A promoção da paz internacional no século XXI encontra-se profundamente ligada à implementação das operações de manutenção da paz das Nações Unidas. De fato, ainda que essas operações não estejam expressamente previstas na sua Carta constitutiva, a presença dos «capacetes azuis» em cenários de conflito consolidou-se como um instrumento central à disposição do Conselho de Segurança para a manutenção da paz e da segurança internacionais. Nesse contexto, ao longo dos mais de 75 anos de existência das Nações Unidas, houve um processo de progressiva naturalização do uso dessas operações como forma de atender aos objetivos dessa organização. Assim, os debates sobre a manutenção da paz internacional no Conselho de Segurança muito frequentemente dizem respeito a decisões sobre a condução de operações de paz, o que inclui, entre outros, discussões procedimentais sobre o mandato e a duração dessas operações. Dessa forma, a agenda de promoção da paz, que requer um entendimento multidimensional das causas dos conflitos contemporâneos, frequentemente é tratada a partir de uma abordagem reducionista que prioriza o debate sobre a implementação de operações de paz.
Ao trazer uma abordagem crítica sobre esse contexto, a obra de Ramon Blanco, Peace as Government: The Will to Normalize Timor-Leste, oferece uma oportunidade de «desnaturalizar o natural», nas palavras do autor, de forma a analisar as operações de paz como parte de dinâmicas de poder mais amplas, que organizam a sociedade internacional de acordo com preceitos liberais. Por meio de uma análise profunda sobre a atuação das Nações Unidas no contexto do Timor Leste, o autor oferece um olhar crítico tanto para o rationale de paz que orienta a atuação da sociedade internacional nessa matéria quanto para os instrumentos por ela utilizados para a operacionalização desse rationale.
Nesse contexto, o Timor Leste constitui um caso paradigmático para a promoção de uma análise crítica sobre as operações de paz contemporâneas. De fato, segundo Blanco, o Timor Leste não apenas recebeu uma ampla variedade de operações de paz das Nações Unidas1, mas também foi posteriormente considerado como um caso de sucesso relativamente ao envolvimento das Nações Unidas em contextos de pós-conflito. Assim, o caso escolhido apresenta alta relevância para um entendimento alargado sobre a lógica de atuação da ONU por meio das operações de paz, haja vista que possibilita uma análise crítica sobre os limites desse entendimento de sucesso.
Para analisar o caso escolhido, o autor mobiliza ferramentas teóricas trazidas tanto pela Escola Inglesa quanto por Michael Foucault. Enquanto a Escola Inglesa possibilita a compreensão da sociedade internacional como um ambiente de compartilhamento de valores liberais, a abordagem foucaultiana oferece conceitos que permitem analisar os mecanismos de consolidação desses valores em âmbito global. Assim, ainda que, segundo Blanco, essa combinação teórica possa ser considerada excêntrica, dado que as duas abordagens ensejam importantes diferenças epistêmicas, esse enquadramento analítico possibilita descortinar as engrenagens que fazem funcionar o sistema internacional. Assim, com esse arcabouço teórico, a obra permite, nas palavras do autor, «ampliar o espectro do visível» sobre as dinâmicas profundas que regem a ordem internacional contemporânea, na medida em que situam as operações de paz como um dos dispositivos que permitem o seu funcionamento.
Para tratar o tema, o autor utiliza uma abordagem metodológica qualitativa, que incluiu tanto uma extensa pesquisa de arquivo quanto a realização de trabalho de campo, fundamentado na observação direta e na realização de entrevistas em profundidade com atores envolvidos no processo. Nesse contexto, o argumento principal avançado pelo autor é o de que as operações de paz exercem, no contexto internacional, a função de garantir a manutenção da ordem liberal. Segundo Ramon Blanco, essa ordem internacional pauta-se por valores e princípios liberais, e os Estados que apresentam uma aderência limitada a esses preceitos liberais são percebidos como desajustados, anormais ou, ainda, «Estados falidos» - falidos na medida em que não conseguiram agir no plano internacional da mesma maneira que os Estados liberais, considerados normais. Dessa forma, a sociedade internacional encontra, no racional liberal, um guia que possibilita tanto i) diferenciar os Estados normais - que seguem preceitos liberais - dos Estados anormais - que apresentam desalinhamentos a esses preceitos; ii) justificar o desdobramento, no contexto de países considerados anormais, de mecanismos para a correção desses desalinhamentos, como é o caso das operações de paz.
De acordo com a análise de Ramon Blanco, Estados considerados anormais são percebidos pela sociedade internacional como uma ameaça ao funcionamento da ordem global. Em decorrência desse fato, a correção dessa situação passa a ser concebida como uma necessidade urgente para a preservação da ordem internacional. Para compreender esse contexto, o autor mobiliza dois conceitos-chave da caixa de ferramentas foucaultiana, nomeadamente, as noções de «normalização» e de «dispositivo»: enquanto a normalização busca trazer os Estados anormais a uma situação de normalidade, os dispositivos são precisamente as ferramentas que viabilizam a formatação das condutas dos Estados de acordo com as formas (liberais) desejadas. Assim, segundo Blanco, a percepção de que determinados Estados, considerados anormais, constituem ameaças à ordem internacional, é utilizada como justificativa para a implementação de processos de «normalização», nos quais esses Estados são submetidos a «dispositivos» que buscam moldar suas condutas de acordo com valores liberais.
Com base no caso do Timor Leste, Blanco mobiliza amplas evidências para sustentar seu argumento de que as operações de paz podem ser compreendidas como dispositivos que permitem a normalização da conduta dos Estados anormais. De fato, as operações de paz englobam um rol de mecanismos capazes de orientar o comportamento de Estados e populações de acordo com os valores liberais que pautam a sociedade internacional. Assim, o enquadramento teórico proposto possibilita uma reflexão crítica sobre o desenho e a implementação das operações de paz no mundo contemporâneo, haja vista que oferece uma lente analítica que explica não apenas o perfil (anormal) dos Estados que recebem as operações de paz, mas também elucida o propósito que fundamenta o desenho dessas operações - preservar valores liberais.
Segundo o autor, o processo de normalização de Estados envolve tanto a orientação da conduta dos Estados no plano internacional quanto no âmbito da interação entre os Estados e suas respectivas populações. Esse processo dialoga, portanto, com a noção de biopolítica, que, de acordo com Blanco, se refere à administração e ao controle dos processos necessários à sobrevivência da população de um determinado Estado. Nesse sentido, Blanco reforça que as operações de paz contemporâneas podem ser, em larga medida, associadas a uma lógica de construção de Estados (state-building). De fato, de acordo com o autor, o processo de construção de Estados busca não apenas promover a consolidação de instituições estatais, mas também regular as relações entre Estados e sociedades. Considerando que esse é precisamente o caso do engajamento da ONU no Timor Leste, a análise desenvolvida pelo autor traz fartas evidências sobre o funcionamento do processo de normalização do Estado timorense, considerando a operacionalização de mecanismos de monitoramento, controle e supervisão implementados pelas Nações Unidas tanto com relação ao Estado timorense quanto com relação à população desse Estado. Nesse contexto, ao propor uma análise crítica, o autor possibilita um entendimento alargado desse engajamento, na medida em que permite aprofundar o debate sobre as dinâmicas de poder que fundamentam esse processo.
A exposição do argumento é desenvolvida em cinco capítulos principais. No primeiro capítulo, o autor analisa a evolução do processo de construção da paz no cenário internacional, com vista a problematizar a lógica liberal de paz que pauta as operações de paz no mundo contemporâneo. O capítulo 2 aprofunda o debate sobre as circunstâncias do caso do Timor Leste e o processo que levou o mesmo a ser considerado como uma necessidade urgente perante a sociedade internacional. O capítulo 3, por sua vez, discute o engajamento das Nações Unidas no Timor Leste, de forma a discutir as lacunas desse processo, com particular destaque para as falhas dessa organização em dialogar com as necessidades e a realidade da sociedade timorense. Por fim, enquanto o capítulo 4 aprofunda o delineamento dos mecanismos de vigilância que compuseram o processo de normalização do Timor Leste, o capítulo 5 aprofunda o debate sobre a forma pela qual as Nações Unidas operacionalizaram um Estado de governança no país, o qual envolveu tanto a condução do Estado timorense quanto das condutas de sua população.
Assim, a obra oferece uma contribuição fundamental para analisar os processos de paz contemporâneos, na medida em que promove uma reflexão crítica não apenas sobre seus mecanismos de operacionalização, mas sobre o rationale que fundamenta esses mecanismos. No mesmo sentido, a pesquisa possibilita a compreensão de que, ao se mostrar incapaz de dialogar com a realidade da sociedade timorense, a abordagem de paz empreendida pelas Nações Unidas apresentou fundamentos frágeis para a promoção da paz sustentável naquele país. Ao partir de um caso paradigmático para viabilizar uma reflexão profunda sobre as dinâmicas que regem a sociedade internacional contemporânea, o livro de Blanco constitui uma contribuição fundamental para um alargamento do debate sobre os significados e os caminhos adotados pela sociedade internacional para a promoção da paz no mundo contemporâneo.