Introdução
Quando o feminismo finalmente adentra a disciplina de Relações Internacionais (RI) nos anos 1980, os debates que já se desenvolviam em outras disciplinas passam a animar as agendas de pesquisa de fenômenos internacionais. Buscando visibilizar aquelas que eram ignoradas na arena internacional, as feministas centralizam suas análises nas mulheres e nas diversas formas como as mesmas são silenciadas, excluídas e apagadas da construção histórica e epistemológica das RI3. A diversidade de temáticas que emergem não só preenchem lacunas persistentes dentro da disciplina, como iluminam sítios onde a presença dos indivíduos - em particular, das mulheres - é frequentemente ignorada em favor de perspectivas estadocêntricas dos fenômenos internacionais.
Entretanto, ainda que a agenda feminista em RI haja provocado transformações na disciplina, persistem dentro dos próprios feminismos padrões de exclusão que subalternizam as experiências e perspectivas das feministas periféricas. As recorrentes denúncias dos feminismos do Sul Global sinalizam a invisibilização das mulheres latino-americanas, asiáticas e africanas, o que acaba por ignorar suas demandas dentro de seus contextos particulares4. Nesse cenário, os feminismos africanos são confrontados com a dupla tarefa de vocalizar as especificidades das mulheres africanas e questionar os discursos universalizantes do feminismo global5, o que lhes coloca em um constante processo de (re)articulação de suas epistemologias6.
Nesse contexto, em que os feminismos africanos ocupam um lugar ainda marginal dentro dos debates feministas sobre as relações internacionais, especialmente devido, em parte, às articulações com o feminismo global, partimos da seguinte pergunta de pesquisa: há espaço para as epistemologias feministas africanas nas RI? Argumentamos que as epistemologias feministas das RI, ao conferirem relevância às experiências e vivências das mulheres, constituem per se um espaço de entrada e diálogo para os feminismos africanos, uma vez que ambos partem do desiderato comum de historicização e contextualização das demandas das mulheres. No caso africano, tal demanda é ainda mais premente, dada a necessidade de se olhar horizontalmente para as mulheres africanas, tratando-as como sujeitas com agência, em vez de essencializá-las como vítimas ou tratá-las como um Outro exótico e mero objeto de estudo.
O artigo está dividido em três partes. Na primeira, apresentamos brevemente um panorama dos debates feministas em RI, enfatizando o carácter epistemológico do ponto de vista das mulheres como elemento fundamental da pesquisa feminista. Em seguida, apontamos os principais elementos dos feminismos africanos, salientando as chaves conceituais que informam os diálogos com as epistemologias feministas das RI. Finalmente, na terceira seção propomos os pontos de encontro entre os feminismos ocidentais e internacionais, de um lado, e os feminismos africanos, de outro, argumentando que a epistemologia do ponto de vista compartilhada por ambas abordagens permite construir não só uma agenda de pesquisa plural, como também alianças feministas transnacionais.
Epistemologias feministas nas RI
Embora as discussões feministas tivessem, nos anos 1980, uma larga e ampla tradição em outras disciplinas, nomeadamente a Antropologia, a Sociologia e a Ciência Política, o ingresso das mesmas nas RI somente foi possível quando se inaugurou o terceiro debate teórico na disciplina7. As críticas pós-positivistas que marcam esse novo momento na trajetória histórica e epistemológica das RI permitem a novas formas de produção de conhecimento acessarem o campo disciplinar, oferecendo não só chaves conceituais inovadoras, como também metodologias de cunho sociológico e antropológico antes ignoradas na ordem neopositivista dos debates teóricos anteriores8. É precisamente nesse cenário de efervescência teórica que as epistemologias feministas conseguem estabelecer conversas com o cânone da disciplina com vistas a inaugurar novas agendas de pesquisa e abordagens teóricas situadas nas experiências dos indivíduos, antes invisibilizados na análise dos fenômenos internacionais9.
Nesse contexto, o dossiê especial de 1988 (volume 17, número 3) da revista acadêmica Millennium: Journal of International Studies é reconhecido como a porta de entrada para o feminismo nas RI10. O simbolismo dessa edição se deu principalmente por oferecer um espaço para visibilizar pesquisas que tratavam de temas variados, tanto do ponto de vista teórico como empírico, servindo ao objetivo de reconciliar «as pesquisas feministas e a disciplina de relações internacionais»11. Questões como a ausência de teorização sobre o gênero12, a dicotomia público e privado aplicada ao sistema internacional13 e a própria visibilização das mulheres na cena internacional14 foram algumas das inquietações suscitadas naquele dossiê e que reverberaram ao longo das décadas seguintes em pesquisas cada vez mais ricas em termos teóricos, empíricos e metodológicos.
Subjacente às investigações feministas nas RI está a chave de gênero como centro conceitual para se compreenderem as desigualdades de poder entre homens e mulheres na arena internacional e nas interseções entre o doméstico e o internacional15. Tanto a famosa pergunta provocativa «onde estão as mulheres?» e o lema «o pessoal é internacional»16 orientam as pesquisas feministas dentro da disciplina, conectando diferentes níveis de análise que vão do micro, onde se encontram as mulheres navegando por espaços construídos sob hierarquias de gênero e nos quais impera uma miríade de injustiças e violências17, até ao macro, onde normas de masculinidade e feminilidade determinam não só a parca presença feminina nos espaços de poder das forças armadas, da diplomacia, das negociações e dos organismos internacionais, como também as expectativas de comportamento das mulheres quando se encontram em lugares antes ocupados somente por homens18. Nesse processo, a utilização do gênero como categoria analítica demonstra-se fundamental no processo de revelação das diversas questões que afligem as mulheres. Cohn sintetiza:
«Ao compreender os diversos significados de gênero, bem como as formas como estão vinculados, o eixo conceitual que os mantém todos juntos é este: gênero é, em seu cerne, uma relação estrutural de poder. Assim como o colonialismo, a escravidão, a classe, a raça e a casta são todos sistemas de poder, também o é o gênero. Cada uma delas se apoia em um conjunto central de distinções entre diferentes categorias de pessoas, valoriza algumas em detrimento de outras e organiza o acesso a recursos, direitos, responsabilidades, autoridades e opções de vida ao longo das linhas que demarcam esses grupos.»19
Na análise feminista, portanto, o gênero ocupa posição pivô no processo de compreensão das relações de poder20. No campo das relações internacionais, o poder costumeiramente é analisado a partir das relações entre os Estados, ignorando-se a existência dos indivíduos sobre os quais o poder incide e, por conseguinte, as consequências do próprio exercício do poder. A marginalização dos indivíduos, sobretudo das mulheres, motiva as feministas a reescreverem epistemológica e empiricamente a agenda de pesquisa internacional, trazendo à tona as experiências e vivências das pessoas afetadas pelas dinâmicas estatais. Essa epistemologia do ponto de vista posiciona as mulheres no centro da análise, uma vez que reconhece que a posição social em que elas se situam molda as suas realidades, especialmente como resultado das opressões que elas sofrem21. As desigualdades de poder vivenciadas pelas mulheres resultam em diferentes posições de subalternidade, de modo que iluminar essas desigualdades é passo fundamental no processo de transformação das mesmas22).
Não obstante, o desiderato de situar as mulheres nas análises feministas cumpriu-se apenas parcialmente. Se de um lado as feministas lograram inserir nas agendas de pesquisa temas diversos - tais como mulheres e conflitos23, masculinidades24, processos de masculinização nas instituições25 e os impactos de programas de ajuste estrutural nas mulheres26, apenas para citar alguns -, de outro há uma exclusão persistente das dinâmicas e perspectivas do Sul Global, principalmente em se tratando de conferir aos movimentos e às teóricas feministas locais a voz necessária para transmitir suas demandas27. Nesse contexto, a emblemática questão suscitada por Gayatri Spivak permanece atual: pode o subalterno falar, especificamente a mulher subalterna? Parte das feministas do Sul Global ainda segue marginalizada nos debates feministas internacionais e, quando incluídas, frequentemente denunciam o carácter hegemônico e imperialista das feministas ocidentais28. Essa denúncia funda-se na acusação de que as demandas das mulheres do Sul Global são ignoradas e seu conhecimento autóctone é desprezado como epistemologia válida para analisar as opressões e as circunstâncias sob as quais vivem. Diante desse cenário, a construção de alianças entre os feminismos ditos subalternos29 e os feminismos ocidentais enfrenta desafios consideráveis, e, no caso africano, a condição de subalternização e exotização à qual é submetido o continente agrava as dificuldades de diálogo30.
Feminismos africanos: debates e tensões epistemológicas
A diversidade cultural, social, política, religiosa e econômica do continente africano impacta diretamente nos movimentos feministas locais. Soma-se a tal diversidade a complexidade dos problemas africanos, que envolvem não só as reconhecidas questões de desigualdades socioeconômicas e pobreza, como também os legados coloniais e a alta conflitividade em determinados países do continente. Os feminismos africanos, consequentemente, operam em realidades distintas das características do Ocidente, uma vez que a mutabilidade das relações de gênero em África está profundamente ligada a fenômenos sociais e políticos mais amplos, tais como a colonização, a migração e o conflito armado31. Por tal razão, uma parcela significativa dessa literatura desenvolve-se em constante diálogo com os estudos pós-coloniais, especialmente de forma a recuperar as agendas africanas pelas próprias mulheres africanas, estejam elas no continente ou na diáspora32.
Diferentemente dos feminismos ocidentais, nos quais se observa uma trajetória dividida em três ondas que, mais do que conclusas, sobrepõem-se33, os feminismos africanos são marcados por eras políticas, nomeadamente pré-colonial, colonial e pós-colonial34. Essa perspectiva temporal é moldada pelo evento político mais traumático para o continente e, mais ainda, para as mulheres, qual seja, a colonização pelas potências europeias. Como resultado, as demandas das mulheres africanas estão intrinsecamente associadas a suas experiências históricas diante destes eventos, o que impõe o desiderato da contextualização e historicização das mesmas como estratégia para recuperar a agência das mulheres35. Historicizar os processos coloniais como estruturantes das realidades africanas permite compreender como o gênero se situa nas modalidades de dominação ensejadas na colonização, revelando suas persistências nas sociedades pós-coloniais africanas contemporâneas.
Nesse contexto, os feminismos africanos são marcados por um profundo debate com outras disciplinas, nomeadamente a Antropologia, a Sociologia, a Literatura e a Linguística36. Os estudos antropológicos conduzidos por Amadiume 37 e Oyewùmi38 são clássicos no processo de ressignificação das experiências das sociedades africanas pré-coloniais, especialmente ao questionarem a universalidade do gênero como clivagem social onipresente e estruturante da ordem social. Se de um lado essa parece ser uma preocupação central nos feminismos ocidentais, por outro o não reconhecimento de outras categorias analíticas como a sexualidade, a religião e a senioridade impõe sérios limites analíticos quando o gênero é descontextualizado do seu locus de aplicação. Não por acaso, a aproximação dos feminismos africanos com as abordagens pós-coloniais e decoloniais alimenta as suspeitas destes em relação aos movimentos feministas nos Estados Unidos e na Europa, por ver neles uma falha epistemológica ao não considerarem os efeitos da colonização nas hierarquias sociais africanas, das quais o gênero é mais uma clivagem importada da realidade ocidental39. Ademais, essa desconfiança de uma parcela das feministas africanas assenta-se ainda no entendimento de que a atuação do feminismo global objetiva subsumir os ativismos feministas autóctones às suas agendas40, desconsiderando-se as demandas locais relacionadas a necessidades materiais (acesso à água, terra e educação)41 e à associação entre mulher como indivíduo e parte de uma coletividade42. Não por acaso, versões mais críticas partem de uma perspectiva afrocentrada para confrontar as investidas feministas internacionais, vistas como parte de um projeto mais amplo de manutenção da supremacia europeia e branca43. Esse elemento racial aprofunda as fissuras existentes entre mulheres africanas e ocidentais, impossibilitando que diálogos horizontais sejam estabelecidos entre as partes, seja porque aguça as suspeitas sobre uma nova investida neocolonial mascarada pelo termo «feminismo», carregado de princípios ocidentais, seja porque o feminismo ocidental ignoraria as condições materiais e imateriais das mulheres africanas, bem como suas trajetórias históricas e suas particularidades culturais - estas, inclusive, entendidas como forma de resistência à dominação ocidental44.
Embora esse discurso caracterize uma parcela significativa da literatura feminista africana contemporânea45, seus críticos compreendem que o constante confronto com os feminismos ocidentais reafirma a condição marginal dos feminismos africanos, convertendo-os em um Outro de sua contraparte ocidental46. Ainda que se postule a necessidade de recobrar a agência da mulher africana, a recorrência à arqueologia pré-colonial contribui para a construção de uma mitologia tokenista sobre a liderança das mulheres em um passado glorioso, o qual foi erodido pela presença colonizadora dos europeus47. Essa perspectiva infantiliza as mulheres africanas na contemporaneidade ao não lhes reconhecer a agência para moldar seus ativismos e concepções feministas, uma vez que essa agência haveria sido roubada pelos colonizadores, relegando-lhes um papel subalterno imutável. Como sentencia Eze:
«Dito de forma simples, [o feminismo africano] não mostra a mulher africana como alguém que possui uma mente própria. Na verdade, o modo africano de feminismo [da corrente supracitada] [...] não visa elucidar ou resolver nenhum problema; simplesmente fornece alternativas ao feminismo ocidental com o objetivo errôneo de defender o mundo africano. Nisso, ele segue o caminho da luta anti-imperialista e nada faz para explorar a personalidade da mulher africana. Todas as explicações tendem a proteger a comunidade africana ameaçada. Em suma, as feministas africanas não conseguem dar uma imagem robusta da mulher africana que o homem africano é obrigado a respeitar.»48
Diante desse cenário, em que a história e o contexto são convertidos em um instrumento estático para analisar o passado sem avançar nas soluções necessárias ao presente, os feminismos africanos contemporâneos optam por ressignificar a chave de gênero dentro de suas necessidades epistemológicas e empíricas, em vez de rejeitá-lo como uma categoria universal que reflete as demandas situadas das mulheres ocidentais49. Nesse sentido, o gênero é compreendido não como um conceito fixo mas fluido e que se entrelaça com outras clivagens sociais estruturantes do poder. Esse carácter intersecional do gênero vem sendo salientado nas análises feministas africanas da contemporaneidade com vistas a compreender temas complexos como a inserção das mulheres na política e na economia no pós-conflitos armados50; a prevalência endêmica da violência de gênero no continente, seja nos momentos de paz, seja nos de conflito51; e as intrincadas relações entre gênero, etnia, religião, sexualidade, casta e classe52. Como enfatiza Yacob-Haliso53, a intersecionalidade «emerge como um dos principais referenciais analíticos para conferir sentido à complexidade das diferenças de poder das mulheres que emanam das identidades e de seu carácter de mútuo reforço», salientando a necessidade de um olhar multidimensional para as diversas realidades africanas.
Em suma, os feminismos africanos assumem como pilar epistemológico o reconhecimento das experiências vividas das mulheres africanas como ponto de partida para informar não só os ativismos autóctones, como também a teorização sobre as próprias mulheres. A despeito das críticas das perspectivas afrocentradas - inclusive com a rejeição ao termo feminismo -, o espaço para diálogo entre mulheres africanas e feministas ocidentais se demonstra possível, sendo considerado um desiderato para o avanço das agendas feministas africanas. Precisamente nesse sentido, e na possibilidade de articulação com os feminismos internacionais, há espaço para a construção de agendas de investigação dentro dos feminismos nas RI, desde que haja uma horizontalização na interação entre as diferentes epistemologias. Tal horizontalização presume não só a dimensão de gênero, como também dos demais eixos epistemológicos que subalternizam os conhecimentos produzidos em África.
Sororidade internacional para uma epistemologia da mulher africana nas RI
«Digamos apenas que a sororidade nem sempre foi boa em atender igualmente às experiências de todas as irmãs»54.
A afirmação de Hay sobre as limitações da sororidade - a concepção de que as mulheres de todo o globo compartilham de experiências comuns de opressão que as unem como irmãs - sinaliza as dificuldades que o feminismo a nível internacional enfrenta no que tange ao acolhimento das diferentes perspectivas e demandas das mulheres. Essa denúncia, como visto, tem sido particularmente saliente no contexto dos feminismos do Sul Global, que veem nas investidas do feminismo ocidental a imposição de agendas unilaterais, universalizantes e de carácter hegemônico55. Persistem, portanto, suspeitas sobre o que uma sororidade internacional significaria para os ativismos e movimentos feministas em África, e como estes poderiam articular suas epistemologias autóctones de forma horizontal na agenda internacional.
A sororidade internacional é compreendida como um modelo intercomunitário de relações feministas56. Suas expressões mais emblemáticas no contexto global foram as Conferências Mundiais da Mulher realizadas em 1975 (Cidade do México), 1980 (Copenhague), 1985 (Nairóbi) e 1995 (Pequim), que congregaram mulheres e ativistas feministas em espaços de debate e construção conjunta de agendas políticas, econômicas, sociais e culturais57. As africanas participaram ativamente deste momento, estando ao lado de suas irmãs do Sul Global por perceberem pontos de convergência em suas demandas: se de um lado as feministas europeias e norte-americanas preocupavam-se sobremaneira com questões de autonomia e liberdade, do outro estavam as feministas dos países comunistas e do Sul Global discutindo desigualdades socioeconômicas, violências contra as mulheres, conflitos, racismo e descolonização58. Embora essas agendas tenham prevalecido nas três primeiras conferências supracitadas - a despeito das resistências ocidentais -, nota-se, a partir de Pequim, uma orientação do feminismo internacional mais próxima ao feminismo ocidental59. Essa inflexão provoca a predominância de uma agenda feminista vista pelo Sul Global como neocolonial e imperialista, desatenta às necessidades e questões locais60.
Subjacente a esta problemática, portanto, está a questão quintessencial de como acolher as demandas das mulheres africanas enquanto africanas. A prevalente ignorância das dinâmicas locais não só constitui uma falha do ativismo internacional, como também deslegitima as epistemologias autóctones na construção do conhecimento sobre a condição das mulheres nos variados contextos africanos61. Recuperar o protagonismo das feministas africanas, por conseguinte, é fundamental para o estabelecimento de um diálogo horizontalizado em que suas demandas possam ser tratadas sem hierarquizações. Este processo perpassa a horizontalização de outras dimensões epistemológicas nas quais o continente africano é posicionado como um subalterno do Ocidente, especialmente no que tange à dimensão racial que estrutura o sistema internacional e o conhecimento sobre os fenômenos internacionais62. Em outras palavras, o gênero, como categoria analítica, não está desvinculado de outras clivagens, notadamente a raça, que ordenam de maneira hierárquica o sistema internacional, hierarquia esta que coloca o continente africano em permanente posição de subalternidade em relação ao Ocidente.
Nesse sentido, a sororidade entre feministas ocidentais e africanas perpassa a um só tempo o reconhecimento de uma epistemologia feminista do ponto de vista, bem como da dimensão racial estruturante do sistema internacional e suas intersecionalidades com o gênero. Essa tradição epistemológica do feminismo reconhece que os diversos sistemas de opressão que operam sobre os indivíduos produzem experiências distintas, dado que eles ocupam posições sociais diferentes, e, portanto, o conhecimento que incorporam não pode ser adquirido por uma forma racional e descolada das vivência63. Evidentemente, esse conhecimento é assumido não como meramente individual, mas sim como algo coletivo que emana das experiências do grupo ao qual os indivíduos pertencem64. Como determinados grupos são vítimas de opressões que acoplam distintas clivagens sociais (classe, raça e gênero, por exemplo), tratar o ponto de vista a partir de uma óptica intersecional é fundamental dentro dessa proposta epistemológica65. Nesse sentido, ao considerar as opressões vividas pelo grupo, a epistemologia feminista do ponto de vista cria marcos para que esse conhecimento estabeleça diálogos com outras formas de conhecimento, além de ser fundamental no processo de construção de agendas políticas de ativismo social.
A abordagem do ponto de vista, portanto, é fundamental para os feminismos africanos na medida em que legitima os seus conhecimentos e suas perspectivas epistemológicas e metodológicas66. Se reconhecemos que «as pesquisas feministas têm permitido estabelecer conexões entre quem fala e o mundo de que se fala»67, é apenas natural que o diálogo teórico se assente na horizontalidade das demandas. Isso é ainda mais premente dados os contextos africanos, naturalmente diversos e complexos, nos quais operam as variadas intersecionalidades do gênero e, principalmente, os diferentes efeitos da colonização68 e da subalternização racial característica do sistema internacional69. Afinal, como assinala Mekgwe:
«A sociedade africana é, portanto, reconhecível como uma sociedade em evolução que passou por experiências históricas que a tornaram híbrida, plural e fluida. Ela assimilou novas culturas e conceitos. O resultado foi uma alteração nas diferentes expressões culturais, entre as quais o lugar do gênero. O insight que isso tem para teorizar o feminismo africano é que é importante trazer à tona o impacto que a experiência colonial teve nas construções de gênero, mas, mais importante, é pertinente focar em como essas experiências históricas resultaram em renegociação, reconsideração e reconstrução da noção de gênero africana.»70
Consequentemente, a superação das limitações da sororidade internacional denunciada por feministas africanas requer a incorporação de suas demandas e epistemologias tanto no debate teórico como nos ativismos feministas. Ao reconhecer as particularidades das realidades africanas, atravessadas por desigualdades das mais variadas naturezas71, a agenda feminista internacional amplia seu escopo, impactando nas suas prioridades e ações frente às variadas necessidades enfrentadas pelas mulheres do continente.
Porém, resta a questão: como essa proposta se alinha aos feminismos nas RI? Como apontado anteriormente, as abordagens feministas na disciplina partem do desiderato de identificar as experiências das mulheres para construir seu conhecimento72. Essa linguagem assenta-se na epistemologia do ponto de vista como abordagem para situar o conhecimento advindo das múltiplas opressões das mulheres, as quais não só seguem invisibilizadas nas RI, como também insuficientemente teorizadas dentro do cânone disciplinar73. Como resultado, a produção intelectual feminista ao longo das últimas três décadas tem-se devotado precisamente a preencher as lacunas epistemológicas das RI trazendo, desde as margens, as mulheres e suas experiências. Esse enfoque nos indivíduos expande «nossas noções de política mundial para incluir as pessoas e esferas anteriormente invisíveis»74.
A inclusão das mulheres africanas e suas perspectivas emerge como o passo seguinte para a aproximação entre os feminismos africanos e as RI, dentro da proposta de uma epistemologia feminista do ponto de vista que lhes permita vocalizar suas demandas. Se tal diálogo é estabelecido, chaves conceituais que consideram as intersecionalidades do gênero características das realidades africanas, bem como o senso de coletividade que ressignifica as relações das mulheres para com suas comunidades, podem adentrar os debates feministas na disciplina e contribuir para seu aprofundamento a partir da sensibilização acerca dessas particularidades locais. Essa postura é especialmente necessária para a reconsideração dos significados das múltiplas desigualdades e injustiças vividas pelas mulheres africanas, com impactos diretos na sua concepção (e nas soluções para o problema) de desenvolvimento75 e cidadania76, a violência de gênero em situações de paz e conflito77, a reconstrução dos Estados após guerras civis e seus reflexos nas relações de gênero78, o programa neoliberal e seus efeitos nas vidas das mulheres79, apenas para mencionar alguns temas salientes para o continente. Em todas essas questões, a incorporação do ponto de vista das mulheres africanas é indispensável para o estabelecimento de diálogos horizontais dentro da proposta de uma sororidade internacional.
Entretanto, a realização dessa sororidade entre feministas ocidentais e africanas requer a autocrítica por parte daquelas no que se refere a suas vinculações com o cânone teórico das RI. Se é certo que as feministas criticam a ausência das mulheres nas teorias das RI, é também notório que os feminismos na disciplina ainda carecem de uma real incorporação das experiências e vivências das outras mulheres. A denúncia de Mohanty 80 sobre o carácter universalizante do feminismo ocidental, somada às denúncias de racismo e neocolonialismo das mulheres africanas, parece persistir na disciplina, impactando na inserção das mulheres africanas nos debates teóricos das RI. Portanto, a horizontalização das demandas e epistemologias das mulheres africanas torna ainda mais premente a superação desse elemento supremacista dos feminismos ocidentais, especialmente por meio do reconhecimento das diferentes vozes e ativismos africanos, bem como das intersecionalidades específicas do gênero em África. Embora seja um desafio, a construção de agendas feministas comuns exige a superação das desconfianças, o que, por sua vez, perpassa o reconhecimento das diferentes modalidades de opressão ensejadas pelo gênero e suas interseções com raça, classe, cultura e sexualidade. A partir disso, a horizontalização das demandas com vistas à ação conjunta se torna possível.
Conclusão
Os feminismos africanos e ocidentais compartilham de substantivas diferenças, mas também de importantes pontos de convergência, dos quais o mais fundamental certamente é seu intento de conferir visibilidade às experiências das mulheres, entendidas como parte de um grupo sujeito a diversas opressões. Embora as diferenças assumam, frequentemente, proeminência no debate, a superação das mesmas em favor de uma horizontalização dos diálogos é essencial para que se avancem as agendas conjuntas.
Nas RI, os feminismos africanos ainda se encontram em posição marginalizada, embora esforços recentes de inclusão das perspectivas do Sul Global tenham sido aventados pelo feminismo mainstream. Evidentemente, faz-se mister envidar mais esforços para que as conversas entre as feministas africanas e ocidentais possam se dar desde uma posição mais igualitária no que tange à construção das agendas de pesquisa e ativismos sociais. Se a sororidade internacional é vista como uma necessidade para se fazer avançar o feminismo, antes deve-se reconhecer a pluralidade dos feminismos, o que perpassa conferir voz e protagonismo às diferentes visões de mundo e demandas particulares das mulheres.
Entretanto, nesse processo de integração e diálogo, não se podem perder de vista os elementos estruturantes do sistema internacional que intersectam com o gênero.
A posição marginal das mulheres africanas e seus feminismos advém, para além de uma estrutura patriarcal global, das dinâmicas raciais que subalternizam indivíduos não brancos e não ocidentais. Parcela significativa do cânone das RI alicerça-se em uma visão racializada e eurocentrada que ignora e repele as experiências provenientes de África. A exclusão epistemológica das mulheres africanas na disciplina, portanto, resulta também dessa intersecionalidade do gênero com outras estruturas de poder, que acabam por colocar o continente em uma permanente posição de inferioridade e subalternidade. Nesse sentido, as transformações na disciplina requerem a ressignificação do próprio cânone, e nesse processo a sororidade internacional com os feminismos africanos tende a oferecer importantes chaves conceituais e analíticas.
Ao longo deste artigo, propusemos a retomada da epistemologia feminista do ponto de vista como passo fundamental para a reconciliação dos feminismos africanos com seus congêneres no Ocidente e no mainstream da disciplina de RI. A centralidade das mulheres alicerça as perspectivas do ponto de vista, permitindo que elas falem por elas mesmas acerca de suas opressões e formas de agência. Tanto os feminismos ocidentais quanto os africanos partem dessa premissa epistemológica, o que per se sinaliza uma convergência de suma importância para a construção de entendimentos, teorias e agendas conjuntas. Ao reconhecer e respeitar a pluralidade dos pontos de vista, é possível reconfigurar as análises feministas das relações internacionais a partir de diferentes posicionalidades, que, mesmo diferentes, compartilham de importantes similitudes de experiências. Nessa senda, a perspectiva de uma sororidade internacional entre irmãs africanas, do Sul Global e do Ocidente, se estabelece em linhas mais firmes, fundadas na horizontalidade de suas vozes e no respeito mútuo de suas lutas feministas.