«[F]oi uma guerra de libertação, com todo um mundo de sonhos em conflito com a repressão, o sofrimento e a morte. E foi aquele mundo de sonhos que não deixou que as consciências soçobrassem, apesar dos sacrifícios, que se estavam a exigir a cada um e a todos…»1
Xanana Gusmão, ex-Presidente da República de Timor-Leste e ex-comandante das FALINTIL
Introdução
Este ensaio retrata o processo de formação das Forças Armadas timorenses durante o ano de 2001, e aborda os aspetos mais relevantes da passagem de umas forças de guerrilha (as Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste - FALINTIL) para umas forças armadas, nacionais e apartidárias - as designadas FALINTIL - Forças de Defesa de Timor-Leste (F-FDTL)2. Assente na nossa observação direta sobre este processo político, estratégico e militar que decorreu em Timor-Leste em 2000 e 2001,
o ensaio procura fazer uma reflexão sobre os principais contributos dados pelas Forças Armadas para a edificação do Estado timorense. Um processo inédito em que as FDTL consumaram um dos contributos mais visíveis para a consolidação da reforma do setor da segurança (RSS) e da reforma do setor da defesa (RSD) do Estado timorense, assumindo «formalmente» a defesa da sua pátria segundo os parâmetros do Estado de direito no concerto do direito internacional.
Neste contexto, centrado num modelo idealizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e operacionalizado inicialmente pela equipa de Sérgio Vieira de Mello, tendo Portugal assumido o processo de formação das FDTL como forma de honrar os guerrilheiros timorenses que morreram pela sua pátria. Assim, concebeu-se um modelo que permitiu, num curto intervalo de tempo e em condições muito complexas, «transformar» os guerrilheiros de uma vida em membros de umas novas forças armadas que iriam assumir o futuro de Timor-Leste3.
Neste contexto, este ensaio procura evidenciar os momentos mais decisivos e relevantes do processo de transformação e desenvolvimento inicial das FALINTIL em F-FDTL e, consequentemente, documentar a relevância para a promoção da paz, da segurança e do desenvolvimento em Timor-Leste enquanto Estado independente4. Um processo inédito, pouco conhecido e raramente estudado, que «espantou o mundo» não só pela perseverança e determinação dos seus intervenientes diretos (os guerrilheiros da FALINTIL), mas também pelo crescente envolvimento da comunidade internacional numa causa que constituiu, em nossa opinião, um dos principais desafios para a ONU desde a sua criação em 1945. Um desafio que se materializou no apoio formal à reconstrução de um Estado e, concretamente, no apoio à edificação de umas forças armadas a partir de um grupo de guerrilheiros que jurou continuar a servir a sua pátria de uma outra forma e por outros meios.
Deste modo, este ensaio pretende salientar uma fase crucial da história recente de Timor-Leste, na qual o povo timorense foi o principal protagonista, e partilhar, através de uma visão participada5, as etapas mais importantes, durante o ano de 2001, do início do processo de criação das FALINTIL-FDTL. Passados mais de vinte anos sobre um marco histórico sem precedentes e pouco estudado, queremos contribuir para se refletir sobre o início da criação das FDTL entre Aileu e Metinaro, e, obviamente, homenagear todos quantos participaram neste processo, especialmente os guerrilheiros timorenses e, muito em especial, aqueles que deram a sua vida pela independência de Timor-Leste e pela criação das FDTL6.
Um processo que surpreendeu o mundo e que viria a consumar a vontade de um povo, que expressou nas urnas o desejo de uma pátria, e que levou Portugal a projetar a sua influência diplomática e a empenhar o seu compromisso económico, político e militar em apoio desta causa. A génese de umas forças armadas que resultam de uma vontade popular e que honram todos quantos, nas FALINTIL, deram a vida por uma causa e que permitiram dar válidos e importantes contributos para a edificação do Estado timorense.
Antecedentes
Um ano após a Revolução dos Cravos em 25 de abril de 1974, Portugal consagrou a independência às suas províncias ultramarinas em África e na Ásia. Neste contexto, a 28 de novembro de 1975, Timor-Leste proclama a sua independência em Díli, tendo Xavier do Amaral como o primeiro Presidente da República de Timor-Leste e Nicolau Lobato como o seu primeiro-ministro7. Com essa proclamação agudizou-se a guerra civil entre as forças políticas timorenses8 e a Indonésia, que decidiu invadir o território timorense com o pretexto de defender os cidadãos de etnicidade indonésia que aí residiam. Para combater esta invasão da Indonésia, a resistência timorense conseguiu operacionalizar a Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN) e organizou um movimento de guerrilha que procurou manter vivo o desejo de Timor-Leste se constituir como um Estado independente, dando espaço para que o seu povo resistisse e sonhasse com o direito à sua terra-pátria.
Durante a ocupação do território timorense, a Indonésia, entre outras medidas restritivas e punitivas, proibiu o uso do português e desencorajou o uso de tétum (forçando a população a aprender a língua indonésia - o bahasa). A Indonésia desenvolveu ainda uma censura à imprensa, tendo fechado o país aos observadores internacionais e vedado o acesso de Timor-Leste à comunidade internacional. Após a morte de Suharto em 1998, as Nações Unidas, Portugal e a Indonésia concordaram na elaboração de um referendo popular para conseguir resolver o problema da independência de Timor-Leste9. A 30 de agosto de 1999, 78% do povo timorense votou no sentido da independência formal de Timor-Leste, o que viria a obrigar a Indonésia a aceitar o resultado do referendo e a desocupar o território timorense, testemunhando a comunidade internacional a vontade de um povo a ter direito a uma pátria.
No dia 18 de setembro de 1999, os primeiros contingentes de capacetes azuis da ONU chegam a Timor-Leste para auxiliar no processo da transição de poder e a construção do Estado democrático. Mais tarde, realizaram-se eleições para a Assembleia Constituinte que deu origem à Constituição que viria a ser formalmente oficializada a ٢٠ de maio de ٢٠٠٢, dia em que a soberania e a independência foram devolvidas a Timor-Leste.
Neste processo, no início do novo milénio, em meados de 2000, decorrente da reconstrução pós-conflito do Estado de Timor-Leste, os líderes político-militares timorenses e a ONU - por intermédio da Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET na sigla inglesa) e com o apoio da comunidade internacional, em que se destacou o papel diplomático de Portugal10 - concordaram em criar as F-FDTL, tendo por base inicial de recrutamento as FALINTIL, criadas pela FRETILIN no âmbito do processo de autoafirmação no período pós-colonial11.
O Processo de Criação das FALINTIL-FDTL (2001)
Em 1999 as lideranças político-militares timorenses concordaram em efetuar uma consulta ao povo timorense para que este se pudesse pronunciar sobre a autonomia especial de Timor-Leste. Desta consulta popular resultou a rejeição da autonomia especial (opção em prol do statu quo ficando Timor-Leste ligado à Indonésia) em benefício da autodeterminação de Timor-Leste perante a ocupação indonésia. Seguiu-se um período de violência intensa (a mais intensa repressão depois da invasão Indonésia do território em 197512) e a ONU, a 25 de outubro de 1999, atuando no respeito pelo capítulo VII da Carta das Nações Unidas, estabeleceu, através da Resolução do Conselho de Segurança N.º 1272/99 de 25 de outubro de 1999, uma missão para administrar transitoriamente Timor-Leste, a United Nations Transitional Administration in East Timor (UNTAET), com o intuito de garantir a paz e conduzir à construção do Estado, tendo um papel central no processo de criação das FALINTIL-FDTL.
Na primeira conferência de países doadores para apoiar a reconstrução nacional e a criação das FDTL, realizada em Díli a 21 de novembro de 2000, uma das comparticipações que Portugal ofereceu, e que foi aceite, foi a de tomar a seu cargo o processo de seleção dos militares para as novas forças armadas, bem como a disponibilização de fardamento e o assumir da responsabilidade pela instrução de base de infantaria a todos os oficiais e sargentos e ainda aos praças do que viria a constituir o 1.º Batalhão das FDTL.
Esta missão de formação viria a ser atribuída ao Exército português e mais concretamente à Escola Prática de Infantaria (EPI), sediada em Mafra.
Neste contexto, com base num estudo elaborado pelo King’s College de Londres, intitulado «Independent Study on Security Force Options for East Timor» (2000)13, e numa proposta do Conselho Nacional da Resistência Timorense (CNRT), a liderança político-militar timorense, com o apoio de Portugal e da ONU, envolvendo um conjunto de países da região (Austrália, Nova Zelândia e Coreia do Sul), decidiu criar as FALINTIL-FDTL, atribuindo a missão de providenciar a defesa militar do seu território e do seu povo, bem como prestar assistência à comunidade civil.
Optando pela designada «3.ª Opção» do supracitado estudo do King’s College, estabeleceram-se as futuras FDTL com base numa força de infantaria ligeira com 1500 homens (e ainda 1500 reservistas) composta por um comando conjunto, uma componente de forças regulares (constituída por dois batalhões de infantaria ligeira) e uma componente naval (viria a ser criada em Hera uma base naval, no que foi o embrião da criação da marinha de guerra timorense). Constituiu-se ainda um centro de instrução militar (construído pela Austrália em Metinaro), uma base logística e uma componente de forças de reserva, que constituiria o início do dispositivo militar e do sistema de forças nacional a implementar no território no âmbito da reforma do setor da defesa em Timor-Leste.
No processo de construção do Estado timorense, e após uma situação de pré-conflito, a RSS/RSD foi realizada em tempo oportuno, tendo em conta os fatores culturais, sociopolíticos, económicos e de segurança, e viria a contar com ações coordenadas dos diferentes atores internacionais. Aspeto que permitiu que a consolidação da paz e o desenvolvimento da sociedade saída de um conflito sangrento tenham ganhado as condições base para a edificação do Estado e a criação de umas forças armadas.
As iniciativas que os líderes timorenses, com substancial ajuda externa (nomeadamente de Portugal, da Austrália, da Nova Zelândia, da Coreia do Sul, da Tailândia e dos Estados Unidos) aceitaram, permitiram criar as bases do levantamento das Forças Armadas Timorenses, tendo em vista a sua profissionalização, modernização e consolidação como instrumento e vetor principal de construção e consolidação do Estado timorense14.
Os guerrilheiros das FALINTIL, acantonados desde meados de 1999 nas montanhas de Timor-Leste na mítica vila de Aileu, em virtude de um processo negocial complexo, viviam em condições precárias ao nível da sobrevivência. Por outro lado, estes guerrilheiros tinham a consciência de que a comunidade internacional não tinha previsto, cabalmente, a constituição de umas forças armadas, e que a necessidade efetiva das mesmas constituía um fator de atrição regional. Contudo, fazendo jus à sua história, os líderes timorenses, desde o início, manifestaram interesse em edificar umas F-FDTL que simbolizassem a luta e a unidade do seu povo, que defendessem a soberania nacional e retribuíssem os esforços de paz da comunidade internacional, contribuindo para a segurança e o desenvolvimento da nação timorense. Eram simultaneamente um instrumento essencial de afirmação da soberania do Estado - principalmente face aos países da vizinhança, nomeadamente a Indonésia e a Austrália, as quais inicialmente não apoiavam a criação de umas forças armadas - e fator de afirmação da construção do Estado timorense.
Neste contexto, e porque Portugal sempre deixou a opção da existência de umas forças armadas como garante do Estado em aberto, Timor-Leste reconheceu a relevância do papel militar15 e diplomático de Portugal, enquanto dinamizador e coordenador junto da comunidade internacional.
O apoio realizado por Portugal à causa timorense durante os anos de luta pela independência do país, bem como a disponibilidade de ajuda demonstrada na primeira conferência de doadores das F-FDTL realizada em finais de 2000, é demonstrativo do compromisso de Portugal no processo de formação das forças armadas e do Estado timorense. Por outro lado, os timorenses sempre mostraram uma preferência pela ajuda de Portugal e dos militares portugueses na construção das suas F-FDTL em detrimento de outros países, tais como a Austrália, a Coreia do Sul, a Tailândia ou a Nova Zelândia, que viriam também a estar diretamente envolvidos no processo inicial de formação das FDTL em 2001.
A relação histórica entre Timor-Leste e Portugal, a língua, a história e a religião comuns, bem como a posição geopolítica de Portugal, foram fatores determinantes nesta parceria estratégica para a escolha de Portugal na edificação e desenvolvimento das forças armadas de Timor. Por outro lado, Portugal tinha o dever moral de contribuir com ajuda e cumprir com as suas obrigações seculares e assim reconciliar-se com o passado quando deixou Timor-Leste em 1974-197516 à mercê da cobiça regional da Indonésia17.
Deste modo, a relação de cooperação estratégica entre Portugal e Timor-Leste, a disponibilização de verbas, material e equipamento militar, bem como de pessoal especializado (essencialmente militares, mas também professores de português) para participar na seleção, formação de pessoal e organização da estrutura inicial das F-FDTL viriam a revelar-se cruciais para a edificação do Estado timorense.
Decorrente da primeira conferência internacional de doadores para apoiar a criação das F-FDTL, realizada em Díli, em finais de 2000, Portugal colaborou na seleção, no recrutamento, na formação e na organização da estrutura institucional do que viriam a ser as F-FDTL. Em termos de material destaca-se a doação de fardamento para um efetivo de 600 militares e ainda de duas lanchas de patrulhamento da classe «Albatroz» que se constituiriam como fundamentais para o estabelecimento das condições basilares da criação e operacionalização da Marinha timorense.
O processo de seleção e recrutamento liderado por Portugal, com a ida de uma equipa do Centro de Psicologia Aplicada do Exército (CPAE), teve por base 1700 elementos voluntários das FALINTIL, dos quais foram selecionados cerca de 650 para formar o 1.º Batalhão das F-FDTL, a componente naval, elementos de estado-maior e a unidade de formação militar a sediar em Metinaro.
Os elementos excluídos (ou considerados não aptos para iniciar um programa de treino militar) viriam a frequentar os programas de reintegração na vida civil patrocinados pelas Nações Unidas, aos quais foi atribuído um subsídio de reintegração de 200 dólares americanos e monitorizados pela UNTAET, num processo que viria mais tarde a revelar-se problemático para a edificação do Estado timorense.
De Aileu às FALINTIL-FDTL
A formação militar teve o seu início em meados de fevereiro de 2001, após a realização da cerimónia de extinção das FALINTIL, que decorreu em Aileu, nas montanhas de Timor-Leste (um local mítico para as FALINTIL), a 29 de janeiro de 2001. Este evento, em que estiveram presentes as mais altas individualidades timorenses e internacionais, constituiu o início de um marco histórico sem precedentes na história da ONU, com a «transformação» de um exército de resistência e de forças irregulares numas forças armadas convencionais e apartidárias.
O processo de formação das FDTL - sob supervisão de Portugal e com a participação de dez militares portugueses, em que a Escola Prática de Infantaria, como vimos, se constituiu como entidade tecnicamente responsável - envolveu inicialmente também militares da Austrália, da Nova Zelândia, da Coreia de Sul, e contou com o apoio logístico dos Estados Unidos, tendo decorrido em duas fases distintas.
Na primeira fase, em Aileu, onde estavam acantonados as FALINTIL, promoveu-se a formação inicial de quadros destinada a cerca de 250 guerrilheiros pré-selecionados para as categorias de oficiais e sargentos (destes viriam a reprovar na formação básica inicial dez militares, tendo sido integrados nas FDTL como praças). Na sua maioria eram comandantes históricos das FALINTIL e militares com muita experiência de combate (na guerrilha), aos quais era necessário ensinar um conjunto de princípios e regras organizativos, doutrinários e regulamentares de forma a funcionarem numa lógica diferente da experienciada no tempo da guerrilha. Era um grupo cuja média de idades rondava os 40 anos, tendo o mais velho 56 anos. Muitos apresentavam no corpo as marcas dos combates travados e das torturas sofridas. Viria assim a ser criado no início da formação militar um corpo de 66 oficiais e 124 sargentos que assumiriam, no futuro próximo, as funções de comando e chefia na estrutura das F-FDTL.
A sua graduação e nomeação para os cargos a desempenhar foi feita de acordo com a intenção do brigadeiro Taur Matan Ruak, como chefe de estado-maior-general das F-FDTL. Neste processo respeitou-se genericamente a hierarquia já existente nas FALINTIL, tendo em conta as capacidades e o aproveitamento demonstrado durante a formação, o fator idade e a condição de saúde para ingressar numas forças armadas que tinham outras exigências, diferentes das vividas e sentidas no tempo da guerrilha18.
Um processo transformacional inclusivo que permitiu conjugar a experiência operacional com os conhecimentos adquiridos e demonstrados durante o processo de formação, premiando o sentido de abnegação pela defesa da sua pátria e legitimando a cadeia hierárquica das F-FDTL, alicerçada estruturalmente na cadeia hierárquica das FALINTIL. Ao mesmo tempo, prestigiaram-se e protegeram-se aqueles que durante anos assumiram a condução da luta armada contra a ocupação do território timorense. Desse modo, viram o seu esforço reconhecido com a atribuição de um papel social relevante para o desenvolvimento de umas forças armadas profissionais, contribuindo assim para a segurança e defesa do povo e do seu território e constituindo-se como um instrumento de apoio ao desenvolvimento, assumindo as funções inerentes à condição de Estado democrático19.
Neste contexto, a preocupação da liderança militar timorense não se alheou das suas responsabilidades e do seu relevante contributo para o aperfeiçoamento e desenvolvimento institucional e humano para os esforços de paz e segurança, bem como para a integração pacífica de Timor-Leste no sistema internacional de acordo com os princípios democráticos e no respeito pelos direitos humanos, como compromisso assumido desde o início do processo de formação do Estado timorense.
De Metinaro às FALINTIL-FDTL
Numa segunda fase, em Metinaro (a cerca de 30 quilómetros de Díli), a equipa de instrutores portugueses foi assessorar a formação dos restantes 400 militares destinados à categoria de praças, tendo apoiado a criação das estruturas do Quartel-General e do Estado-Maior das F-FDTL em Díli, bem como as do centro de formação em Metinaro, o embrião da componente naval na base em Hera (já então com a integração de cinco militares da Marinha portuguesa, que passaram, desde esse momento, a integrar a equipa de formação e a ocupar-se da componente naval), ou seja, a estrutura base daquilo que viriam a ser as F-FDTL. A componente naval foi edificada com 60 dos 600 militares (cerca de 10%) que seriam o embrião daquela componente das f-, comandada pelo major Reinaldo.
Como parte da formação militar, foram também ministradas, desde o início, aulas de português, por professores de língua portuguesa indicados pelo Ministério da Educação de Portugal, em ligação com a Embaixada de Portugal em Díli, de modo a consolidar conhecimentos numa das línguas oficiais de Timor-Leste e relevante para a afirmação da identidade das próprias F-FDTL… pois a «língua da resistência» passava a ser a principal «língua de trabalho» na formação das Forças Armadas. Este aspeto teve também um impacto significativo na edificação do Estado, pois a língua portuguesa passou a ser uma das três línguas oficiais de Timor-Leste (tétum, inglês e português), contribuindo para a consolidação e edificação do Estado.
A formação militar foi sendo adaptada às características e necessidades locais com vista à capacitação institucional, progresso e aperfeiçoamento da condição técnica e militar, assegurando o respeito pelos princípios democráticos e pelas tradições e hierarquias herdadas das FALINTIL. Um trabalho de capital importância na consciencialização dos elementos que, a partir desse momento, faziam parte das forças armadas de um Estado emergente no sistema internacional, cientes das suas responsabilidades, do seu papel numa sociedade democrática e do seu compromisso com o Estado de direito e no respeito pelos direitos humanos, aspeto que enforma a criação e edificação do Estado e que está refletido na Constituição de Timor-Leste.
A missão da primeira equipa de formação portuguesa em solo timorense viria a terminar a 6 de dezembro de 2001 (quase um ano depois da sua chegada), o que simbolizava o final da instrução militar, com a presença em parada, pela primeira vez, com o estandarte do 1.º Batalhão das F-FDTL e desfile das tropas no aquartelamento de Metinaro perante as mais altas individualidades timorenses e a administração das NU, a 1 de dezembro de 200120.
Nessa cerimónia, o comando das F-FDTL viria a distinguir cada elemento da equipa de formação com o honroso título de «Membro Honorário das FALINTIL - Forças de Defesa de Timor-Leste»21. Para os militares portugueses, para as Forças Armadas e para a relação entre Portugal e Timor-Leste esta distinção simbolizava muito mais do que se possa imaginar, simbolizava o agradecimento pelo empenho de Portugal no processo de edificação do Estado em Timor-Leste.
Em fevereiro de 2002, Portugal envia em missão de formação para Timor-Leste outra equipa de formadores para efetuar o processo de recrutamento e ministrar formação aos novos elementos que iriam constituir o 2.º Batalhão das F-FDTL. A 11 de maio de 2002, Timor-Leste é reconhecido internacionalmente como um país independente e passados nove dias Portugal e Timor-Leste viriam a assinar o primeiro acordo de cooperação técnico-militar.
Uma data histórica para ambos os países. Timor-Leste veria assim reconhecido o esforço das FALINTIL, que durante cerca de vinte e quatro anos conduziram uma luta armada contra a ocupação indonésia, e Portugal viu, a propósito da questão de Timor-Leste, reconhecido o seu esforço diplomático junto da comunidade internacional, o que permitiu um certo encontro com o passado que nos projeta no presente e no futuro como parceiros estratégicos na edificação e apoio à consolidação do Estado democrático.
As FALINTIL-FDTL e o Contributo para a Edificação do Estado Timorense
As F-FDTL passaram a ser uma instituição estatal organizada, com capacidade para contribuir para a segurança do país, e garante da soberania nacional, guarnecendo postos de controlo e executando patrulhas na fronteira com a Indonésia.
Projetaram, mais tarde, a imagem externa do Estado de Timor-Leste, com a participação de militares num contingente português numa missão no Líbano no âmbito das Nações Unidas. As FDTL participam na segurança interna, de acordo com a legislação timorense, coordenadas com a Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL), com destaque para o processo eleitoral de 2012 e os vários incidentes de ordem interna ocorridos e para onde foram chamadas a intervir. As FDTL conduzem atualmente ações de formação e treino operacional e participam igualmente em exercício de treino operacional em ambiente multinacional, dando mostras de um amadurecimento e capacidade de se constituir como um instrumento de política externa do Estado.
Um caso de sucesso que merece ser destacado, em que as forças de guerrilha, ao apostarem na sua transformação em forças convencionais, se converteram numas forças armadas profissionais, operacionais, credíveis e capazes de colaborar na defesa do povo e do território timorenses, subordinadas às instituições democráticas daquele Estado, num espírito de isenção política e segundo os princípios da legislação timorense.
A credibilidade ganha pelos elementos das FALINTIL no seio da sociedade civil timorense durante o período da luta armada, bem como a sua preferência pela ajuda dos militares portugueses, são porventura dois dos ingredientes de sucesso deste processo, em conjugação ainda com a vontade política e militar portuguesa na assistência a Timor-Leste.
Parece-nos evidente que ainda existe um longo caminho a percorrer para a autonomia operacional completa das F-FDTL. Contudo, os progressos observados na capacitação humana e institucional são indicativos do esforço timorense na profissionalização das suas Forças Armadas dentro de um programa próprio de RSS/RSD e do apoio incondicional de Portugal no domínio da defesa e na transformação de um exército irregular numas forças armadas convencionais e subordinadas aos órgãos de soberania democráticos e legítimos. Umas forças armadas capazes de contribuir para o desenvolvimento nacional e para os esforços de paz e segurança nacionais, regionais e internacionais, bem como para a plena integração de Timor-Leste no sistema internacional.
A cooperação técnico-militar e a assessoria técnica à formação das forças armadas e, mais tarde, à edificação da componente de defesa nacional em Timor-Leste, viriam a continuar e a consolidar-se, estabelecendo-se um acordo bilateral após 2001, quando Timor-Leste passou a ter o estatuto de Estado e a poder celebrar acordos internacionais. As Forças Armadas Portuguesas e Portugal estiveram, em 2001, na origem das FALINTIL-FDTL, e estão, atualmente, muito presentes na edificação da componente militar operacional e de defesa nacional, contribuindo, decisivamente, para a edificação e sustentação do Estado timorense.
Considerações Finais
O evento histórico que juntou em 2001, entre Aileu e Metinaro, os militares portugueses e os guerrilheiros timorenses na formação de umas forças armadas capazes de representarem um Estado de direito, constituiu um dos aspetos mais simbólicos e importantes da edificação de Timor-Leste como Estado de direito.
A forma como o processo de criação e operacionalização das FALINTIL-FDTL foi liderado por Portugal, apoiado pela comunidade internacional e levado a efeito pelos timorenses, constituiu um exemplo de cometimento e de luta pelo direito de um povo a ter uma nação.
Uma missão desafiante e muito significativa, que permitiu a conclusão com sucesso de um processo que espantou o mundo e que contribuiu para projetar Portugal e as Forças Armadas Portuguesas no contexto de segurança e defesa internacional, evidenciando a capacidade das FALINTIL-FDTL em contribuir como instrumento de segurança e desenvolvimento para a edificação do Estado timorense e como fator essencial na conquista da independência e na consolidação da sua soberania.
Luís Manuel Brás Bernardino Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa. Professor no Instituto Universitário Militar em Lisboa. Coronel de Infantaria do Exército português habilitado com o Curso de Estado-Maior. Mestre em Estratégia e doutorado em Relações Internacionais pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa.