«Eu provavelmente estou em desacordo com quase toda a gente, na medida em que não acredito que o poder cresça a partir do cano de uma arma. Sei que desde Mao até à ultradireita toda a gente pensa assim. Mas eu penso que do cano de uma arma cresce a violência, e a obediência imediata, que depois cessa imediatamente quando a arma é retirada. Isto não é poder.» Hannah Arendt 1
Introdução
O caso de Timor é um exemplo paradigmático da dinâmica da ordem internacional e de como os seus contextos políticos e normativos constroem congelamentos, abstenções ou soluções para os conflitos internacionais. De caso esquecido pela lógica do facto consumado da anexação indonésia na ordem da Realpolitik da Guerra Fria, Timor transforma-se num caso do poder normativo da comunidade internacional na ordem pós-Guerra Fria, o que proporcionou o patrocínio da invenção do Estado de Timor-Leste através de uma inovadora missão da Organização das Nações Unidas (ONU).
Apesar do atual momento pessimista e do aparente precipício ideacional e normativo com que nos confrontamos, Timor recorda-nos que nada está irremediavelmente perdido. A história não para, e a resiliência das razões normativas pode superar a força das razões de poder. Timor demonstra-nos que, ao contrário dos discursos mais simples, a política internacional não se limita à imposição do poder material. Embora usualmente mais óbvias, as razões do poder material necessitam de algum grau de legitimidade normativa. Pensando historicamente2 é constatável que quando acontecem movimentos que apenas se baseiam na imposição do poder do mais forte, mais tarde ou mais cedo, as razões do poder normativo e da legitimidade emergem, embora muitas vezes não de forma fácil ou determinista, como aconteceu, aliás, com o caso de Timor.
A ordem internacional está em permanente (re)construção social. O dilema entre interesses e normas não é estático. Isto significa que a vitória do poder do mais forte militarmente pode, no curto ou médio prazo, ganhar a batalha, mas dificilmente ganha a guerra das ideias, da identidade e das normas. Após vinte e cinco anos de resistência dos timorenses e da resiliência normativa da política externa portuguesa, a mudança acontece. Como é habitual, esta mudança não foi monocausal, mas o resultado de um conjunto interligado de processos ao nível estrutural, internacional, nacional, local e transnacional3. Sobretudo a mudança ao nível da estrutura normativa e ideacional, que aconteceu com o aparecimento de uma nova ordem internacional na década de 1990, permitiu o surgimento de janelas de oportunidade que possibilitaram a invenção de Timor.
Por outro lado, como este artigo demonstra, os Estados são atores sociais que não têm interesses estáticos. De acordo com o ambiente ideacional, interno e internacional, os decisores são socializados a tomarem decisões que, dependendo dos contextos e das suas «imagens culturais», podem ser mais influenciadas por interesses que não consideram as normas internacionais ou por interesses que levem em conta as normas internacionais4.
Partindo desta problemática, este artigo apresenta uma análise que compara as razões de poder material no nascimento da questão internacional de Timor em 1975, com as razões de poder normativo que, a partir de 1999, permitiram a sua resolução e propiciaram o nascimento do Estado de Timor-Leste.
O artigo organiza-se em três partes. Na primeira, desenvolvemos argumentos teóricos sobre as dimensões do poder e contextualizamos teoricamente o que designamos por razões do poder material e razões do poder normativo do nosso caso. Na segunda parte, apresentamos as razões de poder material que explicam as posições de neutralidade colaborante das principais potências ocidentais perante o projeto indonésio de anexação de Timor, bem como do congelamento da questão normativa internacional de Timor a favor da Indonésia. Na terceira e última parte, apresentamos as razões de poder normativo que permitiram o descongelamento e solução da questão de Timor, bem como as principais etapas políticas do início do processo que possibilitou a invenção de Timor como Estado independente, sublinhando o papel da ONU e de Portugal. O principal argumento do artigo é a demonstração da dinâmica da política internacional e da sua ligação relacional com a ascensão e queda das razões de poder material e de poder normativo na construção das sucessivas ordens internacionais.
O Poder e as suas Dimensões: Uma Visão Relacional
O poder é um conceito simultaneamente elusivo e óbvio. Como muitas das ideias centrais da Ciência Política e das Relações Internacionais (RI), o poder é mais fácil de identificar numa lógica qualitativa-weberiana de «tipo ideal», do que de um ponto de vista da análise empírica5. Depois, o próprio significado ontológico sobre o que é o poder e como funciona depende das interpretações e das «imagens culturais»6 dos atores: decisores, académicos, analistas e sociedade civil em geral.
De um ponto de vista científico, o poder é uma categoria difícil, complexa e multidimensional. De um ponto de vista prático, ou do senso comum, o poder é uma categoria fácil de apreender: A tem a capacidade de impor a sua vontade a B, ou não tem. Contudo, esta visão clássica do poder sobre os outros, na lógica impositiva hierárquica, não capta todas as dimensões do poder. Por isso, desde os estudos seminais de Dahl7, Boulding8 e Lukes9, é comum sintetizarmos três dimensões ou faces do poder principais: a dimensão impositiva e coerciva, a dimensão económica e transacional e a dimensão ideacional, normativa e afetiva. Utilizando a linguagem metafórica de Boulding10, existe o poder do «chicote» (coerção/punição), o poder da «cenoura» (recompensa/trade-off) e o poder do «abraço», do «amor e respeito» (normas, afetos, princípios éticos).
Assim, de uma forma simples, o poder é a capacidade de conseguirmos obter o que queremos com base em três dimensões: o poder de ameaça e da punição material, isto é, o poder de obrigar coercivamente os atores a agirem; o poder económico e de recursos materiais que deriva do poder de produzir e trocar bens e depende da acumulação e distribuição da propriedade desses recursos; e o poder integrador, que se relaciona com os fatores ideacionais e emocionais como o amor, a legitimidade normativa, o respeito, o afeto, a comunidade, a ética e a identidade. Neste contexto, de forma pioneira, Boulding explica que o poder de ameaça não deve ser visto de forma unidimensional e determinista, uma vez que a sua eficácia depende da sua relação com o poder económico e integrador.
Nas Relações Internacionais, desde Tucídides até Mearsheimer, o realismo tem elevado o poder à categoria fundamental da compreensão da política internacional. Por isso, muitas vezes, o realismo é identificado como sinónimo de power politics, ou Realpolitik. Todavia, como sublinha Wendt11, a ideia de que o poder é uma caraterística definidora da política internacional não é uma ideia unicamente realista. Os institucionalistas, os teóricos críticos, os construtivistas, os teóricos da dependência, os liberais e feministas, todos assumem que o poder é uma dimensão decisiva na política internacional.
Isto significa que é unânime a importância do poder na política internacional, o problema é o ângulo de visão com que as diversas teorias abordam o poder e, sobretudo, a forma tautológica característica da abordagem realista do poder. Para além das diferentes visões sobre o funcionamento do poder material, as Relações Internacionais têm desenvolvido importantes categorias conceptuais sobre as diferentes dimensões e aspetos do poder, como, por exemplo, o soft power e o smart power, teorizados por Nye12, bem como o compulsory power, o institutional power, o structural power e o productive power, teorizados por Barnett, Duvall e Baldwin13, ou ainda o normative power14 e as visões mais ideacionais e construtivistas sobre o poder.
Podemos ainda acrescentar outras teorizações mais ligadas à teoria política e social como o «poder simbólico» ou o «poder concertado» também conhecido como o «poder com os outros». O poder concertado é uma forma de poder gerada horizontalmente entre atores que, como sublinha Arendt, «atuam concertadamente»17. É a capacidade de um grupo se mobilizar para agir em conjunto na prossecução de objetivos comuns ou no apoio de valores comuns. A geração de «poder concertado» requer empenho, confiança e compromisso do grupo. Este compromisso pode ser orientado para a relação entre os atores ou para um objetivo comum. Enquanto o poder coercivo e o poder transacional dependem das capacidades materiais, dos recursos e dos instrumentos do uso da força, o poder concertado depende do número dos atores concertados e da sua convicção nos objetivos e obrigações comuns. Resta enfatizar que, como aqui se demonstra, este «poder concertado» pode funcionar na decisão de ativar as razões do poder material, ou na ativação das razões do poder normativo, muitas vezes de forma relacional.
Por razões óbvias é fácil de perceber as dificuldades de uma definição consensual sobre o poder, bem como a impossibilidade de aqui tratar de desenvolver as diferentes propostas analíticas sobre o poder. Assim, a discussão será limitada a duas perspetivas de análise sobre o poder nas relações internacionais que aplicamos ao nosso caso.
A primeira, que designamos de razões de poder material, baseia-se em uma visão mais objetivista-material, neoeconómica e relativamente mais unidimensional do poder assente nas hierarquias geopolíticas dos fatores (materiais) de poder dos Estados e na lógica consequencial da decisão. A segunda, que designamos de razões de poder normativo, baseia-se em uma visão mais relacional, interpretativa-ideacional, sociológica e multidimensional do poder, assente no poder dos fatores ideacionais, identitários e normativos e na lógica normativo-apropriada da decisão. Como aqui demonstramos, estas razões de poder, embora distintas, podem não ser exatamente contraditórias, existindo um permanente jogo dialético entre as razões de poder e as razões normativas na decisão política e na construção da ordem internacional.
As razões de poder material estão relacionadas com as visões mais racionalistas e tradicionais do poder ligadas ao poder da ameaça e à imposição do poder militar e aos interesses económicos. As razões de poder normativo estão relacionadas com uma visão mais sociológica do poder. Em primeiro lugar, implicam um entendimento do poder mais relacional e menos linear do que as conceções racionalistas do poder. Neste sentido, o poder não deriva apenas de uma lógica consequencial de utilização material de recursos e capacidades, mas também de uma lógica ideacional e normativa de interpretação legítima sobre a utilização destes recursos, em particular do uso da violência e da guerra (hard power).
Em segundo lugar, é importante ter em consideração que, para além das lógicas consequencial e normativa, existem, de forma interligada, as lógicas da argumentação, da persuasão e da comunicação pública da utilização das várias formas de poder que também contam bastante na atual política internacional. Construir uma argumentação de deslegitimação da utilização do hard power, bem como uma narrativa comunicacional eficaz e global também é decisivo nas atuais sociedades em rede e de comunicação globalizada. Esta argumentação comunicacional pública de deslegitimação do hard power não foi conseguida em 1975, mas, a partir da década de 1990, a resistência timorense, a política externa de Portugal e os movimentos de ativismo e solidariedade transnacional, muitas vezes concertadamente, conseguiram de forma eficaz contruir e difundir globalmente esta argumentação18.
Isto significa que a simples identificação de recursos e capacidades objetivas dos Estados não tem a mesma utilidade que uma visão que tenha em conta a forma como estes recursos e capacidades poderão ser usados e a forma como serão percecionados pelos outros atores. O que nos leva à essencial relação entre a legitimidade e o poder. Ou seja, o poder material na política internacional, a sua eficácia prática, não deriva apenas e fundamentalmente da assimetria de recursos e capacidades entre atores e da vontade de imposição dos interesses do ator com mais recursos face ao ator com menos recursos.
Uma visão estritamente materialista do poder, que em política internacional é muitas vezes sinónimo de Realpolitik, assume o poder como algo material que pode ser possuído, acumulado, medido e objetivamente observável. Por outro lado, o poder material é tradicionalmente equacionado como o poder sobre, ou seja, em termos de coerção. Esta visão sugere que o poder compreende as atividades e agência dos Estados com o intuito de atingirem determinadas consequências e objetivos, nomeadamente a imposição dos interesses dos materialmente mais poderosos contra os interesses dos menos poderosos. Ao longo dos últimos mil e quinhentos anos este funcionamento do poder não foi pouco usual. Pelo contrário, as «operações militares especiais» e consequentes invasões territoriais foram uma das principais formas de (re)construção das ordens internacionais.
Todavia, como a História e a consequente evolução normativa e legal demonstram, o uso da guerra é cada vez mais excecional19 e exige cada vez mais argumentos normativos convincentes. Isto significa que a utilização das razões de poder material sem as razões de poder normativo acaba, mais tarde ou mais cedo, por perder a sua eficácia. Como vários estudos argumentam, os líderes que iniciam guerras raramente se comportam com a racionalidade instrumental assumida pelas abordagens realistas e racionalistas. Por isso, historicamente, estes líderes da guerra perdem mais de metade das guerras que começam. Se considerarmos apenas o período após 1945, a frequência de fracasso destes movimentos ofensivos sobe para mais de 80%20.
Isto significa que, sobretudo no século XXI, para além da dimensão realista e material do poder importa compreender outras importantes dimensões do poder, nomeadamente a sua dimensão social, ideacional e normativo-legítima. No mundo contemporâneo, a imposição material do poder do mais forte é tanto mais eficaz quanto for acompanhada por um suporte de legitimidade de poder ideacional e normativo.
Isto significa que é necessário reconhecer que os movimentos políticos tradicionais de imposição hegemónica de poder envolvendo o uso da força ou de sanções económicas para implementar coercivamente políticas e normas internacionais são cada vez mais difíceis se não tiverem fortes argumentos de legitimidade e de justiça que os sustentem, bem como um largo poder de concertação entre atores na sociedade internacional. Num mundo cada vez mais complexo e globalizado não basta apenas persuadir ou impor aos governos a assinatura de tratados para se encontrarem soluções estáveis. Para além da tradicional diplomacia entre líderes, é tão ou mais importante que as soluções encontradas para os problemas globais sejam suportadas por uma diplomacia pública que envolva de forma decisiva as sociedades civis e os novos movimentos transnacionais, como também aconteceu com o caso da invenção de Timor.
Os Interesses e Hierarquias de Poder Material na Origem da Questão Timorense
Devido aos «choques percecionais» entre atores locais, nacionais e internacionais e ao consequente descarrilamento do processo de descolonização de Timor21, que não condizia com os projetos de poder da Indonésia para o território de Timor-Leste, no dia 5 de setembro de 1975 o Presidente Suharto e o general Moerdani reuniram-se e analisaram sete opções possíveis para resolver o problema de Timor. Estas opções iam de um convite à Indonésia, por parte de Portugal, para intervir diretamente, até ao envolvimento das Nações Unidas em que a Indonésia participaria.
Em função da perceção indonésia sobre o desenrolar dos acontecimentos, Suharto descartou todas as opções exceto o plano das operações especiais que descreveu como a via clássica. E foi assim que, a partir desta data, e sob o comando do general Moerdani, se começou a desenvolver um plano em que as Forças Armadas indonésias forneceriam voluntários bem armados que apoiariam a UDT e outras forças timorenses anti-FRETILIN, numa aposta clara para impedir que a FRETILIN se apoderasse completamente de Timor22.
O primeiro-ministro australiano, Whitlam, numa tentativa frouxa de acalmar os ânimos, ainda chega a afirmar que: «considerar a FRETILIN como comunista não ajuda à solução do problema»23. Mas, em última análise, a Austrália não quer tomar uma posição relativa a Timor que represente qualquer tipo de atrito que possa pôr em causa a sua política de boa vizinhança com a Indonésia e os respetivos interesses económicos.
Com efeito, em 1971 e 1972, a Austrália e a Indonésia tinham assinado acordos relativos aos interesses comuns na fronteira marítima e que excluíam, até ver, a área relativa ao «Timor Português». Entre 1974 e 1975 estavam em curso negociações para uma nova redefinição de áreas de influência fronteiriça dessa zona marítima, onde também se incluía o «Timor Português», que já se sabia ser muito rica. Por isso, em maio de 1974, John McCredie, diplomata australiano na embaixada em Jacarta, escreveu uma carta para o Departamento Australiano de Negócios Estrangeiros alertando para o seguinte:
«A absorção indonésia de Timor faz sentido do ponto de vista geopolítico. Qualquer outra solução a longo prazo seria potencialmente perturbadora tanto para a Indonésia como para a região. A sua (absorção) ajudaria a confirmar o nosso acordo sobre os fundos marinhos com a Indonésia. Deverá induzir uma maior prontidão da sua parte (Jacarta) para discutir a política marítima da Indonésia.»24
Para além da questão dos interesses nos recursos do mar de Timor, o fator mais importante na posição australiana derivava de considerações de poder estratégicas e de segurança regional inscritas na visão tradicional da política externa e de defesa australiana. Importa sublinhar que a visão tradicional da política externa australiana assume uma necessidade geopolítica de boas relações com a Indonésia. Com mais de 17 mil ilhas e mais de 200 milhões de pessoas, o poder geopolítico da Indonésia sempre foi de importância vital para a Austrália. A Indonésia pode não ser uma ameaça direta à segurança australiana. Todavia, as doutrinas geopolíticas tradicionais (realistas) na Austrália sublinham que qualquer ameaça séria tem de surgir ou passar por aquele arquipélago.
Esta perceção tradicional sempre exigiu um bom relacionamento com a Indonésia e fez da estabilidade desse relacionamento uma das principais prioridades do interesse nacional australiano. São estes princípios estratégicos que explicam que a Austrália tivesse sempre aceitado os governos indonésios, independentemente do seu histórico normativo. Apesar de vários atores políticos e da sociedade civil australiana serem críticos das violações normativas da Indonésia, nomeadamente no regime da Nova Ordem, ao nível do poder governativo a necessidade de criar estabilidade e paz durável na sua área regional sempre falou mais alto25.
Foram sobretudo estas perceções estratégicas relativas ao poder material de equilíbrio e segurança regional que influenciaram o governo de Whitlam a apoiar a incorporação de Timor na Indonésia a partir de finais de 197426. Whitlam valorizava o anticomunismo de Suharto, mas, sobretudo, valorizava a sua atitude amigável para com a Austrália, e isto era demasiado importante para ser posto em causa devido a Timor27.
A acrescentar a esta visão estratégica dominante no seio do Governo e da diplomacia australiana, existia outra visão - também ela fortemente embebida numa visão do mundo racionalista-utilitária - que se prendia com a possibilidade de Timor ser um Estado economicamente inviável. Por isso, Whitlam disse a Suharto, em setembro de 1974, que:
«O “Timor Português” era demasiado pequeno para ser independente. Era economicamente inviável. A independência seria indesejável para a Indonésia, para a Austrália e para outros países da região, porque um “Timor Português” independente tornar-se-ia inevitavelmente um foco de atenção para outros fora da região.»28
Como a documentação oficial demonstra29, em 1974, o Governo australiano sob a liderança de Gough Whitlam era contra a influência colonial portuguesa e sempre defendeu que uma união pacífica com a Indonésia seria o único caminho viável para Timor-Leste. Numa conversa privada, o primeiro-ministro australiano, Whitlam, informou os seus funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros do seguinte: «Sou a favor da incorporação, mas tem de se obedecer à autodeterminação. Quero-o incorporado, mas não o quero feito de tal forma que isso possa criar argumentos na Austrália para tornar as pessoas ainda mais críticas da Indonésia»30.
Em 1975, mesmo após o governo liderado por Witlham cair, o novo Governo australiano, do Partido Liberal-Nacional, que inicialmente, na oposição, tinha sido crítico das ações indonésias, assumiu que as boas relações externas com a Indonésia eram mais importantes do que o apoio à autodeterminação de Timor-Leste.
Esta era também a posição do Reino Unido. Logo em março de 1975, o Foreign Office recomenda que «a eventual integração de Timor com a Indonésia é provavelmente a resposta certa»31. Com efeito, o embaixador britânico em Jacarta, John A. Ford, assume e recomenda que «é do interesse da Grã-Bretanha que a Indonésia absorva “Timor-Leste” o mais rápido e discretamente possível; e que, se se chegar a uma crise e houver uma disputa nas Nações Unidas, devemos manter a cabeça baixa e evitar tomar partido contra o Governo indonésio»32.
Esta visão é novamente assumida quando Sir Michael Palliser visita a Indonésia em outubro e elabora o seu relatório. Neste documento, o diplomata britânico conclui que o Reino Unido deve manter-se o mais afastado possível do problema relativo ao futuro de Timor, pois não existem interesses britânicos em jogo em Timor. Na sua opinião, a resposta correta para Timor é a da sua incorporação na Indonésia, concordando com o Governo australiano que esta é a melhor opção para a estabilidade regional33.
Estas posições, especialmente a australiana, foram claramente percecionadas pelos líderes indonésios, nomeadamente pelo general Ali Moertopo, como um «sinal verde»34 para a anexação indonésia de Timor. Aliás, é importante recordar que esta possibilidade, ou, se quisermos, a opção estratégica da Indonésia integrar o «Timor Português», foi um dado equacionado logo a partir da década de 1960. Desde essa altura que existia uma determinada convergência de interesses geopolíticos entre a Indonésia e a Austrália relativamente ao futuro do «Timor Português»35. Deste modo, a Austrália limitou-se a ser uma testemunha silenciosa da opção indonésia de invadir Timor36.
Do princípio ao fim da crise em Timor, a Austrália adotou uma política de abstenção colaborante37 que é bem sintetizada nas palavras do embaixador australiano na Indonésia, Richard Woolcott. Este, dirigindo-se ao seu primeiro-ministro, aconselha o seguinte:
«Daqui sugiro que as nossas políticas se baseiem tanto quanto possível num distanciamento em relação à questão de Timor; retirar de Timor os australianos que, atualmente, lá se encontram; deixar que os acontecimentos sigam o seu curso; e se e quando a Indonésia intervier, agir de forma a minimizar o impacto público na Austrália e a mostrar em privado à Indonésia que compreendemos os seus problemas.»38
Esta política de abstenção colaborante é assumida como a melhor para a Austrália e revela bem o ambiente normativo e ideacional da época. Nesta altura, os decisores e agentes diplomáticos australianos estavam completamente embebidos numa visão do mundo dominada pela Realpolitik das esferas de influência da Guerra Fria.
O embaixador australiano Woolcott, de uma forma simultaneamente curiosa e exemplar, não deixa de assinalar o dilema entre as normas e os interesses quando afirma na sua mensagem ao primeiro-ministro: «Sei que estou a recomendar uma posição mais pragmática do que de princípios, mas os interesses nacionais e a política externa são isso mesmo.»39
No início de dezembro, o projeto de anexação indonésio entra em velocidade de cruzeiro. A Indonésia utiliza a Declaração de Balibó40 como instrumento de legitimidade local para a sua intervenção militar de anexação do território. No dia 4 de dezembro, a Indonésia faz questão de enviar uma carta ao secretário-geral da ONU informando-o dos desenvolvimentos recentes do processo timorense, nomeadamente da posição violenta e unilateral da FRETILIN, da constatação da incapacidade de Portugal controlar a situação, e da sua compreensão pela natural proclamação dos outros partidos políticos em assumirem a integração de Timor na Indonésia41. Em face destes desenvolvimentos, o embaixador indonésio na ONU sublinha que o seu governo «tomará todas as medidas necessárias para garantir a segurança do seu território nacional, para defender a soberania do Estado e para proteger a população contra o assédio externo»42.
Faltaria só uma carta-branca da superpotência norte-americana. E é precisamente isso que tem lugar no dia 5 de dezembro, quando o Presidente Ford e Henry Kissinger visitam Jacarta. Convém recordar que, pelo menos desde o dia 30 de dezembro de 1974, a Administração norte-americana tinha conhecimento dos projetos da Indonésia de incorporar Timor, possivelmente pela força militar43. Um dia antes da visita do Presidente Ford e do secretário de Estado Kissinger à Indonésia, o Departamento de Estado informou Kissinger da intenção da Indonésia desenvolver «uma grande intervenção militar em Timor entre 6 e 8 de Dezembro»44. Prevendo que a iniciativa indonésia criaria embaraços à visita do Presidente dos Estados Unidos, é sugerido ao Governo indonésio «não tomar qualquer ação militar até muito tempo depois da partida do Presidente de Jacarta»45, o que efetivamente aconteceu. Neste contexto, Kissinger foi claro ao afirmar: «É importante que o que quer que se faça funcione rapidamente. Seremos capazes de influenciar a reação na América se o que quer que suceda ocorra após o nosso regresso»46.
Um dia depois, em Jacarta, o ministro dos Negócios Estrangeiros indonésio, Adam Malik, convoca oito embaixadores ali acreditados, informando-os que não deveriam surpreender-se «sobre o próximo passo em relação à situação no “Timor Português”»47. Na madrugada do dia seguinte, 7 de dezembro, a Indonésia inicia a operação especial de invasão militar do território do «Timor Português».
No mesmo dia, pelas 18 horas em Lisboa, reúne-se de urgência o Conselho de Ministros presidido pelo Presidente da República português. No final desta reunião, Portugal emite um comunicado em que condena veementemente a agressão militar indonésia e considera que a Indonésia não respeitou o acordado em Roma48. Bem pelo contrário, a atuação do Governo indonésio pautou-se por uma política concertada de inviabilizar as conversações e de apoio militar aos partidos pró-Indonésia. Portugal decide cortar relações diplomáticas com a Indonésia e
«recorrer às Nações Unidas, particularmente ao Conselho de Segurança, para a obtenção da cessação imediata da intervenção militar da Indonésia em território de Timor e uma solução pacífica e negociada do conflito e do processo de descolonização sob a sua égide»49.
Esta será a opção central que conduzirá a política externa de Portugal: a internacionalização da questão de Timor junto da ONU50. Portugal dirige-se imediatamente ao presidente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, informando-o da ação ofensiva ilegal da Indonésia sobre o território de Timor. Portugal sublinha o carácter antinormativo da ação indonésia e explicita que o comportamento condenável do Governo indonésio em Timor impossibilita Portugal, potência administrante, de prosseguir e concluir o processo de autodeterminação de acordo com as normas da ONU.
Quase de imediato, primeiro através de uma resolução da Assembleia Geral do dia 12 de dezembro de 1975 e posteriormente através de uma resolução do Conselho de Segurança de 22 de dezembro de 1975, Portugal obtém o apoio normativo da ONU à sua reivindicação sobre a legitimidade jurídica internacional e a consequente crítica legal da ação militar da Indonésia em Timor. Nascia, assim, a «questão de Timor» no quadro da comunidade internacional.
Apesar de alguns movimentos adaptativos, a questão central da autodeterminação e saída da Indonésia de Timor esteve durante as décadas de 1970, 1980 e 1990 congelada, em larga medida, pela política dos interesses geopolíticos da Guerra Fria. Contudo,
o congelamento da questão de Timor não pode ser explicado independentemente do poder da Indonésia e da sua capacidade de neutralizar as normas da ONU, da sua estratégia de normalização do facto consumado da sua «operação especial» e consequente anexação de Timor, bem como da estrutura normativa da ordem internacional que possibilitava essa normalização.
Como se analisa a seguir, foi necessário esperar vinte e cinco anos para que um conjunto interligado de mudanças possibilitasse o desenvolvimento de um processo de autodeterminação em Timor. Sobretudo, a mudança na estrutura normativa da ordem internacional, o fim do regime da Nova Ordem e a socialização da importância da razão normativa da diplomacia de resistência dos timorenses e da política externa portuguesa, proporcionaram que, finalmente, o poder das normas triunfasse sobre o poder das hierarquias materiais e fosse possível construir um interesse internacional51 partilhado para resolver a questão de Timor.
O Poder das Normas no Descongelamento da Questão na ONU e na Invenção de Timor
A Aprovação da UNTAET e o Início da Invenção de Timor: Inovação e Desafios
No dia 25 de outubro de 1999, agora com uma votação por unanimidade, o Conselho de Segurança autoriza a proposta submetida pelo secretário-geral no dia 4 de outubro e institui a United Nations Transitional Administration in East Timor (UNTAET) com um forte mandato político e administrativo52. Para liderar esta importante missão de organização e reconstrução estatal, foi escolhido o prestigiado diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello. Vieira de Mello tinha uma larga experiência em missões da ONU, desde o seu trabalho no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), passando pelas missões humanitárias e de manutenção da paz na década de 1970 e 1990, tendo sido nomeado, em 1998, secretário-geral-adjunto para os Assuntos Humanitários.
Com a Resolução 1272, o Conselho de Segurança institui a UNTAET e adota um mandato claro que define quatro prioridades básicas: 1) a manutenção da lei e ordem; 2) o estabelecimento de uma administração eficaz, nomeadamente na assistência e coordenação da ajuda humanitária; 3) a assistência e suporte de capacity-building for self-government; 4) o estabelecimento de «conditions for sustainable development»53.
Ficava assim definida a grande tarefa da ONU em Timor: patrocinar e desenvolver as condições e práticas de construção de um Estado independente e sustentável. Esta tarefa implicou uma forte ligação entre a UNTAET e um vasto número de agências da ONU que operavam nos domínios da ajuda humanitária e no desenvolvimento de condições de bem-estar económico e social.
Recorde-se que, no seguimento dos acordos de maio, e do estabelecimento da United Nations Mission in East Timor (UNAMET), os principais pressupostos do plano internacional para Timor eram que, independentemente do resultado da votação do referendo, o processo conducente à implementação do resultado seria gradual e organizado em três fases. A Fase I era relativa à organização e efetivação do referendo e correspondia ao período entre a celebração dos acordos de Nova York e a realização da votação em 30 de agosto. Depois da votação, e no pressuposto de que o resultado seria favorável à independência, existiria um período precário de dois a três meses até que a Indonésia, através do seu parlamento, aceitasse ratificar o resultado do referendo. Durante este período, uma pequena missão de acompanhamento, a UNAMET II, iria fazer os preparativos para possibilitar uma presença da ONU de médio a longo prazo. A Fase II correspondia ao período entre a eleição e a aplicação dos seus resultados54.
Na última fase, a UNAMET III seria estabelecida como entidade governativa que teria a responsabilidade de instituir em todo o território timorense uma autoridade de transição que supervisionaria a retirada gradual da administração indonésia e das suas forças militares e assumiria o controlo do governo do território durante uma fase transitória e que, finalmente, prepararia Timor para ser entregue a um governo timorense independente55. A Fase III correspondia ao período durante o qual, após a oficialização dos resultados do referendo, estes começariam a ser institucionalmente implementados56.
Todavia, este plano minimalista de transição suave foi posto em causa pela onda de destruição e violência do período pós-referendo. Isto colocou ainda mais desafios à missão da UNTAET, já de si difícil devido aos tradicionais problemas relacionados com os choques entre a verticalidade tecnocrática das decisões das elites da ONU e a horizontalidade social e identitária das aspirações dos atores e elites locais. Esta é uma das razões clássicas para as visões críticas sobre a «paz liberal» das missões de paz da ONU57. Sem ser possível negar os problemas das missões de paz da ONU, apetece parafrasear a famosa frase de Churchill58 sobre a democracia: as missões de paz da ONU têm muitos problemas e são, em vários e importantes aspetos, uma solução com defeitos, mas não existe nada melhor59.
O estabelecimento da UNTAET seria uma missão integrada e multidimensional de peacekeeping com total responsabilidade pela administração de Timor durante o período de transição até à independência efetiva do território. Inicialmente, a UNTAET tinha um mandato que se estendia por um período que ia até ao dia 31 de janeiro de 2001.
A UNTAET era uma missão dotada de vastos poderes, «com responsabilidade geral pela administração de Timor-Leste», bem como «com poderes para exercer toda a autoridade legislativa e executiva, incluindo a administração da justiça»60. A UNTAET tinha uma componente integrada de governo e administração pública, bem como uma componente de segurança61, que era composta por 200 observadores militares e por 8950 militares efetivos. Estas forças de segurança tinham sido autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU ao «tomar todas as medidas necessárias para cumprir o seu mandato»62.
Até aqui a ONU nunca tinha assumido a administração de um país de raiz, sem qualquer tipo de instituições preexistentes. A UNTAET não estava apenas a ajudar o governo de um país, ela era o governo e estava a tentar construir um Estado das cinzas. Em todos os aspetos fundamentais, a UNTAET era o governo formal de Timor-Leste e os poderes legislativo e executivo passavam pelas mãos do representante especial do secretário-geral e administrador transitório, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que também era o chefe da ONU no Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários. Todos estes poderes extraordinários conferidos pela Resolução 1272 tinham um objetivo claro: fazer nascer um Estado livre e democrático em Timor.
Neste esforço de construção do Estado timorense, Portugal teve um papel relevante. Não conseguiu competir completamente em matérias de hard policy com a Austrália, mas no que toca a matérias de soft policy e recursos humanos civis, como, por exemplo, ao nível da educação e da definição constitucional e administrativa do novo Estado de Timor, Portugal conseguiu com sucesso marcar a identidade da cultura e da língua portuguesa e fazer de Timor um Estado integrante da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Apesar de a ONU ser a única instituição com capacidades para assumir este tipo de funções, ainda existe um longo caminho a percorrer neste tipo de missões e não se pode escamotear que as dificuldades foram tão grandes ou maiores do que as oportunidades. O próprio Kofi Annan reconheceu as dificuldades da missão da ONU em Timor ao afirmar que: «Anteriormente, a Organização nunca tinha tentado construir e gerir um Estado. Nem teve oportunidade de se preparar para esta missão; a equipa em Timor-Leste teve de ser reunida ad hoc e ainda carece de conhecimentos importantes numa série de campos»63.
A UNTAET era efetivamente uma missão difícil e exigente num contexto de construção de um Estado numa situação muito frágil. Kofi Annan tinha uma clara consciência sobre o desafio que se colocava à ONU e à comunidade internacional. A sua convicção era que o processo de implementação da missão da UNTAET iria exigir pelo menos dois a três anos de presença direta da ONU em Timor64.
Recordando os Tempos Heroicos: as Primeiras Iniciativas de Construção do Estado
Conseguido o referendo de autodeterminação de Timor e a saída do Governo indonésio, agora os problemas mais prementes eram os que diziam respeito à construção do Estado, nomeadamente a reconstrução das infraestruturas básicas, o repatriamento dos refugiados65 e a institucionalização de um Estado de direito.
Estes assuntos vão ser discutidos na Conferência de Doadores em Tóquio em meados de dezembro, onde se alcançou 520 milhões de dólares para a ajuda ao desenvolvimento e reconstrução de Timor para os três anos seguintes. O grande desafio era o de recolher todos estes auxílios económicos rapidamente e traduzi-los num eficaz esforço de reconstrução. Isto era essencial, pois todos tinham consciência de que só através de um aumento real e rápido do bem-estar dos timorenses seria possível um desenvolvimento sustentável e a criação de um Estado de Timor independente, democrático e sustentável.
Apesar das dificuldades, o processo de reconstrução do Estado de Timor continuou com a ajuda dos países doadores, do Banco Mundial, da ONU e de muitas organizações da sociedade civil internacional especializadas na ajuda ao desenvolvimento. Em Lisboa, no dia 23 de junho de 2000, a comunidade de doadores compromete-se a continuar a apoiar a reconstrução de Timor-Leste e do seu novo governo, e aprova um programa de trabalho para o desenvolvimento do território timorense a iniciar em dezembro de 2000. Os doadores definem o seu apoio para preencher a lacuna de financiamento de 16 milhões de dólares para o exercício seguinte.
No dia 27 de outubro de 1999, The Consolidated Inter-Agency Appeal for East Timor, liderada pelo Banco Mundial, é lançada em Genebra para angariar 199 milhões de dólares para fazer face às primeiras necessidades da situação de urgência humanitária, até junho de 2000. Mais tarde, no dia 21 de fevereiro de 2001, o presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, Xanana Gusmão e o representante especial do secretário-geral assinam um acordo para o desembolso de 21,5 milhões de dólares no prazo de dois anos e meio, para a ajuda ao desenvolvimento em projetos comunitários e de governo local66.
Também nesta fase, Portugal teve um papel ativo. No seguimento da criação do Comissário para o Apoio à Transição em Timor-Leste (CATTL), com a função de «coordenar a elaboração e execução dos programas e ações de apoio durante o período de transição previsto nos acordos de Nova Iorque de 5 de maio de 1999»67, Portugal lançou um programa de ajuda a Timor no pós-referendo, denominado Missão Humanitária Timor’9968. Esta missão de ajuda humanitária internacional tinha como objetivo a deslocação imediata para o território para cooperar no esforço humanitário e colaborar com o ACNUR, o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICR), a Organização Internacional das Migrações (OIM), o Word Food Program (WFP) e a UNAMET. Esta missão portuguesa tinha o comando operacional do Serviço Nacional de Proteção Civil e era composta por uma equipa multidisciplinar de voluntários do Ministério da Saúde, Serviço Nacional de Bombeiros, Instituto Nacional de Emergência Médica, Cruz Vermelha Portuguesa, Guarda Nacional Republicana e Polícia de Segurança Pública, bem como de voluntários de várias ONG portuguesas. Integradas e desenvolvidas a partir desta missão, existiram também as designadas Missões Técnicas de Avaliação nas áreas das infraestruturas de logística e telecomunicações, bem como nas áreas da saúde e da educação.
Esta missão chegou a Díli no dia 26 de setembro e progrediu numa primeira fase até dezembro, onde passou a ser designada por Missão Humanitária de Apoio ao Desenvolvimento de Timor. A partir daqui os seus objetivos já não se limitavam à ajuda de emergência de prestação de cuidados de saúde primários e de ações de socorro e assistência, mas também numa aposta na formação profissional de timorenses nestas duas áreas69.
Portugal desenvolveu um grande esforço de ajuda e cooperação com Timor. Podemos mesmo dizer que a partir daqui, e nos anos seguintes, Portugal investiu mais no desenvolvimento de Timor e na ajuda à sua reconstrução e independência do que nos quatrocentos anos anteriores, período durante o qual Timor era um território sob sua soberania. Logo a seguir ao Japão, Portugal foi o país doador que mais contribuiu para a reconstrução de Timor. Até 31 de dezembro de 2001, a contribuição de Portugal na área da cooperação civil foi de 117 milhões de dólares e mais 50 milhões para o fundo de desenvolvimento de Timor-Leste gerido pelo Banco Mundial. Entre 1999 e 2007, Portugal concedeu mais de 440 milhões de euros em ajuda ao desenvolvimento a Timor-Leste, o que significou quase metade do bolo total da política portuguesa de cooperação.
Esta fase inicial de emergência humanitária e de reconstrução das infraestruturas básicas de Timor decorreu, apesar de tudo, dentro da normalidade sob o governo da UNTAET e do seu chefe de missão, o representante especial do secretário-geral e administrador transitório, Sérgio Vieira de Mello, que entra em funções em Timor-Leste no dia 17 de novembro de 1999. Ainda que com uma articulação, por vezes, complexa com os líderes timorenses, o administrador transitório, em consulta com a liderança política timorense, estabeleceu o Conselho Consultivo Nacional (NCC na sigla inglesa). Este era um órgão político composto por 11 timorenses e quatro membros da UNTAET para supervisionar o processo de tomada de decisões durante o período de transição para a independência. O NCC foi consultado e concordou com uma série de regulamentos e normativos de urgência necessária para estabelecer uma administração eficaz no território. Estes incluíram: a criação de um sistema jurídico, o restabelecimento de um poder judiciário, o estabelecimento de uma moeda oficial, a criação de controlos sobre as fronteiras, um sistema de fiscalidade e a criação do primeiro orçamento consolidado para Timor-Leste70.
Esta fase de transição técnica, em que a UNTAET assumiu o governo e a regulação da implementação dos programas de reconstrução das infraestruturas e dos quadros jurídicos-institucionais básicos, desenvolveu-se entre 1999 e 2001. No dia 17 de janeiro de 1999, o Gabinete de Transição de Timor-Leste aprova o projeto de regulamento que institui uma força de defesa de Timor-Leste e prevê o registo dos partidos políticos. No dia 16 de março, após a assinatura do regulamento sobre a eleição de uma Assembleia Constituinte, o representante especial do secretário-geral, Sérgio Vieira de Melo, anuncia que a primeira eleição democrática em Timor-Leste será realizada em 30 de agosto de 2001. No dia seguinte, a UNTAET começa o registo civil da população timorense. No dia 23 de junho, o registo civil termina depois de 778 989 timorenses terem sido registados e emitidos os respetivos bilhetes de identidade temporários.
A partir daqui, nomeadamente após as eleições constituintes de 30 de agosto, inicia-se o desafio mais complexo, que era o de começar a desenvolver um quadro político-institucional pós-UNTAET. Ainda que com o apoio e presença da ONU71 e das ONG, era fundamental tornar Timor de facto e de jure um Estado independente, com instituições políticas próprias, um governo de timorenses para os timorenses.
Deste modo, em 30 de agosto de 2001, dois anos após a consulta popular, mais de 91% dos eleitores de Timor-Leste foi às urnas novamente, desta vez para eleger os 88 membros da Assembleia Constituinte72. Caberá a esta Assembleia a responsabilidade de redigir e adotar uma nova Constituição que, finalmente, irá estabelecer o quadro para as eleições futuras e para uma transição para a independência total de Timor.
No dia 20 de setembro, são empossados os novos 24 membros do Conselho de Ministros do Governo Transitório de Timor-Leste. Este novo Conselho substituiu o Gabinete de Transição, criado em 2000. Neste quadro, a Assembleia Constituinte e estes novos representantes governativos são um passo fundamental para que os timorenses se comecem a adaptar à governação de Timor-Leste durante o restante período de transição, antes da sua completa independência como Estado democrático e soberano.
No dia 22 de outubro, o presidente da Assembleia Constituinte, Francisco Guterres, assina a resolução que aprova uma recomendação da Assembleia que prevê que a UNTAET devolva a soberania de Timor a um governo timorense democraticamente eleito no dia 20 de maio de 2002.
Finalmente a Independência: Uma Vitória do Poder Normativo
No dia 22 de março de 2002, a Assembleia Constituinte de Timor-Leste ratifica o texto constitucional, entrando assim em vigor a primeira Constituição de Timor. No dia 14 de abril realizam-se as primeiras eleições presidenciais. O líder histórico, Xanana Gusmão, vence com 82,7% dos votos e passa a ser o primeiro Presidente da República eleito de Timor-Leste. Com estas duas condições prévias asseguradas, o processo de transição constitucional em Timor completa-se no dia da independência, 20 de maio de 2002, com a transformação da Assembleia Constituinte Timorense no Parlamento de Timor e com a tomada de posse oficial de Xanana Gusmão.
Neste dia histórico, realizou-se a cerimónia da independência em Timor, onde estiveram presentes os principais atores políticos internacionais na questão timorense, com particular destaque para Kofi Annan, Bill Clinton, John Howard e para a nova Presidente da Indonésia, Megawati Sukarnoputri.
Portugal foi representado pela maior e mais expressiva delegação internacional, o que refletiu a natural relação de proximidade com o povo e a causa timorense. O destaque especial vai para as presenças do Presidente da República, Jorge Sampaio, do ex-primeiro-ministro, António Guterres, do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, e do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, na altura primeiro-ministro, Durão Barroso.
Antes da cerimónia oficial começar, Jorge Sampaio deslocou-se à Embaixada de Portugal em Díli e, tal como já tinha acontecido dois anos antes, na sua primeira visita a Timor, não conseguiu travar as emoções. Nesta receção à comunidade portuguesa, e no momento em que se dirigia ao padre João Felgueiras73 para o condecorar, o Presidente português não conteve as lágrimas74.
O clima era, de facto, de grande tensão emocional e também o ex-Presidente norte-americano, Bill Clinton, visivelmente feliz, deu os parabéns à mais jovem nação mundial. Diante do edifício acabado de inaugurar da Embaixada americana em Díli, Clinton afirmou: «Sinto-me muito honrado em estar aqui porque estivemos muito envolvidos na luta do povo de Timor-Leste, e muito empenhados no dia de hoje.»75
Ao fim da tarde, no seu primeiro discurso oficial como Presidente do novo Estado, Xanana, de forma paradigmática, enumerou em modo de agradecimento os principais atores que determinaram a resolução da questão timorense. Prestou homenagem a Kofi Annan e aos altos funcionários do Secretariado da ONU que se empenharam política e pessoalmente com a causa timorense, nomeadamente, Jamsheed Marker, Francesc Vandrel e Tamrat Samuel, que tiveram em vários momentos uma ação decisiva na defesa dos interesses da causa timorense. Também não são esquecidos os chefes da UNTAET e da UNAMET, respetivamente, Ian Martin e Sérgio Vieira de Mello. Seguem-se as importantes referências ao Presidente Habibie, ao primeiro-ministro John Howard e a Bill Clinton76.
Relativamente a Portugal, foi enaltecida a sua identidade universalista e lusófona e a sua capacidade de ter assumido Timor como uma causa nacional77. Xanana Gusmão agradece explicitamente
«a todos os governantes e diplomatas portugueses que souberam interiorizar a causa timorense, com especial relevo ao Presidente Jorge Sampaio, ao Presidente Joaquim Chissano, ao Eng. António Guterres, Dr. Jaime Gama e ao atual primeiro-ministro, Durão Barroso, pelo relevante papel que desempenhou enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros»78.
De uma forma particularmente simbólica, este seu primeiro discurso foi pronunciado em três línguas e reflete uma síntese feliz dos principais obreiros da autodeterminação de Timor. O discurso começa em inglês, a língua franca da diplomacia internacional e da opinião pública internacional. Aqui, Xanana enfatiza a comunidade internacional - o Secretariado e o Conselho de Segurança da ONU - bem como a sociedade civil internacional. Depois, passa para o português, enfatizando a diplomacia e os decisores políticos de Portugal e ainda a identidade solidária e o apoio dos Estados da CPLP. Finalmente, Xanana termina em tétum, dirigindo-se diretamente ao povo de Timor-Leste, o verdadeiro herói da causa timorense.
No dia 27 de setembro de 2002, a Assembleia Geral da ONU admite com entusiasmo o seu centésimo nonagésimo primeiro Estado-Membro. A República Democrática de Timor-Leste entra para a ONU como o mais recente membro da comunidade internacional. Timor vai reforçar a comunidade das democracias e a comunidade de Estados-Membros de língua portuguesa. É uma vitória notável e uma história exemplar, em primeiro lugar do povo timorense, mas não deixa de ser também uma vitória do poder normativo da ONU e da política externa portuguesa.
Conclusão
Como analisado, em 1975, a ideia do perigo do contágio comunista a Timor-Leste condicionou a formatação das perceções dos atores internacionais. Contudo, isto só foi decisivo devido às características estruturais e normativas da conjuntura da ordem internacional da época. Isto é, devido à estrutura de poder hierárquico da Guerra Fria dominada pela estratégia de ocupação de espaços e ao correspondente ambiente geopolítico e ideacional de contenção versus expansão do comunismo. Esta conjuntura, juntamente com a perceção indonésia e norte-americana de perigo de um desvio comunista em Portugal e Timor, facilitou a opção de anexação de Timor por parte da Indonésia79.
A perceção de um Timor comunista foco de contágio e instabilidade regional, numa lógica de efeito dominó, funcionou a favor da Indonésia. Todavia, importa questionar se foi a estrutura da Guerra Fria que condicionou a Indonésia, ou se foi a agência dos líderes da Indonésia que aproveitaram essa conjuntura para legitimarem a sua opção de imposição de poder material. Dito de outra forma, se não existisse a perceção da FRETILIN como um perigo comunista, a Indonésia da Nova Ordem teria permitido um Timor independente? Não creio. Isto significa que, sem negar a importância do ambiente de Guerra Fria e as suas razões estruturais, importa ter uma leitura mais sofisticada e relacional entre a estrutura e a agência no nascimento da questão timorense. Como identificado, mesmo as potências regionais, como a Austrália, estavam mais interessadas numa política de boa vizinhança e de interesses económicos e de segurança mútuos, do que com o perigo do contágio comunista. Já os Estados Unidos, sobretudo Kissinger, tinham a sua famosa perceção sobre a política internacional baseada num tabuleiro de xadrez, onde imperava a lógica da ocupação de espaços da Guerra Fria80.
Contudo, o que este artigo demonstra é que, em 1975, todas as principais potências relegaram os princípios e normas de autodeterminação para segundo plano, em favor dos interesses de poder material, geopolítico e económico. Em última análise, nenhum dos atores internacionais tinha interesse em entrar em conflito com a Indonésia. Embora cada um com o seu estilo e cultura política particular, tanto os Estados Unidos, como a Austrália, como o Reino Unido, tiveram, sem exceção, uma política geral de abstenção colaborante com a Indonésia na sua política de incorporação de Timor.
Nesta altura, o dilema entre o poder material e o poder das normas - nomeadamente das ideias e normas de autodeterminação - foi claramente ultrapassado em favor das razões do poder material e dos interesses económicos e geopolíticos. Isto durou até à década de 1990.
Diferentemente de 1975, em 1999, a ONU, os Estados Unidos, a Austrália, o Reino Unido e mesmo vários decisores indonésios passaram a percecionar o caso de Timor como uma violação das normas que importava solucionar. Neste contexto, o caso de Timor-Leste é uma demonstração clara da importância do novo ambiente normativo e político da era pós-Guerra Fria e da ascensão normativa dos direitos humanos. O caso de Timor colocou novas questões à ingerência humanitária, chamou a atenção para novos desafios e dimensões das operações de manutenção da paz da ONU e provou a possibilidade do poder normativo da comunidade internacional para solucionar conflitos internacionais.
Finalmente, o nascimento do Estado timorense, para além de ser um caso excecional, em que as ideias e a identidade de um povo conseguiram triunfar sobre o poder militar de ocupação de um estado poderoso, não pode também deixar de ser entendido à luz de uma das mais brilhantes páginas da política externa portuguesa, bem como de uma das mais excecionais demonstrações da solidariedade do povo português.
Neste quadro, não podemos deixar de sublinhar que o caso de Timor representou um importante fator de renovação ideacional da política externa portuguesa. Podemos mesmo afirmar que, através de Timor, a política externa de Portugal viu reforçada a sua identidade normativa e multilateral, bem como a sua reputação democrática e legitimidade internacional. Por tudo isto, concordamos com o embaixador Seixas da Costa quando enfatiza que «a diplomacia portuguesa deve muito a Timor»81.
Pedro Emanuel Mendes Investigador auxiliar do IPRI-NOVA. Os seus artigos aparecem nas seguintes publicações: Análise Social, Relações Internacionais, Brazilian Journal of International Relations, População e Sociedade, Estudos Internacionais (PUC-Minas), Austral: Journal of Strategy & International Relations, Tempo e Argumento, Dados: Revista de Ciências Sociais, Revista Brasileira de História, Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, História da Historiografia, Opinião Pública e Ler História.