Introdução
Monsenhor D. Martinho da Costa Lopes foi administrador apostólico de Díli entre 23 de outubro de 1977 e 12 de maio de 1983. Antes tinha sido vigário-geral da diocese de Díli, desde 3 de outubro de 1975, nomeado pelo bispo de Díli, D. José Joaquim Ribeiro, prelado entre 1967 e 1977. Quando foi promovido a administrador apostólico, deixou de estar sob a alçada da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), passando diretamente para a jurisdição do Papa, não tendo ficado com os indonésios que o queriam na Conferência Episcopal da Indonésia (MAWI), uma organização que representa somente 2% da população da Indonésia, maioritariamente islâmica. D. Martinho da Costa Lopes era um homem de 59 anos e durante cinco anos e meio ficou à frente da diocese de Díli, com uma proteção precária da parte da Santa Sé e do pronúncio em Jacarta, que tendia a defender as posições indonésias.
Em primeiro lugar, vamos abordar a relação entre o poder colonial e a Igreja. Em segundo lugar, o que levou os indonésios a exigirem a substituição por um bispo indonésio e mais tarde pelo monsenhor D. Filipe Ximenes Belo. Com a saída do administrador apostólico de Díli, em 12 de março de 1983, os indonésios tinham uma vaga esperança de que Timor-Leste viesse a tornar-se mais afeiçoado à Indonésia. Foi exatamente o contrário que sucedeu.
A Relação entre o Estado e a Igreja na Segunda Metade da Década de 1960 e na Década de 1970
Teoricamente este trabalho enquadra-se no tema referenciado em Relações Internacionais como o ator não estatal, i.e., non-states actor, designadamente a Igreja Católica, com dois mil anos, e que ao longo do tempo foi um ator muito forte, estando na atualidade reduzida a 44 hectares personificados no Estado da Santa Sé.
No caso de Timor-Leste, o povo nunca viu a sua incorporação na Indonésia como um dado adquirido, visto que Portugal não procedeu ao processo de descolonização, em 17 de julho de 1975, tendo sido objeto da instabilidade indonésia poucos dias após o 25 de Abril de 19741.
Entre 2 de fevereiro de 1966 e 1 de fevereiro de 1967 foi bispo coadjutor D. José Joaquim Ribeiro, o que lhe deu tempo suficiente para se acostumar à vida em Díli e no Timor Português. No dia 1 de fevereiro de 1967 foi elevado a bispo residencial e de imediato tenta uma separação entre a Igreja Católica e o Estado colonial, visto que as instruções trazidas do Estado da Santa Sé eram contrárias ao que o Estado colonial português tinha para as suas colónias. Aliás, basta ver o que o diretor-geral de Negócios Políticos, interino, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, João Hall Themido, diz: «Eram grandes senhores com prestígio nos seus países e em Portugal. Nenhum deles concordava com a nossa política ultramarina, na linha de orientação dos seus governos, e todos tiveram conversas difíceis nas Necessidades, com Franco Nogueira e também comigo»2.
No dia 22 de agosto de 1967, o bispo de Díli, D. José Joaquim Ribeiro, regressava de Lisboa e opunha-se a Stanley Ho Hung-sun (何鴻燊), que tinha fundado a Sociedade de Turismo e de Diversões de Timor (STDT), o concessionário dos jogos, com a conivência do governador coronel José Alberty Correia. A partir de 23 de dezembro de 1968 começam a explorar as slot machines e os jackpots da STDT. E é a partir daí que o bispo se torna um crítico desta empresa e dos sucessivos governadores do Timor Português. Por exemplo, no dia 11 de fevereiro de 1970, D. José Joaquim Ribeiro fez uma incitação pascal em que afirmou:
«[A]os queridos cristãos timorenses exortamos e pedimos com toda a veemência da nossa alma que estejam de sobreaviso, defendam-se e ajudem os seus irmãos a defenderem-se deste trágico flagelo do jogo e da impureza que só traz a ruína, aumenta a miséria e tira a paz aos nossos lares»3.
Esta estratégia, aprovada pelo governo colonial, era vista pela Igreja Católica do Timor Português como o «caça niquéis», isto é, a comunidade chinesa. Seguidamente, começaram as homilias dominicais em que o bispo de Díli afirma que a Igreja Católica está a fazer mais pelo Timor Português do que os quatrocentos e cinquenta anos de governo colonial. No passo seguinte, a Igreja Católica deixou de comemorar o Dia de Camões e da «Raça», enquanto o governo colonial celebrava esta data. A 30 de março de 1972,
o bispo de Díli não participou no primeiro cinquentenário da primeira travessia aérea do Atlântico Sul e recusou-se a participar no desfile militar no dia 13 de agosto de 19724. Com o bispo D. José Joaquim Ribeiro (1967 a 1977), os episódios de oposição entre a Diocese de Díli e o governo colonial já não eram «particulares», mas tinham repercussões públicas quer no sistema português, quer no regime indonésio.
O Que Levou a Elite Militar da Indonésia a Exigir um Bispo Indonésio
Em agosto de 1981, o tenente-coronel indonésio Francisco Xavier, vice-comandante do Korem, comunicou ao administrador apostólico de Díli, D. Martinho da Costa Lopes, que o ministro indonésio da Defesa e da Segurança, general Mohammed Jusuf, queria ter um encontro com ele no Aeroporto Internacional de Baucau, a segunda cidade de Timor-Leste. Imediatamente foi disponibilizado um helicóptero para o levar de Díli a Baucau. Além do general Mohammad Jusuf, compareceu o tenente-general Ali Murtopo, ministro da Informação e a quem foi confiada a chefia da Operasi Komodo no início de 1974, uma operação secreta indonésia criada para integrar Timor-Leste na Indonésia. Além disto, também fez parte da diplomacia indonésia, tendo sido enviado especial a Portugal para avaliar a opinião dos então governantes coloniais de Timor-Leste entre 14 e 16 de outubro de 1974 e a um encontro em Londres na Embaixada portuguesa em 9 de março de 1975, e para alertar os timorenses em agosto de 1975 de que a Indonésia não toleraria um Timor-Leste independente sob o governo de FRETILIN (Frente Revolucionária de Libertação de Timor-Leste). Por outro lado, estaria também presente nesta reunião o tenente-general Dading Kalbuadi, comandante da Operasi Seroja (Operação Lotus) durante a invasão indonésia de Timor-Leste, entre 1975 e 1976. As conversações foram a dois, visto que os outros não disseram nada. Como previsto por D. Martinho da Costa Lopes, esta reunião foi inconclusiva.
Em maio ou junho de 1982, o padre João Caniço, da Sociedade de Jesus (SJ), do Patriarcado de Lisboa e do apostolado da Ásia, lembrou que «o Papa se recusou a receber [o] monsenhor Costa Lopes, a seu pedido […] quando o Administrador da Diocese de Díli pretendia expor-lhe o drama do povo Timor»5, por outras palavras, os direitos humanos.
Todavia, os indonésios praticaram muitos assassinatos de timorenses. No dia 13 de outubro de 1982, o administrador apostólico estava a presidir à Procissão de Fátima em Díli e denunciou que em setembro do ano transato mais de 500 timorenses tinham-se entregado às Forças Armadas da Indonésia (Bakin) e
«foram cruelmente trucidados no cerco de Santo António de Lacluta, de mulheres grávidas desventradas, cujos bebés nascituros arrancados com violência do útero materno, foram desborrachados [sic] contra as rochas, e, finalmente, dos que forçados a integrar-se em operações militares, sem armas, sem comida, sem assistência médica e sem transporte, morreram na berma das estradas, à fome, ao abandono e ao relento…»6.
A partir desta data começam a ser publicados nos jornais internacionais - da Austrália, do Reino Unido, dos Estados Unidos - notícias sobre o massacre de Santo António de Lacluta, em Viqueque.
Perante esta dura realidade, os generais indonésios, em especial o regime autoritário do Presidente general Suharto, começaram a ver o administrador apostólico de Díli como persona non grata7. Assim, deram-lhe a entender que gostariam de o ver fora de Timor-Leste.
Em dezembro de 1982, veio a público uma declaração de um «deputado estadual» do Governo de Timor que «sob proposta do Governo da Indonésia, [o] Vaticano concordou na substituição do Monsenhor Martinho da Costa Lopes»8. Todavia, o administrador apostólico de Díli deu uma entrevista ao jornalista sul-africano Ken Pottinger declarando que «ele foi chamado de volta pelo Vaticano no ano passado sob pressão dos bispos católicos romanos conservadores da Indonésia»9. Não se sabe se a proposta foi feita pelo Governo da Indonésia ou pela Conferência Episcopal da Indonésia, mas partiu da Indonésia.
Então, o monsenhor D. Martinho da Costa Lopes escreveu ao pronúncio em Jacarta, o arcebispo Pablo Fuente, a pedir a sua resignação do cargo de administrador apostólico de Díli10. Entretanto, o cardeal brasileiro-italiano Agnelo Rossi pretendia ir à Indonésia com o fim de nomear um bispo indonésio para a Diocese de Díli e pôr termo a esta aparente contradição. Todavia, não conseguiu ir à Indonésia e o bispo indonésio caiu.
A poucos dias da substituição de D. Martinho Lopes, no dia 2 de maio de 1983, vários sacerdotes autóctones de Timor-Leste escreveram ao secretário de Estado da Santa Sé, cardeal Agostino Casaroli, para que diligenciasse junto do Papa Paulo II sobre a sua continuidade à frente da diocese de Díli e o nomeasse para «Bispo residencial da sua Diocese»11. Esta carta não teve nenhum efeito, primeiro porque era demasiado tarde e, segundo, porque o pronúncio em Jacarta só a deixava seguir para a Santa Sé depois da concelebração do novo administrador apostólico em Díli, monsenhor D. Carlos Filipe Ximenes Belo. Convém não esquecer que o arcebispo Pablo Fuente foi feito arcebispo e pronúncio da Santa Sé em Jacarta, depois de o cardeal Agnelo Rossi ter concelebrado a missa episcopal no dia 25 de maio de 198012.
No dia 12 de maio de 1983, a Comissão Portuguesa para os Direitos do Povo Maubere (CDPM), sediada no CIDAC, diz «que a resignação do Monsenhor Martinho Lopes tem um forte significado político e se enquadra no plano mais geral do regime ditatorial de Jacarta com vista a integrar a Diocese de Díli na Igreja indonésia»13.
Sem margens para dúvidas, este era um grande abalo político para o antigo administrador apostólico de Díli.
A Vinda de D. Martinho da Costa Lopes para a Europa
Com a decisão tomada por parte dos indonésios, o antigo administrador apostólico de Díli foi para Roma para ver o seu Papa, João Paulo II. Segundo o monsenhor Lopes, «[m]uito sensível, o que para mim foi um conforto. Pôs-me à vontade. Eu estava preparado para falar em inglês, mas o Papa disse-me logo que falasse português, porque hoje o idioma é falado por 150 milhões de habitantes»14.
Em relação ao secretário de Estado da Santa Sé, cardeal Agostino Casaroli, mostrou-se bastante amargurado e defendeu que «temos de sofrer…»15. Por último, o cardeal brasileiro-italiano Agnelo Rossi, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, não afirmou nada, de acordo com D. Martinho da Costa Lopes. Veio para Portugal, embora muita gente no Vaticano preferisse que ele ficasse na cidade romana a desenvolver outras atividades pastorais.
O procedimento utilizado pela Santa Sé veio ao encontro das autoridades portuguesas e foi «contrário às intenções da Indonésia»16 e, em certa parte, da alta hierarquia do Estado da Santa Sé, que favorecia a Indonésia. Como disse à Rádio Renascença, a emissora oficial da Igreja portuguesa, Paulo Marques «[é] um reconhecimento implícito da soberania portuguesa em Timor-Leste»17. Aliás, isto mereceu um editorial do Diário de Notícias, no dia 18 de maio de 1983, no qual eram destacadas as três narrativas políticas. Primeira, o «não reconhecimento, por parte da Santa Sé, da anexação de Timor-Leste pela Indonésia»18. Em segundo lugar, as coações usadas pelo regime de Jacarta para que fosse retirado de administrador apostólico, D. Martinho da Costa Lopes, julgado como um carácter da oposição à anexação das Forças Armadas da Indonésia (Bakin). Um terceiro ponto, devido «às estreitas relações» entre Portugal e a Santa Sé que tornaram inverosímil toda a «mudança na atitude da Igreja em relação a Timor-Leste sem prévias conversações com Lisboa»19.
Após ter chegado a Portugal no dia 11 de junho de 1983, D. Martinho da Costa Lopes vai falar sobre os direitos humanos em Timor-Leste. Em primeiro lugar teve um encontro com o antigo bispo de Díli, D. José Joaquim Ribeiro, sobre a situação em Timor-Leste e recebeu do último uma remuneração para os seus primeiros dias20. Posteriormente, foi recebido em audiência pelo Presidente da República, general Ramalho Eanes, pelo primeiro-ministro, Mário Soares, e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, sempre com o mesmo lema - os invasores de Timor-Leste eram os indonésios e a situação teria de evoluir para a autodeterminação e a independência. Outro contributo que ele trouxe foi o de desmistificar a FRETILIN como um bando de «marxistas». Na sua opinião os «marxistas» eram alguns jovens estudantes universitários timorenses que estavam em Portugal e que regressaram em 1975, transformando a FRETILIN numa organização ultraesquerdista, mais pretensiosa. Mas com a invasão de Timor-Leste pela Indonésia nos primeiros anos, isto é, de 1975 até 1978, quase todos tinham sido mortos21.
O ex-administrador apostólico de Díli vai-se envolver em muitas questões de inspiração cristã nos movimentos leigos da Igreja sobre Timor-Leste. Neste caso específico, vai enquadrar-se no movimento que visa a paz e a reconciliação, conhecido por Pax Christi International (Paz de Cristo Internacional). Este movimento, parte de uma reconciliação franco-alemã depois da Segunda Guerra Mundial, fora criado pelo bispo D. Pierre Marie Théas e por uma leiga Marthe Dortel Claudot22. O Papa Pio XII deu à Pax Christi a sua primeira bênção em 195023 e o Papa João XXIII fez publicar em 1963 a Pacem in Terris24.
Entretanto, o cardeal brasileiro-italiano Agnelo Rossi recebe um Grande Colar da Ordem Militar de Cristo de Portugal no dia 2 de setembro de 1983, imposto pelo encarregado de negócios, interino, João Clara Quintela Paixão, da Embaixada de Portugal junto do Estado da Santa Sé. Nesta altura já se sabia que ele tinha sido derrotado na decisão de nomear um bispo indonésio para a Diocese de Díli e que dentro em breve, no dia 8 de abril de 198425, iria deixar a Prefeitura da Congregação para a Evangelização dos Povos, que é a terceira congregação mais poderosa no Estado da Santa Sé, depois do Papa e do secretário de Estado.
Entre os dias 18 e 24 de fevereiro de 198426, D. Martinho Lopes vai estar em Genebra na delegação da Pax Christi International para apresentar o seu testemunho à Comissão dos Direito Humanos da Organização das Nações Unidas. Ele vem como antigo administrador apostólico de Díli e atual encarregado do Apostolado dos Refugiados de Timor-Leste em Portugal. Quando chegou a Genebra teve encontros com a Missão Observadora Permanente da Santa Sé junto das Nações Unidas e Agências Especializadas; com o bispo de Lausana, Genebra e Friburgo, Pierre Mamie; com a Comissão Nacional Suíça de «Justiça e Paz» e com o vicariato-geral de Genebra. Todas as despesas são pagas pela Pax Christi e pela Pax Romana, tendo D. Martinho permanecido na residência Cure St. Nicolas27.
O embaixador Fernando Reino informou da sua chegada o Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas admite-se que a «sua intervenção poderá alterar [o] ambiente [que] se supunha viria [a] ser relativamente sereno»28. Por outro lado, o auditor e o adjunto da Missão Observadora Permanente da Santa Sé junto das Nações Unidas e Agências Especializadas em Genebra, o monsenhor Giuseppe Bertello, manifesta «os seus receios tendo já tomado [a] iniciativa [de] referir [aos] outros dirigentes da Pax Christi presentes [na] sala. [Quanto à] conferência [é] inconveniência se venha [a] adotar [o] mesmo tom [das] outras declarações [que o] monsenhor Lopes tem proferido recentemente»29.
No dia 20 de fevereiro, o adjunto da Santa Sé volta a falar com o embaixador Fernando Reino e «manifestou-lhe novamente [a] preocupação [pela] possibilidade [do] monsenhor Lopes se dirigir [à] CDH [Comissão de Direitos Humanos] não apenas por se tratar [pela] primeira vez [de] um bispo que se dirige [à] Comissão, como ainda pela forma [que a] intervenção irá certamente revestir»30.
Efetivamente, no dia seguinte, 22 de fevereiro de 1984, monsenhor D. Martinho da Costa Lopes teve a palavra para apresentar, em duas páginas, um «testemunho» do que «foi preparado por ele mesmo após consultas com algumas delegações, incluindo a da Santa Sé»31. Pela primeira vez um administrador apostólico fez uma exposição sobre os direitos humanos em Timor-Leste, como recordou o adjunto da Missão Observadora Permanente da Santa Sé, monsenhor Giuseppe Bertello, junto do embaixador Fernando Reino.
D. Martinho recordou que em agosto de 1975 já havia a guerra civil e a decisão dos portugueses foi a de partir para a ilha de Ataúro. Entretanto, veio a autoproclamação da FRETILIN, no dia 28 de novembro do mesmo ano, e depois a bárbara invasão e a anexação da Indonésia, no dia 7 de dezembro de 197532.
Desde a invasão, as Nações Unidas condenaram a Indonésia porque estava contra os princípios da Carta das Nações Unidas e porque afirmava o direito à autodeterminação. De acordo com o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas isto leva à autodeterminação. Em suma, «os timorenses são gente. Portanto, eles têm o direito de autodeterminação»33. Mas os Estados-Nações estão muito relutantes em reconhecer os termos práticos desta situação. Uns alegam acordos comerciais e outros que têm grandes investimentos na Indonésia e têm medo de perder um importante mercado. Assim, estes Estados-Nações têm-se abstido e praticamente têm negado ao povo de Timor-Leste a autodeterminação. Embora possa compreendê-los, D. Martinho critica a mistura entre o direito de um povo autodeterminar-se e o dinheiro, o comércio e as matérias-primas, o que considera profundamente errado. Existe um conflito entre os direitos humanos e o comércio internacional. «[T]emos de reconhecer o direito do povo timorense à autodeterminação e independência»34.
De acordo com D. Martinho da Costa Lopes, diz-se por aí que os indonésios e os timorenses são idênticos nos aspetos da história, étnicos, culturais e geográficos. Na sua apreciação, este pensamento «não resiste ao escrutínio»35. Essencialmente, os dois povos - o indonésio e o timorense - são distintos. Enquanto os timorenses são melanésios, os indonésios são javaneses. Se pretendem impor contiguidade geográfica e ténues semelhanças históricas «e outros vínculos legítimos para esta incorporação, a Indonésia também poderia anexar justificadamente os Estados orientais da Malásia e a Papua-Nova Guiné, que compartilham esses traços em comum com a Indonésia»36.
Em relação à ajuda que a Indonésia dá a Timor-Leste, D. Martinho tem uma opinião diametralmente diferente. Em primeiro lugar, quem se dispôs a tanto foi a própria Indonésia. Em segundo lugar, esta ajuda indonésia era para «a integração de uma forma consolidada e pela indoneização de Timor-Leste». Terceiro, o facto de estar a haver ajuda serve para desviar a atenção de outras facetas, por exemplo, «atividades militares, múltiplas restrições a liberdades básicas, abusos dos direitos humanos e assim por diante»37.
Além disto, D. Martinho afirmou que houve várias delegações a Timor-Leste com o apoio da Indonésia, mas nenhuma fez quaisquer perguntas aos timorenses. Como timorense que era, contou o que vai dentro dos corações timorenses - «O que eles querem é a ocasião de escolherem o seu futuro político», afirmou.
O Departamento de Informação Pública das Nações Unidas disse à Comissão de Direitos Humanos que continuam as violações dos direitos humanos, tendo ouvido as declarações dos observadores de três organizações não governamentais - a Pax Christi, a Pax Romana e a Comissão Internacional de Juristas38. Este discurso deixou muita gente atónita, particularmente o embaixador português Fernando Reino, o embaixador da Indonésia Ali Alatas e a Missão Observadora Permanente da Santa Sé.
A seguir falou o representante permanente de Moçambique nas Nações Unidas em Genebra, Murade Isaac Murargy, que teceu vários comentários a D. Martinho. Começou por dizer que as Nações Unidas têm de tomar medidas urgentes. Lembrou que perto de 100 representantes e senadores do Congresso dos Estados Unidos tinham escrito ao Presidente Ronald Reagan a lembrar-lhe que os Estados Unidos tinham de ter uma atitude muito diferente. Por outro lado, dois conceituados órgãos de imprensa diária daquele país, o The New York Times, de 11 de dezembro de 1983, e o The Christian Science Monitor, de 21 de dezembro, deram um «espaço considerável à cobertura da preocupação do Congresso dos EUA sobre a tragédia de Timor-Leste»39. Por outro lado, lembrou que a cimeira dos chefes de Estado dos Países Africanos de Língua Portuguesa, isto é, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, que teve lugar em Bissau, deu o seu apoio à FRETILIN e apoiava a ação de Portugal, enquanto potência administrativa40.
Em seguida, falou o representante permanente da Indonésia junto das Nações Unidas em Nova York, o embaixador Ali Alatas, que viera substituir o representante em Genebra, no dia 23 de fevereiro. Ao longo de oito páginas, tenta deturpar o que D. Martinho da Costa Lopes e a Pax Christi International tinham dito. Começou por dizer que tanto D. Martinho Lopes como a Pax Christi International tinham vindo a fazer «declarações distorcidas e representações deliberadas feitas por alguns oradores em relação à questão de Timor-Leste»41. Os indonésios afirmam desconhecer que D. Martinho da Costa Lopes tinha entrado para a Pax Christi International, «que tanto se distinguiu com o registo de difamação persistente anti-Indonésia»42.
Após a intervenção de Ali Alatas, e no mesmo dia, o embaixador Fernando Reino, representante permanente de Portugal perante Genebra, fez um discurso (que tinha sido enviado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros) de três páginas, com seis pontos. O primeiro refere que «Portugal abstém-se de tomar qualquer posição que possa ser interpretada como ditada por um espírito de controvérsia ou confronto»43. O segundo que a Indonésia terá de autorizar uma autodeterminação para Timor-Leste. No terceiro, recorda que o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, estava a tentar encontrar uma solução pacífica. O quarto, menciona o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) que decidiu, em outubro de 1983, suspender toda a sua atividade em Timor-Leste, o que era suficientemente preocupante. O quinto menciona uma resolução da Subcomissão da Luta contra as Medidas Discriminatórias e o sexto a Proteção das Minorias que adotou na sua 38.º sessão, no dia 6 de setembro de 198344.
Entretanto, o embaixador Fernando Reino teve conhecimento de que o presidente da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, o holandês Pieter Hendrik Kooijmans45, tivera um encontro com D. Martinho da Costa Lopes. Segundo o embaixador Fernando Reino, embora «sem efeitos práticos[,] mas facilmente exploráveis em termos [da] opinião pública nacional e internacional»46. Uns anos mais tarde, vai ser o special rapporteur das Nações Unidas sobre o massacre de Santa Cruz.
No dia seguinte, 21 de fevereiro, o embaixador Fernando Reino foi apresentado ao embaixador Ali Alatas, por intermédio do nosso embaixador Rui Medina, que era o representante permanente junto das Nações Unidas, em Nova York. O embaixador Ali Alatas veio de Nova York a Genebra para vir fiscalizar como a Comissão dos Direitos Humanos iria escutar o administrador apostólico de Díli. Efetivamente, Ali Alatas «manifestou certa apreensão [no] tom e [no] conteúdo [do] monsenhor Lopes. Iria dar [a] sua intervenção o que podia deixar de provocar [uma] resposta mais objetiva possível [da] parte [da] Indonésia procurando evitar dramatizar [a] situação»47.
Por seu lado, o discurso que o embaixador Fernando Reino vai fazer tem duas vertentes. Uma, de carácter humanitário, e outra, para salientar a importância que o secretário-geral das Nações Unidas (SGNU), Javier Pérez de Cuéllar, dá ao assunto.
Entretanto, o embaixador Fernando Reino tem um «breve encontro» com D. Martinho da Costa Lopes. O diplomata ficou a saber que ele vinha pela Pax Christi International para «testemunhar» perante a Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra. Referiu que, a nível nacional, o Presidente da República, general Ramalho Eanes, o primeiro-ministro, Mário Soares, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, o receberam e a conclusão final era que «[t]ive a impressão de que simpatizaram com as minhas opiniões, e não acredito que vão trair o povo timorense»48.
Finalmente, houve uma votação sobre o reconhecimento da violação dos direitos humanos em Timor-Leste, no dia 2 de março de 1984: 13 Estados-Nações votaram favoravelmente, 10 votaram contra e 17 abstiveram-se, num quadro composto por 43 Estado-Nações que constituíam a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas49. Esta foi uma pequena vitória para D. Martinho Costa Lopes e, muito indiretamente, para Portugal, pois o seu «pequeno perfil» (low profile) diplomático era uma realidade50.
No entanto, tinha causado enormes dissabores à hierarquia do Estado da Santa Sé. O Papa João Paulo II fez uma visita pastoral à Ásia-Pacífico entre os dias 2 e 11 de maio de 1984, tendo ido à Coreia do Sul, à Papua-Nova Guiné, às Ilhas Salomão e à Tailândia51. Obviamente, o tema dos direitos humanos em Timor-Leste impediu-o de ir à Indonésia.
Conclusões
O que D. Martinho da Costa Lopes fez foi apelar com veemência para a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra com o objetivo de tentar exprimir o que vira em Timor-Leste em termos de abusos cometidos pela Indonésia acerca dos direitos humanos. Em segundo, foi apelar aos Estados-Nações para serem mais a favor dos direitos humanos e menos mercantilistas. Ambos os objetivos eram perfeitamente razoáveis, mas tendo em conta que ele era o antigo administrador apostólico de Díli quando se dirigiu a esta Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, levou a que as pessoas ficassem surpreendidas por ser o primeiro administrador apostólico autóctone a proferir uma mensagem.
Os embaixadores de Portugal, da Santa Sé e da Indonésia ficaram espantados por D. Martinho da Costa Lopes dizer afirmativamente o que disse sobre os direitos humanos e a comercialização com os investimentos públicos e privados. Em resposta, o embaixador da Indonésia nas Nações Unidas em Nova York, Ali Alatas, substituiu o embaixador da Indonésia em Genebra, para proferir um discurso cheio de calúnias, falsidades e deturpações.
Quanto ao observador da Pax Christi International, distinguiu entre os deveres que temos como indivíduos, o direito internacional e os Estados-Nações que permitem trocas entre os direitos humanos e as práticas de comercialização, um discurso que continua a presidir a muitos regimes que são profundamente autoritários.
Moisés Silva Fernandes Investigador e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Publicou Confluência de Interesses: Macau nas Relações Luso-Chinesas Contemporâneas, 1945-2005 (Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Centro Científico e Cultural de Macau, 2008), entre outras obras, artigos e recensões críticas em português, inglês e chinês.