Introdução
A morte de pelo menos 23 migrantes na fronteira entre Melilla (Espanha) e Marrocos a 24 de junho de 2022 e as devoluções sumárias de centenas de pessoas por parte das autoridades espanholas testemunham a centralidade da necrofronteira1 nas formas de governo modernas.
As mortes ocorreram durante a tentativa de um grupo organizado de cerca de 1700 pessoas (na sua maioria do Sudão e Sudão do Sul) atravessar o posto fronteiriço do Bairro Chinês em Melilla. Os vídeos difundidos pelos meios de comunicação mostram o uso excessivo e brutal da força pelos agentes marroquinos. As imagens são de uma violência extrema, com corpos inertes apinhados no chão, e os migrantes a serem espancados pelas forças de segurança marroquinas. Ao mesmo tempo, vemos também como a Guardia Civil espanhola executou centenas de devoluções sumárias, devolvendo a território marroquino todos aqueles que tinham conseguido escalar as cercas e entrar em Melilla, numa clara violação do direito internacional e da União Europeia (UE)2.
As mortes nas fronteiras da periferia da UE dão visibilidade - apesar dos frequentes esforços dos governos para ocultar e invisibilizar este fenómeno, uma ideia que já abordámos num artigo dedicado a questionar a visibilidade e invisibilidade da fronteira, centrada em processos de dissimulação e ocultação3 - à violência do regime migratório implementado pela UE. Esta forma de violência direta e estrutural nas fronteiras externas da UE chama a atenção para um conjunto de práticas que surgiram nas margens da UE, onde os corpos são perseguidos, policiados, categorizados e excluídos através do aparato racial do Estado.
Longe de ser um ato isolado, este evento dramático mostra que os esforços desenvolvidos pela UE e os seus Estados-Membros, ou até pelos países ocidentais de modo geral, para controlar e conter os fluxos irregulares - muitas vezes baseados numa narrativa de «combate» ou «luta», se traduziram na criação de uma nova forma de apartheid global4, centrada na negação à mobilidade, particularmente do Sul Global para o Norte Mundial. Estas assimetrias de poder nas ordens regionais podem ser claramente observadas na implementação de políticas de externalização por parte dos países ocidentais.
Nas últimas décadas assistimos a uma tendência de externalização do controlo que tornou as fronteiras omnipresentes, num exercício que permite ampliar a extensão do controlo, tanto na sua dimensão espacial como institucional5. A externalização passa pela implementação de medidas por parte dos Estados para além das suas fronteiras, com o objetivo de impedir ou limitar a chegada de estrangeiros aos países de destino. Estas práticas, realizadas com o apoio e colaboração de países terceiros, através da celebração de acordos - muitas vezes de carácter sigiloso -, são justificadas com reivindicações humanitárias, de proteção dos migrantes e com o objetivo de «salvar vidas». Se é certo que algumas destas políticas permitiram reduzir o número de migrantes que efetivamente alcançam o território da UE, por sua vez, as rotas tornaram-se cada vez mais perigosas e clandestinas, o que implica um grande custo humanitário.
No caso europeu, a externalização das políticas de migração da UE é uma das dimensões mais relevantes na gestão do fenómeno migratório, com a deslocalização de políticas mais além das fronteiras dos Estados-Membros. Neste sentido, países terceiros, principalmente no continente africano, como a Líbia, Marrocos ou o Senegal, são hoje pilares centrais na infraestrutura migratória europeia e no seu sistema regulatório.
Estas políticas de externalização baseadas numa visão securitária - que consolidam uma perceção crescente da migração como uma ameaça à segurança - são cada vez mais dependentes de alta tecnologia na facilitação dos crescentes níveis de externalização. Deste modo, as fronteiras da UE converteram-se em veículos de poder e controlo, através da implementação de mecanismos e tecnologias que constituem um complexo sistema sociotecnológico para monitorizar os movimentos fronteiriços e as rotas migratórias para a UE6.
Neste artigo analisamos a transformação do regime fronteiriço europeu e a emergência de «infraestruturas migratórias» para a gestão das migrações irregulares, que geram novas formas de governabilidade. O nosso principal argumento é que um enfoque de «emergência» em situações de crise suspende a prática comum e cria um estado de exceção.
O texto dialoga com os debates presentes nas Relações Internacionais, nos Estudos de Fronteiras e nos Estudos Sociais e Tecnológicos (STS na sua sigla em inglês, Social and Technology Studies) que procuram entender os diferentes processos que ocorrem dentro e fora das fronteiras. Assim, num primeiro momento, faremos uma aproximação às fronteiras como espaços fluidos e de dissimulação, para entender a criação de infraestruturas migratórias baseadas em práticas sociotecnológicas que permitem controlar e monitorizar estes espaços. De seguida, trataremos de entender as transformações do regime fronteiriço europeu através da incorporação de processos de controlo extraterritorial. O seguinte ponto centra-se nas políticas de violência implementadas nas fronteiras europeias e como estas resultam na criação da necrofronteira. Por último, apresentam-se as principais conclusões do estudo, em que se destaca o desenvolvimento da dimensão exterior da infraestrutura migratória europeia, alicerçada num conjunto de práticas securitárias e de exceção que suspendem a proteção dos direitos humanos.
Fronteirização, dissimulação e externalização
Temos vindo a assistir a uma transformação das fronteiras e suas modalidades num processo de contínua reinstituição no mundo globalizado que ressalta o carácter dinâmico e fluido das fronteiras modernas. Estes processos questionam a conceptualização das fronteiras como linhas objetivas desenhadas num mapa ou fisicamente delimitadas por cercas e muros, associada à ideia do Estado-Nação vestefaliano, que ocultam o seu carácter vacilante7.
Para os estudos de fronteira pós-modernos, as fronteiras tornam-se elementos e sistemas ativos que impactam um grande número de questões domésticas e internacionais. São sistemas formais ou informais onde ocorrem procedimentos espaciais e sociais8. Esta lógica implica uma passagem de um conceito estático para um conceito dinâmico de bordering9, ou fronteirização, que ultrapassa as fronteiras territoriais tradicionais e reconhece o seu carácter permeável e fluido. O processo de fronteirização capta a complexidade das fronteiras como uma construção social onde estas estão em constante movimento, adaptando-se às modernas ameaças transnacionais. Assim, entender a fronteira como processo e veículo de poder, controlo e organização10 manifesta esta construção social, que está em constante transformação.
Invocamos esta conceptualização da fronteira que nos permite ir mais além da sua dimensão geográfica e entender como esta penetra nos territórios e nos corpos dos indivíduos. Desde uma aproximação da biopolítica de Foucault11, o controlo da população e a administração da vida são centrais para o funcionamento do poder soberano. Um princípio que nos transporta a uma ideia de vidas governadas através da implementação de um conjunto de políticas, práticas e dispositivos tecnológicos. Segundo esta ideia, a morte configura-se como uma condição prévia para a prosperidade de outros. Assim, a biopolítica é coincidente com uma produção do conhecimento sobre o Outro, que é temido, e que tem de ser controlado. Esta dinâmica é intrínseca aos discursos contemporâneos de segurança, em que a expulsão e a eliminação são apresentadas como necessárias para a proteção da população12.
Esta indústria do medo e governo dos corpos relaciona-se com o conceito de necropolítica de Mbembe13, que articula as diferentes formas de governação que produzem regimes de vida ou morte mediante a implementação de tecnologias que ordenam, sistematizam, exploram e destroem os corpos. Nesta visão é a morte, e não a vida, que é o princípio orientador do biopoder, que opera em espaços de pós-colonialidade, cada vez mais visível nas fronteiras europeias. Assim, «é na fronteira que a violência necropolítica é sentida com mais força e por meio da qual se realiza a negação da vida até à morte»14.
Desta forma, o conceito de necrofronteira parte de uma visão da fronteira como uma entidade internalizada e interiorizada que se converte num dispositivo central através do qual os Estados exercem o necropoder. Com efeito, a necrofronteira permite o exercício do biopoder contemporâneo, pelo que se apresenta como uma tecnologia (racial) que produz vulnerabilidade e que é central às práticas quotidianas15.
Estudos recentes têm procurado explorar as interseções entre as fronteiras e a morte, centrados nas práticas quotidianas de controlo de fronteiras e a violência16, que questionam as lógicas e práticas de segurança modernas e oferecem uma aproximação a um conjunto de ações de resistência centradas no humanitarismo (desde a atividade de organizações da sociedade civil a diferentes formas de expressão artística) e que resultam em processos de humanização da fronteira.
As práticas quotidianas de controlo e vigilância da fronteira envolvem sistemas de digitalização e triagem, que permitem uma vigilância constante, em que as novas tecnologias desempenham um papel central na criação de rituais de segurança fronteiriça que funcionam como dispositivos dissuasórios que operam como instrumentos de antecipação e pré-decisão. Da fusão entre as reivindicações de segurança e esta ação preventiva, caracterizada por atos violentos, gera-se um estado de emergência permanente que se traduz na securitização da mobilidade humana, através da implementação de processos arbitrários e racializados, que «tendem a ser colocados fora dos procedimentos democráticos do debate político público e dos processos de tomada de decisão em nome da “segurança do Estado”»17. Cria-se assim o que Agamben18 chama um «estado de exceção permanente». Esta forma de governabilidade apoia-se num conjunto de ações de segurança «nas fronteiras do Norte Global [que] ajudam a construir o medo racial de ser cercado e sitiado»19.
As fronteiras atuais são também espaços de tensão e coexistência entre diferentes experiências de mobilidade e governabilidade. Como sublinha Hague, «à moda do apartheid, essas duas experiências delineiam duas realidades ou mundos separados que coexistem dentro do mesmo espaço global»20. À medida que as migrações do chamado Sul Global se constroem em termos de «risco», «crise» e «medo», numa perspetiva de «colonialidade do poder»21, estes indivíduos veem-se inscritos numa ordem em que se encontram «sequestrados» dentro das suas próprias fronteiras, pelo que têm de viajar pelas sombras e ocultos do sistema. Por sua vez, o Norte Mundial implementa políticas securitárias, impondo novas tecnologias de controlo22, criando assim uma realidade onde uns podem vagar livremente pelo mundo e outros se encontram limitados no seio de um regime de restrições impostas pelas forças globais, em que estão sujeitos a um regime de ocultação e clandestinidade.
A literatura mais recente sobre as migrações internacionais e os regimes fronteiriços aponta para uma abordagem da mobilidade centrada nesta constelação de fenómenos sociotecnológicos que organizam e dão forma às migrações humanas e à mobilidade humana em geral. O conceito de infraestruturas migratórias toma como referência a infraestrutura do sistema de transportes para compreender o complexo sistema da (i)mobilidade e como conjuntos de infraestruturas produzem diferentes migrações23. Indagar sobre as infraestruturas migratórias oferece um repositório de conhecimento alternativo que permite analisar os diferentes componentes e mecanismos sociotecnológicos, como estes reinventam e ao mesmo tempo discriminam a mobilidade. Neste sentido, tomámos como referência o trabalho desenvolvido por Huub Dijstelbloem24 para centrarmo-nos nas
«interações de atores, instituições e tecnologias que levam ao surgimento da infraestrutura de fronteira da Europa - um conceito que por sua vez se presta ao estudo do emaranhado de fronteiras digitais, físicas e naturais, várias formas de governança e os mecanismos de circulação, inclusão e exclusão»25.
Estas infraestruturas apresentam-se como espaços de tensão compostos por uma teia complexa de ligações entre o Estado e os indivíduos, o público e o privado, ao mesmo tempo que diferenciam e excluem intencionalmente determinados grupos de pessoas. Funcionam assim como mecanismos de seleção, de prevenção e de dissuasão.
Uma das principais características das infraestruturas migratórias é a sua mobilidade, que reflete a interação entre visibilidade e invisibilidade e que se traduz na externalização dos processos de gestão migratória e controlo de fronteiras. Desta forma, as fronteiras emergem como entidades móveis, que se expandem em diferentes direções, cada vez mais para sul e este (no caso da UE)26. Através da implementação de um conjunto de iniciativas e práticas realizadas em cooperação com países terceiros, a UE estabelece uma estratégia de gestão migratória que vai muito além das suas fronteiras externas atuais.
A crescente externalização das políticas migratórias da UE tem suscitado um grande interesse académico, pelo que existe já um corpo crítico de investigação centrado na securitização das políticas migratórias europeias27, assim como na sua dimensão tecnológica e implicações ético-legais28 e uma aproximação pós-colonial a este fenómeno a partir da literatura sobre a cooperação entre a UE e o continente africano29. Constatamos, contudo, que existe ainda um trabalho académico escasso na interceção entre infraestruturas migratórias, externalização e necrofronteira. Veremos adiante como estes conceitos se articulam através de um entramado sociotecnológico que cria uma forma particular de governança migratória europeia.
A transformação do regime fronteiriço europeu
Explorar as fronteiras da UE através de uma abordagem centrada nos processos de fronteirização e na infraestrutura migratória permite investigar a multiplicação de processos de deslocalização e relocalização das fronteiras que promovem uma intricada interação de práticas e dinâmicas de externalização das fronteiras. Um fenómeno complexo, composto por múltiplas dimensões - espacial, relacional, funcional30 - e que envolve uma multiplicidade de atores comprometidos através de acordos e iniciativas bilaterais e multilaterais, «geralmente através de dinâmicas coercivas de recompensa, incentivos ou penalizações condicionais»31.
No início do século XXI, a UE dotou a sua política migratória duma dimensão exterior, mediante a implementação de um conjunto de iniciativas de controlo extraterritorial e deslocalização das políticas migratórias. O Conselho Europeu de Tampere da viragem do século (de 1999) deixou muito clara esta estratégia:
«O Conselho Europeu apela ao desenvolvimento da assistência aos países de origem e de trânsito, a fim de promover o regresso voluntário, bem como ajudar as autoridades desses países a reforçar a sua capacidade para combater eficazmente o tráfico de seres humanos e cumprir as suas obrigações de readmissão para a União e os Estados-Membros»32.
Gradualmente a União foi desenvolvendo a dimensão exterior da sua política migratória resultando em contradições no domínio da promoção da democracia, Estado de direito e direitos humanos, associando-se com regimes autocráticos e Estados conhecidos pelas reiteradas violações de direitos humanos - como é o caso de Marrocos, da Líbia ou da Turquia. Paradoxalmente, a segunda década deste novo século mostrou a incapacidade, ou falta de vontade, da UE de coordenar-se para alcançar uma melhor forma de gerir os movimentos fronteiriços nas suas fronteiras externas, destacando a falta de uma solidariedade europeia para adotar medidas de gestão interna - recordemos, por exemplo, a falta de compromisso por parte dos Estados-Membros relativamente ao programa de recolocação de refugiados da UE - e sublinhando a necessidade de reforçar a dimensão externa da sua política migratória33, frequentemente em detrimento das preocupações humanitárias.
A externalização da governança migratória da UE está alinhada com uma tendência internacional de redefinição de políticas, centradas na retórica do medo e da ameaça, geradora de tensões e incertezas e que se traduz na adoção de medidas de dissuasão de carácter urgente para controlar e, em última instância, parar estes fluxos. Isto implica o desenvolvimento e implementação de dispositivos de controlo, ligados ao processo de securitização, com a dupla função de impermeabilizar (fronteiras) e conter (fluxos)34. Com o Conselho Europeu de Sevilha de 2002, a UE passou a adotar uma abordagem à imigração centrada na segurança, ao mesmo tempo que seguia nos seus esforços de externalização.
O Programa da Haia (2005-2010) contribuiu em grande medida para o desenvolvimento das parcerias com países terceiros para prevenir a imigração irregular, ao mesmo tempo que promoveu a utilização de dados biométricos para o controlo de fronteiras35. À luz desses avanços, assistimos à digitalização da fronteira e ao estabelecimento de uma infraestrutura tecnológica que permite rastrear, identificar e expulsar migrantes indesejados no território da UE, através de práticas fronteiriças invisíveis como a recolha de dados biométricos. O conceito de biofronteiras (bio-bordering), desenvolvido por Amelung, Granja e Machado36 dá visibilidade a estes novos modos de governança.
A Abordagem Global da Migração, apresentada pela primeira vez no Conselho Europeu de dezembro de 2005 e aprofundada nos anos seguintes, oferece um marco de ação integral para a cooperação entre a UE e os países terceiros em matéria de migração e asilo. Renovada em 2011, dando lugar à Abordagem Global para as Migrações e Mobilidade, esta estratégia tem entre as suas prioridades fortalecer os sistemas internacionais de proteção e a dimensão externa das migrações e asilo37.
O desenho institucional e normativo que emerge do processo de externalização implica uma governança migratória extraterritorial da UE em África, amplamente enquadrada num processo de parceria UE-África. Neste quadro, têm-se desenvolvido processos regionais de diálogo com o objetivo de reforçar a discussão e identificar e implementar ações concretas entre os países de origem, de trânsito e de destino. O Processo de Rabat - centrado nas migrações desde a África Central, Ocidental e do Norte - e o Processo de Cartum - centrado nas migrações desde a África Oriental e o Corno de África - estão sob a égide geral do Diálogo de Migração e Mobilidade África-UE, enquadrados numa abordagem centrada nas parcerias, desenhadas com base no conceito de paridade entre os países das duas margens do Mediterrâneo. Cria-se assim a perceção de que há um poder de decisão equilibrado entre ambas as regiões. Como sublinham Strange e Oliveira Martins38, esta abordagem da paridade permite aos Estados africanos venderem mais facilmente as suas políticas aos seus cidadãos e verem o seu estatuto internacional reforçado, enquanto a UE beneficia de um parceiro mais disponível, assim como menos vulnerável às críticas da sociedade civil europeia39.
Embora a Agenda Europeia para a Migração, formulada em 2015, tenha sido particularmente importante para abordar o aumento das migrações irregulares desde 2014, a Agenda adota essencialmente um enfoque centrado numa retórica de «crise migratória» e apresenta um conjunto de medidas de carácter excecional, consolidando a estratégia de dissuasão da UE, através do reforço dos controlos fronteiriços e celebração de pactos sigilosos com países terceiros, como o acordo UE-Turquia de 2016, e tomando medidas mais robustas para garantir o cumprimento das políticas de retorno e readmissão40. Segundo a mesma UE, este documento estratégico deve ser lido em conjunto com a Agenda Europeia de Segurança de 2015, já que partilham instrumentos e dispositivos, como as bases de dados de informação biométrica ou as avaliações de risco. Como sublinha Dijstelbloem, «[e]ssas ferramentas tecnopolíticas são poderosos dispositivos performativos que facilitam a securitização das migrações»41.
As políticas excecionais que surgem das chamadas «crises» permitem a adoção de procedimentos extraordinários de tomada de decisão, como é o caso do acordo UE-Turquia de 2016 ou o recente acordo celebrado entre a Espanha e Marrocos em abril deste ano. Desta forma, vemos como «[o] sigilo está profundamente entrelaçado com a ação estatal, as tecnologias de vigilância e a política internacional quando se trata de controlo de fronteiras, políticas de migração e gestão da mobilidade internacional»42.
A Política Europeia de Vizinhança (PEV) transformou-se num instrumento importante para a externalização das migrações mediante a celebração de parcerias de mobilidade e acordos de readmissão desde o início dos anos 2000. Nos flancos sul e leste, a UE assinou acordos de associação com países terceiros, assim como acordos de readmissão com países vizinhos e outros de fora do âmbito da PEV. A mera existência destes acordos, concebidos como uma forma de neocolonialismo43, mostra os esforços da UE para aumentar o número de porteiros (gatekeepers) das suas fronteiras, garantes da sua política externa de migração. Por conseguinte, frequentemente os parceiros europeus tentam aproveitar-se desta incapacidade da UE para gerir as suas fronteiras e dependência na gestão migratória, explorando as suas preocupações de segurança para exercer pressão sobre a negociação de determinadas políticas, do seu próprio interesse44.
No âmbito da sua ação exterior, a UE tem priorizado as migrações como uma preocupação nas suas relações com os países terceiros. Neste sentido, o novo Quadro de Parceria de Migração da Comissão Europeia, aprovado em junho de 2016, propõe uma renovação das parcerias com os países terceiros sob a forma de «pactos» personalizados, assumindo a pressão migratória como o «novo normal» tanto para a UE como para os seus parceiros45. Na prática esta cooperação envolve não só os governos locais, e forças de segurança, mas também um conjunto de atores de carácter não estatal, como milícias locais ou clãs, que não são conhecidos pela proteção dos direitos humanos46.
A implementação de um conjunto de operações policiais transnacionais - como os projetos Seahorse Atlantic e Seahorse Mediterranean - ilustra o trabalho fronteiriço por parte da UE nas suas relações com África. Estas iniciativas centram-se no rastreio das rotas migratórias desde o local de origem dos migrantes e identificando os pontos chave da rota, mediante a implementação de patrulhas conjuntas, alta tecnologia para a vigilância de grandes áreas da fronteira e dispositivos que permitem monitorizar e intercetar migrantes. Uma análise em profundidade destas operações permite discernir as novas lógicas espaciais da externalização da UE mediante processos de off-shoring fronteiriço e extraterritorialidade. Estes projetos consolidam esta extensão territorial da UE através de práticas cada vez mais itinerantes que envolvem instituições estatais e policiais num quadro de estratégias que reformulam espaços e jurisdições. Implementa-se assim uma gestão da fronteira «à distância» criando espaços que «reelaboram o significado geopolítico do território e o governo biopolítico das populações e da mobilidade»47.
Para evitar o drama humanitário nas suas fronteiras, a UE tem desenvolvido várias operações navais sob a égide da sua agência de fronteiras, Frontex, assim como no quadro de ação da sua política externa como as operações EUNAVFOR MED/Sophia e Tritón. Estas missões permitem dar uma resposta de curto prazo às tragédias humanas no mar, contudo, suscitam questões várias relativas ao dever de assistência dos Estados europeus, à aplicação da proteção internacional, assim como sobre a criação de uma maior instabilidade na margem sul do Mediterrâneo48.
A securitização da política migratória europeia, apoiada na criação de uma cada vez mais sólida infraestrutura de externalização, tem como objetivo evitar que os migrantes do Sul Global alcancem as fronteiras da UE. A adoção de um enfoque centrado nas migrações como uma ameaça à segurança interna e externa dos Estados europeus facilitou assim a criação de um estado de exceção permanente.
O endurecimento dos controlos fronteiriços nas últimas décadas intensificou o debate entre garantir a segurança nacional e a proteção dos direitos humanos. As fronteiras tornaram-se um cenário de desafios éticos. A tensão entre as preocupações com a segurança e os direitos humanos é muitas vezes um fator desestabilizador, já que, no imaginário coletivo, segurança e direitos humanos são percebidos como conceitos opostos e contraditórios49.
A infraestrutura migratória europeia apresenta assim um esquema intrincado, centrado na sua dimensão exterior, que envolve a interação de diferentes níveis e atores. Esta externalização tem como efeito secundário o estabelecimento de vias de escape legais e políticas, assim como a criação de lógicas assimétricas e difusas entre a UE e os seus parceiros. Por meio da cooperação com países terceiros, os países europeus relegam o dever de proteção a Estados terceiros, legitimando a irresponsabilidade dos Estados-Membros. No entanto, a cooperação com países terceiros não exonera a UE e os seus Estados-Membros das suas responsabilidades quanto à proteção internacional.
O sucesso destas políticas, que no curto prazo permitem reduzir drasticamente o número de chegadas ao território europeu, tem também impactos significativos nas dinâmicas migratórias e resulta frequentemente numa maior pressão para os países de origem e de trânsito que não têm as infraestruturas, nem políticas adequadas, com potencial para se converterem numa crise regional que exacerbaria em muitos casos a própria pressão migratória.
A violência da necrofronteira
A lógica de dissuasão implementada pela UE consiste numa multiplicidade de iniciativas centradas tanto nas fronteiras terrestres como marítimas, que se traduzem em rotas migratórias cada vez mais perigosas. O aparato sociotecnológico que envolve a UE e os países africanos, num quadro de parceria que combina migrações, desenvolvimento e políticas de estabilização, cria um regime migratório centrado na detenção, na criminalização e na contenção. Mas como passamos da externalização fronteiriça a esta conceção da necrofronteira? Analisaremos este processo através da análise da fronteira marítima da UE, centrando-nos no espaço do Mediterrâneo e do Atlântico.
Um elemento central à necrofronteira é a indústria do medo e da morte, baseada nas constantes violações de direitos humanos a que assistimos na fronteira sul da UE. Uma indústria que resulta da lógica de securitização e que beneficia das práticas de vigilância, detenção, deportação, criminalização e aprisionamento dos migrantes.
Ao longo do seu percurso, os migrantes transitam por diversos territórios com diferentes regimes jurídicos onde se deparam com distintas manifestações físicas da fronteira, sejam elas objetos (como muros, vedações ou barcos-patrulha), barreiras geográficas (como rios ou montanhas) ou até seres humanos (como os guardas de fronteira). Com efeito, as mortes nas fronteiras ocorrem em contextos altamente contestados nos quais interage uma panóplia de atores, de políticas, de práticas e de discursos50.
Através da celebração de acordos multilaterais e bilaterais entre a UE e os países da fronteira sul que priorizam, como vimos anteriormente, as dimensões das migrações e o controlo de fronteiras, desde uma aproximação securitária a estes fenómenos, criou-se um complexo regime de governação do mar que contrai e expande direitos e obrigações. Emerge assim uma forma de violência difusa e dispersa que se materializa na implementação de um aparato tecnológico de vigilância e controlo sofisticado que tem como função separar os diferentes tipos de mobilidade - a desejada e a indesejada - dentro de um vasto território, caracterizado pela sua fluidez, como é o mar.
As operações de vigilância e controlo das águas do Mediterrâneo e do Atlântico realizam-se através do exercício de uma «soberania desagregada»51 e elástica, na qual a aplicação dos princípios e obrigações no mar é feita de forma seletiva. Programas que envolvem autoridades europeias e africanas - como o já mencionado Seahorse Atlantic, promovido pela Guardia Civil espanhola em cooperação com Portugal, Marrocos, Mauritânia, Senegal e Cabo Verde -, permitiram a implementação de um sistema de comunicações e patrulhas para monitorizar as saídas irregulares das áreas costeiras. No centro destas operações multinível está uma emergente conceptualização da cooperação transfronteiriça entre europeus e africanos por meio de operações conjuntas que reinventam os imaginários da fronteira52. Apesar destas missões terem permitido reduzir drasticamente o número de chegadas às costas europeias, os custos humanos são grandes já que frequentemente violam os princípios básicos do direito internacional, como são a proteção internacional, a assistência a pessoas em perigo no mar e o princípio de não expulsão (non-refoulement).
A infraestrutura sociotecnológica implementada nas fronteiras europeias cria um beco sem saída, em que os indivíduos se veem capturados num emaranhado de regras e restrições contraditórias que em muitos casos não lhes permite chegar ao território da UE. Para descrever esta lógica de dissuasão característica dos regimes fronteiriços ocidentais, Fitzgerald53 resgata um conjunto de conceitos medievais que funcionam num continuum de coação e que vão do mais leve (a cúpula) ao mais extremo (as barbacãs ou torres de vigilância) na externalização de fronteiras. Resgatamos a ideia de fosso que se aplica aos países com fronteiras marítimas, onde o mar se tornou uma vala para impedir a entrada daqueles indivíduos indesejados. No fosso operam patrulhas e operações militares encarregadas de monitorizar e intercetar embarcações e impedir o desembarque e a readmissão dos indivíduos intercetados no mar.
A aplicação de diversos dispositivos tecnológicos no âmbito marítimo facilita a implementação de operações de busca e salvamento (SAR, na sua sigla em inglês, de search and rescue) e assume também um carácter preventivo ao providenciar uma imagem de conhecimento da situação das fronteiras marítimas e assim facilitar a proteção da fronteira e a deteção de riscos potenciais. Contudo, um uso não regulamentado destes sistemas converte-os em instrumentos de exclusão, parte deste continuum de coerção54.
A fortificação das zonas fronteiriças - através da construção de muros e da edificação de cercas como medida de dissuasão e expulsão - cria espaços anómalos, onde se aplicam leis e procedimentos especiais. Neste sentido, o evento relatado no início deste artigo ilustra as constantes vulnerabilidades de direitos humanos na fronteira sul, que resultam em tragédias como o falecimento de, pelo menos, 23 pessoas segundo os dados oficiais. O uso desproporcionado da força por parte dos agentes policiais, tanto espanhóis como marroquinos, as devoluções sumárias e a possível devolução de mortos da Espanha a Marrocos (cuja investigação se encontra ainda em curso) advertem para a violência que se exerce na execução da necropolítica, em que os corpos são tratados como mercadoria no negócio do controlo migratório.
As mortes na fronteira não incluem apenas os cadáveres, mas também os desaparecidos. Os migrantes que atravessam o Atlântico ou o Mediterrâneo desde o Sul Global entram num «espaço de não-existência» no qual se têm de mover nas franjas do sistema entre o legítimo e o ilegítimo, entre o aberto e o clandestino para poder atravessar essas barreiras e escapar à perseguição e ao perigo mortal ou de desaparição. Desta forma, os desaparecimentos - e mortes - estão enraizados nestas relações assimétricas Norte-Sul, «legados da violência colonial e de estruturas arraigadas de racismo»55.
A externalização dos controlos fronteiriços cria novas lógicas e práticas, numa interação entre visibilidade e invisibilidade, que se caracteriza pela falta de transparência política sobre os acordos celebrados com os países terceiros, assim como sobre o gasto migratório e sobre as empresas que beneficiam dele. Constatamos também a existência de escassa informação sobre a aplicação dos direitos humanos nas zonas de fronteira, sendo que as imagens como a que relatamos no início mostram o recurso a uma violência extrema, adicionando assim mais atrito às práticas fronteiriças em que as mortes são um dano colateral de políticas excecionais e os direitos humanos se encontram em suspenso.
Temos assistido nos últimos anos a um crescente movimento de resistência e de humanização das fronteiras por parte de organizações da sociedade civil, e inclusivamente de ações artísticas que reclamam o fim destas políticas de violência e morte e denunciam as constantes violações de direitos humanos. Contudo, os pactos celebrados entre a UE e os seus sócios do Sul Global, com base em discursos humanitários, legitimam estas ações ao mesmo tempo que transferem responsabilidades para os parceiros europeus. A violência que impera além das fronteiras físicas europeias é parte do regime de invisibilidade fronteiriça, fortemente caracterizado pelo sigilo, dissimulação e clandestinidade, fazendo jus ao ditado «longe da vista, longe do coração».
Notas conclusivas
Os processos de fronteirização modernos caracterizam-se por um regime de governação em que as fronteiras operam como veículo de poder e controlo da população. As políticas e práticas implementadas pelos Estados do Norte Mundial, neste caso particular pela UE e os seus Estados-Membros, convertem a fronteira num dispositivo central de exclusão e violência através da criação de um complexo sistema sociotecnológico.
Vimos como as reivindicações de segurança organizam a mobilidade mediante uma intrincada teia de interação entre atores, políticas, normas e dispositivos que dão forma às infraestruturas migratórias. Adotar um enfoque centrado na infraestrutura migratória europeia permite-nos aproximar à sua dimensão externa, que se tem visto reforçada pela ação da UE nas últimas décadas. O processo de externalização traduz-se assim numa relação que se apresenta como simétrica entre a UE e os seus parceiros africanos e que permite à UE delegar «legitimamente» responsabilidades quanto à gestão das suas fronteiras externas em países terceiros, em muitos casos conhecidos pelas suas reiteradas violações de direitos humanos. Constatamos que a infraestrutura migratória da UE na atualidade tem como pilares estruturadores um estado de exceção permanente que permite monitorizar, controlar, deter e perseguir de forma indiscriminada determinados grupos.
O enfoque da necrofronteira é expressão do trabalho fronteiriço que permite dar visibilidade a um conjunto de práticas que se caracterizam pela dissimulação e clandestinidade e é testemunha do processo de reinvenção do sistema migratório centrado em narrativas de medo que desterritorializam a fronteira. As mortes na fronteira deveriam ser uma exceção, mas a sua apresentação como parte de um processo político natural, no contexto de excecionalidade imposto às migrações, resulta em processos de crescente desumanização e indiferença. Desta forma, concluímos que uma abordagem política centrada num permanente estado de emergência suspende as práticas quotidianas e cria um estado de exceção em que a morte - ou desaparição - se banaliza.
Esta análise empírica demonstra que um enfoque centrado nas mortes na fronteira resulta numa forma de resistência à hipocrisia organizada através da qual os Estados europeus tentam legitimar a sua irresponsabilidade frente à gestão das suas fronteiras. A atenção prestada a este fenómeno e a sua visibilidade - não esqueçamos, contudo, as desaparições frequentes que não são objeto de atenção mediática - são apenas a ponta do icebergue de um regime migratório cada vez mais caracterizado pela violência e pela discriminação.