Introdução
A expansão de movimentos de extrema-direita constitui um fenômeno global, com o surgimento e fortalecimento de inúmeras organizações, partidos e especialmente na conquista do poder em muitos países da Europa, América do Norte e América Latina, tal como evidenciado em período recente no Brasil. Nesse sentido, Robinson ressalta que:
«Trumpismo nos EUA, Brexit no Reino Unido, Bolsonaro no Brasil, a crescente influência de partidos neofascistas e autoritários em toda a Europa (incluindo Polônia, Alemanha, Hungria, Áustria, Itália, Holanda, Grã-Bretanha, Dinamarca, França, Bélgica e Grécia) e em todo o mundo, como Israel, Turquia, Filipinas, Brasil e Índia, representam uma resposta da extrema-direita à crise do capitalismo global»1.
Paralelamente a esse processo, observa-se em nível global a reemergência de discursos alinhados ao populismo, ao neofascismo, à xenofobia, à homofobia e ao racismo, disseminados no seio das sociedades, e traduzidos também no aumento da intolerância e violência contra grupos sociais minoritários2.
Cabe dizer que a ascensão da extrema-direita em nível global é tratada por inúmeros autores sob terminologias distintas, embora os sentidos atribuídos sejam muito convergentes, elemento que será discutido no decorrer deste artigo. Ora ela é tratada como extrema-direita, ora é denominada populismo, ora é referida como neofascismo, há quem a denomine neoliberalismo autoritário e frequentemente também é abordada por eles de forma híbrida.
Muitos autores refletem sobre as razões da ascensão da extrema-direita e suas relações com o modo de produção capitalista, discorrendo sobre o metabolismo do capital e sua dinâmica de reprodução cíclica, bem como sua relação com a fase neoliberal do sistema, discutindo profundamente sobre suas características e natureza e os seus princípios e modus operandi, tanto do sistema capitalista quanto de seu estágio neoliberal3.
«O capitalismo global está neste momento enfrentando uma crise orgânica, tanto estrutural quanto política [...]. Estruturalmente, o sistema enfrenta uma crise de superacumulação e se voltou para uma nova rodada de expansão violenta e muitas vezes militarizada em todo o mundo, em busca de novas oportunidades para descarregar o capital acumulado excedente e evitar a estagnação. Politicamente, o sistema enfrenta um colapso da hegemonia capitalista e crises de legitimidade do Estado. À medida que o descontentamento popular se espalhou, os grupos dominantes se voltaram para formas de governo cada vez mais coercitivas e repressivas em todo o mundo, tanto para conter esse descontentamento quanto para forçar a abrir novas oportunidades de acumulação por meio da intensificação do neoliberalismo»4.
Desse modo, sustentam que o principal determinante de tal ascensão decorre da necessidade que o próprio sistema possui de manutenção de sua reprodução, tal como referido por Shivji:
«O terreno para o declínio da democracia liberal foi preparado pelo próprio capitalismo monopolista. A grande burguesia monopolista não compra a democracia liberal. [...] porque vai contra a legitimação burguesa de seu sistema econômico, é o seu próprio sistema econômico que é responsável pelo declínio da democracia. Quando a democracia falha em administrar a crise do capitalismo, a grande burguesia recorre ao fascismo»5.
Ademais, em uma segunda camada de análise, comumente tratada como desmembramento do argumento anterior, ou por vezes abordada separadamente, situa-se o substrato que sustenta a ascensão de movimentos de extrema-direita. Essa ascensão, amplamente mencionada por autores como populista e, em menor medida, como fascista e neofascista, decorre da insatisfação das massas com as desigualdades sociais e econômicas acarretadas pelo neoliberalismo, o que as torna receptivas à adesão a governos populistas, autoritários ou fascistas, bem como à descrença nas formas de representação política6.
De fato, vários autores apresentam essa dimensão interpretativa e frequentemente fazem análises comparativas acerca da importância desses aspectos nas experiências de ascensão da extrema-direita/populismo/fascismo nos séculos XX e XXI, ainda que pontuem suas aproximações e diferenciações com o momento atual. Hadiz e Chryssogelos 7 de certo modo sintetizam essa reflexão, ao afirmarem a existência de semelhanças entre as reações populistas emergentes tanto em regiões avançadas como também em países com desenvolvimento econômico mais baixo, assinalando que essas reações representam respostas a duas questões distintas, mas interligadas: por um lado, a frustração com as formas de representação política e desigualdades econômicas; por outro, o desencanto com as promessas quebradas da modernidade liberal.
As desigualdades sociais geradas por esse sistema ao longo dos séculos, aprofundadas especialmente após a implantação da fase neoliberal, parecem ter gerado um desencanto e expropriado as sociedades de seus ideais humanitários e civilizatórios. No entanto, isso também revela o peso dos discursos e o quanto eles são capazes de impregnar o imaginário social de forma a induzir escolhas que subordinam os direitos humanos ao direito ao consumo.
Em verdade, desde 1989, com a queda do Muro de Berlim, os discursos parecem ter colonizado os imaginários em tal magnitude que o dito sistema ocupou o lugar do «triunfo», embora todos os dados indiquem a superacumulação e concentração de renda gerada notadamente após a expansão do capital financeiro no bojo do neoliberalismo. À medida que a acumulação foi ocorrendo, também as crenças nas formas de representação política e na própria democracia arrefeceram.
No Brasil, a ascensão da extrema-direita ao poder, plasmada na vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, também evidencia a referida crise e conduz cada vez mais a uma atmosfera tóxica, norteada por discursos de ódio e promoção da violência que se expandem sobretudo por meio de fake news. Sua campanha e gestão têm sido ancoradas na rejeição dos direitos humanos, na apologia à ditadura, ao golpe militar, à tortura e à violência, bem como na militarização da sociedade8.
Após três anos e meio de ascensão da extrema-direita ao poder no Brasil, os impactos sociais, políticos, econômicos, culturais e, por que não dizer, civilizatórios, são imensos. É notório que o país imergiu em processos que geraram profundas fraturas sociais e humanas, refletidas cotidianamente na cristalização de relações sociais permeadas pela intolerância, propagação do ódio e por expressivas formas de violência, especialmente contra as minorias, embora existam insuficientes dados científicos que permitam trazer à luz essa situação.
A escassez de informações talvez decorra do fato de ser um processo social recente e em fase de consolidação, como também pode ser atribuída à complexidade do fenômeno ou aos desafios epistemológicos, teóricos e políticos inerentes ao tema, além das dificuldades relativas ao registro de dados sobre violência contra as minorias no Brasil.
Nesse cenário, o lugar da diferença e diversidade política, epistemológica, sexual, cultural e artística se torna uma zona gris e imprecisa, quase um «não-lugar», uma espécie de «corpo estranho» indesejado, plasmado na figura de povos indígenas, LGBTQ, mulheres, migrantes, camponeses, quilombolas, negros e demais minorias que representam, em verdade, maiorias, cujo cotidiano é cada vez mais atravessado pelo feminicídio, homofobia, xenofobia, discriminações étnicas e raciais, entre tantas outras formas simbólicas também emergentes.
Isso posto, esta pesquisa visa analisar as relações entre a ascensão da extrema-direita no Brasil e a violência contra as minorias. Desse modo, busca identificar as possíveis interfaces entre as violências existentes e os discursos que fundamentam os movimentos de extrema-direita, com vista a refletir em que medida esses movimentos evocam discursos promotores da cultura da violência. Ademais, almeja identificar lacunas na literatura que possam nortear o desenvolvimento de pesquisas e a construção de políticas públicas favoráveis à garantia dos direitos humanos da população.
Metodologia
Trata-se de uma revisão integrativa, de abordagem qualitativa, que visa analisar as relações entre a ascensão da extrema-direita no Brasil e a violência contra as minorias no período histórico entre 2015 e 2020. Este recorte temporal foi escolhido em função da convergência com a alteração na correlação de forças e articulação da extrema-direita no contexto do Brasil, bem como suas consonâncias com o cenário global, identificadas no fortalecimento de partidos da extrema-direita no Parlamento Europeu, eleição de diversos representantes alinhados a tal espectro político no contexto da Europa, Brexit e cenário norte-americano, para citar alguns.
Em consonância com Botelho et al.9, a pesquisa seguiu as seguintes etapas: identificação do tema e seleção da questão de pesquisa; estabelecimento dos critérios de inclusão e exclusão; identificação dos estudos nas bases científicas; categorização dos estudos selecionados; análise e interpretação dos resultados; apresentação dos dados/síntese do conhecimento.
As fontes incluídas neste estudo abarcam as seguintes bases de dados científicas: Sage, Scopus e Wiley Online Library. Foram utilizadas estratégias de busca com palavras-chave validadas pela American Psychological Association (APA), realizando uma adaptação para as demais bases.
Definiram-se os seguintes critérios de inclusão: artigos publicados na íntegra, disponíveis eletronicamente, em português, inglês, espanhol ou francês, sem distinção do tipo de pesquisa e desenho de estudo, qualitativos ou quantitativos, com recorte histórico entre 1 de janeiro de 2015 e 7 de abril de 2020, cuja temática apresentasse abordagem direta ou indireta do tema da pesquisa, isto é, toda alusão ou presença de algum elemento teórico explicativo capaz de subsidiar a compreensão das relações entre a ascensão da extrema-direita no Brasil e a violência contra as minorias. No âmbito desta pesquisa, as minorias foram circunscritas aos grupos sociais representados por: mulheres, população LGBTQ, povos indígenas, povos do campo, das águas e das florestas, quilombolas, população negra, migrantes e refugiados (estes últimos sem restrições de grupos étnicos, idades, sexo, gênero, origem). Foram excluídos livros, capítulos e trabalhos de conclusão de cursos (monografias, dissertações, teses).
Após a aplicação dos critérios de inclusão, foram incluídos na amostra 52 artigos (figura 1).
A análise dos dados foi realizada a partir da análise de conteúdo de Bardin 10, obedecendo às etapas de pré-análise, codificação e categorização, o que conduziu à emersão da categoria intitulada «Fundamentos da extrema-direita/populismo: discursos de ódio, colonização do imaginário e normalização da violência».
Resultados e análise
Primeiramente, é importante assinalar que a análise dos 52 artigos científicos evidenciou uma lacuna existente no que tange à abordagem transversal entre a ascensão da extrema-direita e a violência contra as minorias no Brasil e em âmbito global. Entre os 52 artigos da amostra, somente sete apresentaram abordagem direta dessas relações, discutidos por Perry 11, Silva e Larkins12, Putzel 13, Rojas et al.14, Davis e Straubhaar15, Lima 16 e Robinson17.(Quadro 1)
Fundamentos da extrema-direita/populismo: discursos de ódio, colonização do imaginário e normalização da violência
Essa categoria emerge em função de sua massiva presença na quase totalidade dos artigos. Importa assinalar que a maioria dos artigos trata de temas como a reemergência do populismo18, frequentemente em análises que incluem a reflexão sobre suas aproximações e distanciamentos em relação ao fascismo. Há também aqueles que interpretam a situação atual como reemergência de experiências do fascismo e discorrem sobre seus fundamentos e processos nos séculos XX e XXI19. Da mesma forma sucede com a abordagem sobre a extrema-direita. Ela é tratada por vezes diretamente, mas também é abordada em diálogo com as perspectivas analíticas do populismo e fascismo20. Por fim, existe também quem interprete o fenômeno como neoliberalismo autoritário21.
No entanto, apesar das referidas distinções, comumente os significados e fundamentos atribuídos são muito semelhantes, ainda que apresentem especificidades e linhas argumentativas próprias. Em relação à diversidade de interpretações e termos adotados, bem como às aproximações e distanciamentos entre o populismo e o fascismo, Chase-Dunn et al. pontuam:
«Outra diferença entre as versões anteriores e mais recentes do fascismo é a atitude em relação ao Estado nacional. A maioria das versões anteriores glorificava o Estado como um instrumento da nação purificada. [...] no nível da ideologia o “estatismo” era um importante valor fascista. Os movimentos neofascistas contemporâneos não glorificam o Estado. Eles favorecem ações estatais mais autoritárias e intervencionistas, mas não glorificam o Estado como tal. Essa diferença é uma das razões pelas quais alguns estudiosos preferem o termo “nacionalismo populista” ao “neofascismo”. Outra diferença importante é com relação ao expansionismo militar.»22
Majoritariamente, o fenômeno é interpretado como reascensão do populismo de direita. Ademais, não há consenso acerca da concepção de populismo, embora haja convergência acerca de seus fundamentos e dinâmicas. Assim, ora ele é referido como ideologia, ora como estratégia política, ora forma de governo ou tão-somente ameaça à democracia. Independentemente do termo, tal como acentuado por Hadiz e Chryssogelos23, o populismo «procura separar o “povo” e as “elites”, supostamente violentas e corruptas, ao mesmo tempo em que afirma que os últimos são responsáveis pelos problemas sociais e econômicos percebidos como afetando “o povo” ou “a nação”».
De fato, uma das características centrais da extrema-direita/populismo assinaladas por boa parte dos artigos refere-se à configuração dessa oposição de um «povo» (nós) contra as «elites» (eles), mas que em verdade diz respeito a todas as minorias, apregoadas como ameaças e como causa de todos os males sociais. Ademais, outras características e, especialmente, dinâmicas de atuação do dito «populismo», «extrema-direita» ou «fascismo» são discutidos nos artigos. Em amplo espectro, os autores ressaltam que a extrema-direita/populismo caracteriza-se por um discurso antielite e anti-establishment, centrado na construção de uma figura de um líder, alçado a um papel de «mito», que se coloca como outsider, isto é, distante do sistema político vigente, bem como apresenta um discurso nostálgico de resgate de uma suposta «época de ouro» - que em verdade nunca existiu - sob a égide da lei e da ordem, ancorada na propagação e imposição de valores morais conservadores.
Além disso, os artigos destacam a existência de um processo de ataque às minorias, demonização da esquerda, dos intelectuais e dos centros produtores de pensamento crítico, depreciação de gênero e de migrantes - especialmente mulheres e população LGBTQ -, além de ataques sincronizados à imprensa e às instituições, a fim de plasmar e introduzir a ideia de um «bode expiatório» que explicaria e seria a causa de todos os problemas sociais vigentes. Nessa perspectiva, uma vez instituído o bode expiatório no imaginário social, é também parte do discurso e ação da extrema-direita/populismo a criação de estratégias capazes de «extirpar» o causador das mazelas, que, no caso, refere-se a todos aqueles que discordam dessa plataforma política. Esses elementos são frequentemente assinalados pelos autores como questões-chave que se assemelham ao fascismo do século XX, tal como apontado por Shivji, o qual ressalta que os padrões, apelos e discursos variam, mas existem características que «os populismos reacionários compartilham com o fascismo histórico»:
«[O] populismo fala em nome dos pobres contra os pobres. Exalta a nação como uma identidade distinta. Ele constrói seu discurso em uma plataforma moral e ética, e não em terreno político e socioeconômico. [...] privilegia “Deus e o país” em vez de povos e nações. Subjacente às exortações do líder é muitas vezes uma espécie de evangelismo. Até líderes religiosos estabelecidos falam do líder como um presente de Deus para o seu povo escolhido. [...] concentra o poder e destrói outros centros potenciais de poder real ou potencial. O poder está concentrado no executivo, marginalizando o parlamento; dentro do executivo, o poder reside no líder que emerge como o líder supremo [...] o líder se torna a fonte da verdade a quem seu partido e governo devem lealdade. [...] todas as mediações representativas entre o líder e as massas se tornam extintas. O líder fala com as massas, mobiliza e discursa diretamente. [...] o populismo reacionário monta um ataque conjunto a verdadeiros centros de pensamento, especialmente as universidades»24.
Cabe refletir que a existência do «nós» (povo) e «eles», e, sobretudo, a atribuição da responsabilidade dos problemas sociais a um dado segmento contrário é, em sua essência, violenta, posto que carrega consigo a ideia de exclusão. Mesmo que não haja nessa amostra estudos que mensurem as violências associadas - seja porque elas são dissimuladas em distintos discursos, signos e linguagens, ou ainda em função dos limites do desenho metodológico adotado -, a própria menção aos fundamentos centrais aqui abordados já revela em si mesmo a existência da violência e sinaliza as implicações da ascensão da extrema-direita na violência contra as minorias.
Não obstante, as colocações de Shivji acerca do ataque aos centros de pensamento - especialmente as universidades - encontram ressonância na realidade vivenciada no contexto atual do Brasil. É notável que as medidas atuais da extrema-direita no país direcionam-se no sentido de tentar alterar ou estabelecer limites à autonomia universitária - amparada pela Constituição Federal de 1988 -, além de construir narrativas e discursos que desqualificam e desprezam a ciência e a liberdade de pensamento inerentes aos espaços científicos25, o que tem também conduzido à degradação das relações entre a universidade, o Estado e a sociedade, bem como acirrado a violência no cenário acadêmico26.
É importante destacar que o princípio da violência está contido nos discursos evocados e, como tal, vai colonizando o imaginário social e conduzindo à normalização das inúmeras formas de violência, simbólicas e reais, ancoradas em valores morais conservadores e excludentes. Desse modo, configura um impacto social profundo que tende a reverberar a longo prazo, justamente por atuar não somente no plano concreto, mas na dimensão cultural e simbólica, no plano dos valores que norteiam as sociedades e balizam o contrato social civilizatório estabelecido.
Alguns autores argumentam que a nova direita estaria utilizando a estratégia da «metapolítica», ancorada na corrente teórica da nouvelle droite27. Esta corrente foi constituída no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, por representantes de movimentos de extrema-direita francesa, e ancora-se inicialmente nas ideias do líder político e intelectual Dominique Venner, consolidando-se posteriormente com o pensamento de Alain de Benoist e Guillaume Faye28. A metapolítica enfoca a disputa no plano cultural e ideológico como fundamento para a construção, a longo prazo, de um novo projeto político de sociedade, o que estaria inserido em uma estratégia de guerra de posição adotada pela nova direita, na perspectiva gramsciana29. Essa questão coaduna com a colocação anterior, no sentido de atentar para a importância da dimensão cultural e suas implicações não somente imediatas, mas em planos futuros.
De fato, a dimensão cultural é talvez o terreno mais sensível e sobre a qual a extrema-direita/populismo demonstra expressiva atuação. Grande parte dos artigos refere que a xenofobia, o sexismo, a misoginia e a homofobia constituem fundamentos da extrema-direita/populismo. Nesse sentido, a religião ocupa um lugar importante que se articula na propagação do conservadorismo de gênero.
Graff et al. destacam a magnitude das intersecções entre os fundamentos centrais da extrema-direita/populismo, o combate às questões de gênero e o fundamentalismo religioso, tal como pode ser observado no seguinte extrato:
«[O] antagonismo ao feminismo é um sentimento no coração da direita, sistema de valores e uma estratégia política, uma plataforma para organizar e recrutar apoio maciço. A nova direita populista é uma reação ao neoliberalismo, sim. Mas é também uma nova etapa nas guerras culturais. Nos últimos anos, o conservadorismo de gênero se tornou a língua franca de uma tendência global diversa. [...] A nova coesão à direita está se formando há algum tempo, como vemos nas coalizões católicas, evangélicas protestantes e muçulmanas contra o uso de “gênero” em tratados de direitos humanos»30.
Com efeito, outros autores alertam sobre o importante papel que a religião desempenha nos movimentos de direita contemporâneos, «como força de mobilização, construção de coesão e esforço para restaurar a autoridade de famílias patriarcais e líderes religiosos»31. Em verdade, o conservadorismo de gênero encontra abrigo e ressonância em distintas religiões em diferentes países do mundo. No Brasil atual, é preciso dizer que a articulação com a Igreja Neopentecostal constituiu elemento-chave, embora não único, para a ascensão da extrema-direita ao poder32. Além disso, o combate aos direitos das mulheres e da população LGBTQ tem se expandido expressivamente no cenário brasileiro e no mundo, por meio de diversos mecanismos, especialmente a propagação de discursos de ódio33.
Nesse sentido, tal como abordado nos artigos de Perry e Silva e Larkins, acerca do processo deflagrado no Brasil, os discursos de ódio contra as minorias adentraram o seio da sociedade, por meio da exaltação da misoginia, do sexismo e da homofobia propalados por Bolsonaro, mobilizando medos e fazendo emergir um conservadorismo, na verdade arraigado, fundado no racismo histórico e no patriarcado, cristalizado e dissimulado por trás do véu da «democracia racial» brasileira34.
Importa assinalar que os discursos de ódio têm sido adotados por movimentos de extrema-direita por todo o mundo, como adverte a filósofa alemã Carolin Emcke35, os espaços democráticos de diálogos têm progressivamente diminuído à medida que os discursos de ódio têm proliferado.
No caso do Brasil, os discursos de ódio deflagrados especialmente a partir da campanha eleitoral de Bolsonaro parecem ter encontrado terreno fértil na insatisfação das classes dominantes - patriarcais, brancas e heteronormativas - para com a ascensão social sem precedentes vivenciada por negros, mulheres, LGBTQ e pobres em período recente36, antes da instalação da crise econômica, do golpe de 2016 e da ascensão da extrema-direita.
De fato, Silva e Larkins também destacam a elevação de expressões de ódio racial no Brasil durante a campanha eleitoral de 2018 e apresentam dados apontados por Henrique 37, oriundos do Departamento de Segurança Pública de São Paulo, que evidenciam um aumento de 37% nas agressões raciais durante o referido período, se comparado com o ano anterior38. Cabe assinalar que a elevação das agressões raciais revela o aprofundamento do histórico racismo estrutural presente no Brasil, o qual é atualmente legitimado pela extrema-direita no poder.
Todavia, o racismo não está circunscrito ao cenário brasileiro, e fatos emblemáticos relativos ao assassinato de George Floyd nos Estados Unidos exemplificam de modo bastante contundente essa questão. Tal como pontua Borras Junior, o racismo constitui uma das características centrais das manifestações atuais da extrema-direita, bem como a xenofobia, o nacionalismo, o sexismo e a misoginia39, em consonância com outros trabalhos que acentuam que as políticas de hipernacionalismo, xenofobia, racismo e sexismo são âncoras que atuam no populismo de direita e neofascismo40.
Robinson acentua que o fascismo do século XXI é marcado pela instalação crescente de um Estado policial global, induzido pelo bloco do capital transnacional e que estaria conduzindo ao desenvolvimento e implantação de sistemas de guerra, controle social e repressão, o que ele denomina de acumulação militarizada41. Em verdade, o exemplo do assassinato de George Floyd pelas forças do Estado, assim como a presença de 6157 militares da ativa e da reserva em cargos civis na atual gestão do Governo brasileiro42 e a crescente violência policial no Brasil43 sinalizam a relevância do argumento e revelam o quão intrínsecas são as relações entre a extrema-direita e a violência.
Os discursos de ódio que fomentam a violência são traços inscritos como fundamentos que ancoram toda a plataforma da extrema-direita/populismo/fascismo, configurando o eixo norteador das propostas e políticas adotadas, tanto no Brasil como no mundo, cujos alvos são as populações historicamente oprimidas, quais sejam: mulheres, negros, imigrantes, população LGBTQ, ciganos, quilombolas, entre outras minorias existentes em cada região e contexto.
Cabe aqui acentuar novamente a importância do discurso e das linguagens nesse processo. Evidentemente, a violência não se limita à retórica, mas se expressa na materialidade da vida em sociedade, tanto por meio das referidas políticas como nas violências simbólicas que impregnam o imaginário e o tecido social. Nessa perspectiva, Robinson adverte que a extrema-direita busca implantar sua plataforma por meio do uso de repertórios discursivos que exaltam uma cultura militarista e machista que normaliza a violência, a guerra, a dominação social e o desprezo pelos mais vulneráveis44.
De fato, Pascale assinala que a forma de atuação da extrema-direita conjuga estratégias de violência simbólica e material45. Nessa perspectiva, a «linguagem armada» é uma estratégia central e poderosa de violência simbólica adotada sistematicamente, que constitui uma espécie de preâmbulo para a violência física. É uma linguagem agressiva ancorada em narrativas que moldam o pensamento da população e possibilitam atrocidades sistemáticas.
Por fim, importa realçar que uma das formas de linguagem armada adotadas pela extrema-direita são as fake news, utilizadas com o objetivo de distorcer informações, ferir a liberdade de expressão e atacar os direitos humanos46. Emcke também menciona o papel das mídias sociais na viralização de discursos de ódio e em manifestações violentas crescentemente promovidas pela extrema-direita47. Como pode ser observado, a desinformação é também uma forma de violência, haja vista que subtrai da sociedade o direito de acesso aos dados e aos fatos, de tal forma que se torna impossível discernir entre a verdade e a mentira.
Com efeito, no Brasil e no mundo, a extrema-direita cotidianamente revela mais e mais suas relações com as fake news. Fatos passados recentes evidenciam o uso político de fake news por parte de governos de extrema-direita, tal como o escândalo envolvendo Estados Unidos e Rússia nas eleições de Donald Trump48, a utilização massiva de fake news por parte dos governos da Hungria49 e da Polônia50, as denúncias de fake news relacionadas às eleições do Governo Bolsonaro e sua propagação de informações falsas que negligenciam a gravidade da covid-19, bem como a notável disputa em torno de fake news travada na atual guerra entre a Rússia e a Ucrânia, revelando o quanto esse elemento pode ser perverso e violar inclusive o direito à vida.
Considerações finais
Esta pesquisa trouxe à luz reflexões acerca das relações entre a ascensão da extrema-direita e a violência contra as minorias no contexto do Brasil. A ampliação dos discursos de ódio propagados pela extrema-direita não se restringe ao cenário brasileiro. As crises econômicas e as desigualdades sociais - decorrentes do neoliberalismo -, associadas à crise de representação política instalada nas sociedades em nível global, constituem terrenos férteis para a ascensão da extrema-direita/populismo e, consequentemente, para a propagação da violência.
Ao analisar os fundamentos da extrema-direita/populismo nota-se que a violência, real ou simbólica, constitui fundamento intrínseco destes, haja vista que se ancoram na ideia de separação entre «nós» (povo) e o «outro», incitando a polarização e a violência contra todas as minorias, o que inclui também a xenofobia, o racismo, a homofobia, o sexismo e a misoginia, para citar algumas atitudes apregoadas e disseminadas por meio de discursos - especialmente discursos de ódio - e «linguagens armadas».
Nesse sentido, cabe também destacar a importância das fake news no contexto atual, posto que configuram uma estratégia de «linguagem armada» que atua na difusão de discursos e constitui também um tipo de violência. Quando os limites entre a mentira e a verdade se tornam nebulosos, os referenciais também se tornam voláteis e os parâmetros éticos que balizam a vida em sociedade se dissipam.
Nota-se, portanto, que os discursos representam uma poderosa estratégia que promove a colonização do imaginário social e atuam como mola propulsora da construção de narrativas violentas e excludentes, gerando fraturas simbólicas que esfacelam os laços sociais, induzindo à normalização da violência e, consequentemente, ao desmoronamento das bases que historicamente sustentaram as sociedades democráticas.