política da ideia deverá ser potenciadora da harmonia social e ambiental.
A situação nacional
Num artigo publicado na revista Qiushi - órgão do Comité Central do Partido Comunista da China - Xi Jinping afirmou que, para a China se continuar a desenvolver teria de reinventar o seu modelo de desenvolvimento20. A afirmação foi feita num contexto em que Xi Jinping alertava para a necessidade de preservar os ecossistemas, pois sem esta preservação ambiental o próprio processo de desenvolvimento ficaria comprometido.
Como refere Yuan, a primeira lei que visava regulamentar o meio ambiente foi publicada em 1973 e, consequentemente, a partir dessa data começou-se também a estabelecer a monitorização da qualidade do ar, da terra e da água21. Uma prática que se foi expandido ao longo do tempo. Contudo, até mais recentemente as políticas ambientais estiveram sempre dependentes dos objetivos económicos, nomeadamente o desenvolvimento das forças produtivas e o aumento do bem-estar material. Tsang e Kolk argumentam que a existência de objetivos económicos, definidos a nível central, aumenta a pressão dos governos locais, fazendo com que a proteção ambiental seja relegada para um plano inferior22.
Concretamente, quais são os grandes desafios para a China no plano ambiental? Importa ressalvar que nenhum dos desafios é exclusivo da China, mas acabam por ter uma especial incidência neste país fruto de opções políticas e económicas. Identificámos como sendo os principais desafios, em termos ambientais, a proteção da qualidade do ar, do solo e das águas. A estas questões devemos interligar a questão energética, nomeadamente a estrutura energética do país e as suas necessidades, bem como o desenvolvimento económico e social.
Um bom ponto de partida - mas não o suficiente, pois, como qualquer fonte oficial, esta também requer uma análise cruzada com outras fontes - são os relatórios anuais que o Ministério da Ecologia e Meio Ambiente publica23. O mais recente, datado de 2020, aponta para um melhoramento da qualidade do ar, da água e do solo ao mesmo tempo que identifica um conjunto de problemas e de insuficiências, nomeadamente o facto de o Index Ecológico se apresentar a 51,3, o que, segundo os especialistas, é medíocre e abaixo dos 55, o limite mínimo para que possa ser considerado bom. À semelhança dos anteriores relatórios, é um documento que resume o que foi alcançado, aponta as insuficiências e enumera medidas a tomar ou que já foram tomadas. De destacar a referência ao conceito de civilização ecológica e a importância de construí-la, bem como a iniciativa Nova Rota da Seda que inclui também uma componente ecológica e internacional, com a construção de uma rede global para a proteção ambiental.
Uma observação mais pormenorizada mostra uma análise da poluição do solo causada por atividade industrial e agrícola24. O artigo analisa as áreas do território mais afetadas pela poluição, relacionando as consequências da mesma para a saúde pública, o que nos permite ter uma ideia justificada factualmente sobre a situação. Zeng et al. traçam uma análise semelhante sobre a poluição do ar, apontando que a poluição é uma consequência natural da industrialização e que, apesar de algum sucesso em tornar a aumentar a qualidade do ar, a continuação desse processo de melhoramento exigirá o desenvolvimento de novas medidas e tecnologias, de forma que haja um equilíbrio entre crescimento económico e proteção ambiental25. No mesmo sentido, Wang e Yang analisaram os efeitos que a poluição da água tem na saúde física e mental das populações afetadas, acrescentando que este problema tende a ser mais sentido pelas camadas populacionais de menor rendimento26.
Além das questões concretas, aqui referidas, é importante mencionar, também, a contestação social no seio da China - em particular os protestos contra a poluição e a desigualdade social - como fator que pode ajudar a compreender esta reorientação política. Zhou refere que entre janeiro de 2000 e setembro de 2013, de todos os protestos realizados cerca de metade estavam relacionados com questões ambientais, o que pode incluir protestos contra a poluição, mas também protestos contra a construção de projetos considerados danosos para as populações ou contra a expropriação de terras27. Como é evidenciado por outro trabalho, a questão da terra e da sua propriedade tem um potencial disruptivo em relação ao poder do PCC28. Ainda em relação a esta questão, há análises que relevam a importância que os protestos ambientalistas têm tido na China, nomeadamente a considerável adesão por parte da população e o potencial que estas causas têm para se tornarem numa série ameaça ao PCC29.
Não sendo possível fazer uma análise exaustiva sobre o impacto que esta nova política tem tido na China, queríamos destacar algumas ideias. Por um lado, que as zonas mais pobres da China são aquelas onde a proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável têm menos aceitação e, como tal, onde também os resultados são menos positivos30. Por conseguinte, o Estado chinês terá de saber compensar as zonas que estão neste momento dependentes de atividades económicas que poluem excessivamente ou contribuem para a destruição ambiental, como a extração de carvão. Por outro lado, apesar do discurso oficial apontar para um melhoramento generalizado da situação, os dados a nível nacional ainda estão aquém do necessário31, o que sugere a implementação de medidas adicionais.
Civilização ecológica: debates e perspetivas
Como referimos, é só em 2006 que o conceito começa a ganhar alguma notoriedade. Esta preocupação com a sustentabilidade vem na sequência da chegada ao poder de Hu Jintao. Em 2003, e após uma visita de inspeção à província de Jiangxi, anuncia o conceito de «olhar científico sobre o desenvolvimento», que já apontava para a necessidade de estabelecer um outro tipo de relação entre a natureza e as atividades inerentes ao desenvolvimento económico32. Outra das ideias-chave, e um legado de Hu Jintao, é a sociedade harmoniosa ou sociedade socialista harmoniosa, que, no fundo, acaba por complementar o conceito anterior. O ponto a reter é o foco na harmonia, ou seja, trata-se de construir uma sociedade com menos desequilíbrios a todos os níveis.
Pan considera que a civilização ecológica marca um novo paradigma na história da humanidade33. À civilização agrícola, caracterizada por baixa produtividade, sucedeu a civilização industrial, com a aceleração da produtividade e a inovação científica e tecnológica. A civilização ecológica é caracterizada por alta produtividade, desenvolvimento científico e uma sociedade mais harmoniosa em todos os aspetos.
A visão oficial deste conceito e proposta política acaba por incorporar uma crítica ao modelo ocidental de desenvolvimento, aos excessos do capitalismo, mas corresponde também a uma visão pragmática de desenvolvimento que reconhece a necessidade de continuar com o crescimento económico recorrendo, sobretudo, à inovação tecnológica e científica.
No relatório apresentado ao 19.º Congresso do PCC, Xi Jinping mencionou várias vezes a civilização ecológica (shentai wenming, em mandarim), referindo que a China se tornou «num importante participante, contribuinte e portador da tocha no esforço global por uma civilização ecológica»34. Numa outra passagem, o Presidente chinês incide sobre o tipo de sociedade que a China almeja construir, afirmando que
«a modernização que procuramos é caracterizada por uma harmoniosa coexistência entre homem e natureza. Além de criar mais riqueza material e cultural para atender às necessidades cada vez maiores das pessoas por uma vida melhor, precisamos também de fornecer mais produtos ecológicos de qualidade para atender às crescentes exigências por um bom meio ambiente.»35
Na revisão da Constituição, feita em 2012 por ocasião do 18.º Congresso do PCC, foi acrescentado um parágrafo que, entre outras coisas, referia a necessidade preservar o meio ambiente como forma de garantir um desenvolvimento sustentável36. Xi Jinping referiu mais recentemente, por ocasião do 19.º Congresso, a necessidade de encontrar um modelo de desenvolvimento sustentável que seja capaz de aumentar a qualidade de vida das pessoas, mas protegendo os ecossistemas.
A civilização ecológica agrupa em si várias ideias e toca em áreas que vão além da preservação ambiental, e que têm relação direta com esta. Em primeiro lugar, quando Xi Jinping refere a necessidade de reduzir a intensidade energética, de promover uma economia com baixas emissões de CO2 e de desenvolver energia limpa está obviamente a defender o meio ambiente, mas está também a colocar a questão da energia no centro - e isto como forma de reduzir a dependência energética do país face ao estrangeiro37 - e a situar a China na vanguarda da inovação tecnológica no campo das energias renováveis.
Em segundo lugar, a civilização ecológica é a continuação do desenvolvimento. Um desenvolvimento que tem em vista os Dois Centenários e que tem como objetivos centrais a construção de uma sociedade moderadamente próspera em 2021 e, mais tarde, em 2049, uma sociedade socialista moderna. Este desenvolvimento deverá tirar partido da inovação tecnológica de forma que o crescimento económico não seja apenas quantitativo, mas sobretudo qualitativo.
Por fim, a civilização ecológica tem também uma componente social. A linguagem associada ao conceito faz vários apelos à harmonia entre o homem e o meio ambiente, mas também nas relações sociais. E isto poderá ser visto como uma resposta à crescente insatisfação que se vinha fazendo sentir na sociedade chinesa em relação à desigualdade social, mas também em relação à destruição do meio ambiente.
A produção teórica na China em relação a este conceito não se esgota no que é publicado pelo PCC e pelo Estado chinês. Diversos autores têm dado contribuições sobre o tema. Deste modo, seria pertinente analisar a diferença de discurso entre as visões oficiais e as de outros autores, procurando confrontar ideias, encontrando aproximações e divergências.
Na nossa revisão da literatura, mencionámos as obras de Arran Gare ou Wen Tiejun como exemplos de interpretações diferentes da visão oficial preconizada pelo PCC. Nos documentos oficiais, encontramos a civilização ecológica como uma nova etapa no longo processo de desenvolvimento. Vimos, também, que o conceito poderá adquirir uma faceta de cariz revolucionário. John Bellamy Foster considera que a civilização ecológica não poderá ser apenas uma questão tecnocrática e que deverá exigir a construção de novas formas de viver38. É exatamente sobre esta questão - o modo de viver - que Wang et al. procuram refletir. Partindo da constatação de que tanto os países capitalistas como os socialistas (União Soviética e China) tiveram ou têm graves problemas ambientais, os autores questionam se o problema não será a própria modernidade39. Observações que nos poderão levar a recordar o próprio pensamento de Walter Benjamin sobre a não linearidade da história e sobre como o materialismo dialético não deve ser algo estanque. Isto é, para os autores, a China não deverá concluir a modernização e só depois pensar em corrigir os erros. A modernização é a correção de erros, sim, mas é também a oportunidade de desbravar novos caminhos que permitam a harmonização social e ambiental.
A questão central continua a ser o desenvolvimento e o modelo a seguir. A civilização ecológica, como conceito global para um novo tipo de sociedade, presta particular atenção às questões do ambiente e de bem-estar social. Esse é um dado adquirido, independentemente de ser a visão oficial ou a de autores que não estão ligados ao PCC. A grande divergência ocorre a partir do momento em que se centra a questão no modo de atingir tais objetivos. Referimos, aqui, perspetivas que criticam o capitalismo e a adoção, por parte da China, da modernização com cunho ocidental, isto é, capitalista. Estes autores partem de uma perspetiva que rejeita o capitalismo como passo necessário para o socialismo e por consequência para a solução dos problemas.
Por outro lado, a visão oficial e a de outros autores, como Elias Jabbour, colocam o problema de uma outra maneira. A solução dos problemas ambientais e sociais passa sobretudo pelo crescimento quantitativo das forças produtivas. Isto é, o Estado chinês deverá continuar a capacitar-se para enfrentar os desafios internos, num ambiente externo que se mostra, em certa medida, cada vez mais hostil. E importa mencionar que a China ainda tem um longo caminho a percorrer, como as autoridades admitem, em termos de modernização. As visões mais radicais, se assim as quisermos apelidar, acabam por não dar uma resposta concreta aquilo que é central, ou seja, o desenvolvimento. De um ponto de vista teórico, poderá ser um exercício interessante criticar a China por ter relações de produção capitalistas e por seguir uma modernização que causou graves desequilíbrios ambientais e sociais. É certamente importante que não se percam estas questões de vista, mas estes autores acabam por não dar resposta à questão do desenvolvimento. De igual maneira, a China dispõe de recursos materiais e forças produtivas que objetivamente lhe dão condições para continuar o desenvolvimento de uma forma mais sustentável, pelo que as preocupações demonstradas são também elas justas.
Os trabalhos analisados até aqui espelham, sobretudo, estas duas visões, as quais, apesar de diferentes, não são inteiramente antagónicas. Há um consenso em relação à necessidade de preservar o meio ambiente e de encontrar um modelo de desenvolvimento mais sustentável. Parece-nos que considerar a civilização ecológica como um conceito revolucionário é fugir à verdade em relação ao que ele representa, oficialmente, na China. As críticas ao capitalismo, à modernidade inspirada no Ocidente e ao antropocentrismo não estão necessariamente presentes em todos os documentos oficiais, mas ainda assim é possível encontrar palavras que apontam nesse sentido. Xi Jinping referiu, no relatório ao 19.º Congresso do PCC, que a modernização na China é caracterizada pela harmonia entre a humanidade e a natureza. Sem referir diretamente o capitalismo ou a modernidade ocidental, o Presidente da China acaba por afirmar que a China não irá percorrer esse caminho, pois o mesmo é incompatível com a tal harmonização desejada.
Mais do que um conjunto de políticas ambientais, a civilização ecológica é um movimento que busca criar uma sociedade harmoniosa através da eliminação da pobreza, fomentando a democracia, o desenvolvimento científico e tecnológico e a redução progressiva das desigualdades. É claro que não poderemos esquecer que a estrutura para atingir esses objetivos não mudará no futuro previsível. Uma economia de mercado planeada - o Estado continua sendo um fator decisivo na economia - com relações de produção capitalistas ainda é a realidade da China. Assim como a sua condição de país em desenvolvimento que enfrenta profundas ameaças internas e externas. Talvez essas mesmas ameaças sejam também uma força motriz na busca da RPC pela sustentabilidade. Talvez a sustentabilidade também deva ser entendida como uma busca pela independência e segurança nacional.
Conclusões
A partir da nossa questão de partida procurámos, sobretudo, analisar os principais debates em torno do conceito de civilização ecológica. Consideramos que este conceito é hoje mais que uma teoria ou um conjunto de teorias. Trata-se de um conceito que foi recentemente inscrito na Constituição do Estado chinês, demonstrando a importância que a China atribuiu ao desenvolvimento sustentável. É, pois, algo com aplicação concreta na sociedade chinesa.
Procurámos, através desses debates, confrontar ideias e buscar diferenças, mas também aproximações. De um ponto de vista prático, é certamente da maior relevância analisar aquilo que as fontes oficiais nos dizem sobre o conceito e sobre a sua aplicação. Dizem-nos, pois, que a China continuará a necessitar de se modernizar e desenvolver. Que esse desenvolvimento deverá tirar partido, cada vez mais, da inovação tecnológica e que o mesmo terá de criar condições para que as gerações futuras tenham a capacidade de viver. A civilização ecológica nasce como resposta a um conjunto de desafios de ordem interna e externa, desafios que, deixados ao abandono, teriam um potencial disruptivo.
Existem perspetivas, como aqui demonstrámos, que conceptualizam a civilização ecológica como um ponto de partida para caminhos de transformação social. A partir de críticas ao capitalismo e à modernidade, estas fazem apelos para que se preserve o ambiente e se criem condições para o aparecimento de novas formas de viver. As questões apontadas por grande parte destes trabalhos são inteiramente válidas e o próprio Estado chinês reconhece os problemas inerentes a um modelo de desenvolvimento que privilegiou o crescimento económico. A questão, contudo, é que, na ótica do Estado chinês, os meios acabam por justificar os fins. O crescimento quantitativo das forças produtivas tem permitido, e deverá continuar a permitir, que se façam melhoramentos significativos na qualidade de vida dos cidadãos numa perspetiva de desenvolvimento sustentável.
Assim, sendo a civilização ecológica uma política de harmonização social e desenvolvimento sustentável, a mesma deverá ser analisada num contexto mais geral de construção do socialismo com características chinesas e não como algo que nasceu à parte e que pretende substituir a ideologia do PCC.