SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número76A emergência de novos partidos em Portugal: a década de 2010 índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.76 Lisboa dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.23906/ri2022.76r01 

Recensão

Recensão: Desequilíbrios e os fins da Europa

Patricia Daehnhardt1 

1 IPRI-NOVA. Rua de D. Estefânia, 195, 5.º Dt.º, 1000-155 Lisboa, Portugal. patricia.daehnhardt@ipri.pt

GASPAR, Carlos. 2022. O Fim da Europa. Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, 186 páginasp. ISBN: 978-972-9393-49-5.


Carlos Gaspar é sobejamente conhecido na academia e fora dela e um autor prolífico, que se rege por uma disciplina editorial notável de publicar, pelo menos, um livro por ano. Desde 2016, lançou: O Pós-Guerra Fria (2016), A Balança da Europa (2017), Raymond Aron e a Guerra Fria (2018), O Regresso da Anarquia (2019), O Mundo de Amanhã (2020) e Teoria das Relações Internacionais (2021).

A sua última obra, O Fim da Europa (2022), é um livro escrito por quem pensa e reflete sobre as relações internacionais de forma crítica porque sempre o faz a partir da articulação entre três olhares: o olhar do analista histórico, para quem a repetição dos acontecimentos históricos não é inevitável, mas o ressurgimento cíclico possível; o olhar do analista teórico, que recorre às teorias das Relações Internacionais para sustentar os seus argumentos; e o olhar do analista empírico-contemporâneo, que contextualiza os acontecimentos cronológica e causalmente. Esta qualidade torna percetíveis as questões complexas que Carlos Gaspar trata nos seus livros, apresentando com eloquência e clareza os seus argumentos.

Este livro é imprescindível para os especialistas e para todos os interessados na história contemporânea europeia e na atualidade da Europa. Nos tempos conturbados que vivemos, aprofundar o conhecimento do passado europeu parece pressuposto essencial para compreender como na guerra na Ucrânia se joga não apenas o futuro desse país, mas o futuro da ordem europeia.

Desde logo, como qualquer bom livro, tanto a capa como o título desafiam o leitor antes do início da leitura. A capa - um esboço de Almada Negreiros, com parte do poema de Fernando Pessoa, de 1928, em que se lê:

«A Europa jaz posta, nos cotovelos […] O rosto com que fita é Portugal» - sugere uma Europa pensativa, sonhadora e relaxada rumo ao seu futuro sempre incerto.

Por seu turno, o título do livro, O Fim da Europa, sugere a decadência e o declínio da Europa, um tema recorrente durante o último século, e «obrigatório para os intelectuais europeus desde a Grande Guerra» (p. 121): Spengler, Valéry, Coudenhove-Kalergi e Toynbee, seguidos de Burnham e Schumpeter, reconhecem esse declínio, quase todos, como inevitável. Mas, como Aron, Carlos Gaspar rejeita essa leitura catastrofista e identifica a Europa como capaz de se reerguer e reinventar, após grandes conflitos e transformações. Nesses termos, e no reconhecimento de que essa Europa deixou de ser o epicentro do sistema internacional, o Fim da Europa é a procura pelo novo propósito da Europa.

Para esse efeito, Carlos Gaspar traça a Europa dos últimos cem anos - a Europa de Versalhes, a Europa de Ialta e a Europa de Berlim - de acordo com os seus momentos de queda e ascensão, e os momentos esperançados do seu renascimento e regresso. Assim, a Europa de Versalhes corresponde, em parte, à

«fundação da SDN [Sociedade das Nações] - a primeira organização internacional permanente com vocação para representar o conjunto dos Estados nacionais, o primeiro sistema de segurança colectiva, a primeira forma multilateral da ordem liberal das democracias ocidentais».

Contudo, a ausência da principal potência internacional da nova organização resultou no seu fracasso, e «o fracasso da SDN é o fracasso da ordem europeia» (p. 29), já que os Estados Unidos não se assumem como uma «potência europeia» e

«sem os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a França não têm condições nem para construir a SDN como uma instituição representativa do sistema de Estados internacional, nem para consolidar a sua legitimidade como o garante da paz democrática, nem para impor os trata- dos de Paris e a paz europeia» (p. 27).

A Europa de Ialta, que emerge da Segunda Guerra Mundial, traduz «a primeira vez que uma guerra europeia é decidida pelas potências periféricas: os Estados Unidos são uma potência ocidental do outro lado do Atlântico, a União Soviética é uma potência euroasiática» (p. 46) e cuja configuração bipolar é determinada decisiva- mente pela revolução nuclear. Contudo, também esta Europa é instável, porque «a Europa de Yalta deixa de existir com a institucionalização da divisão da Europa» (p. 63). A Europa que prevalece passa «a ser a prioridade na estratégia internacional dos Estados Unidos» (p. 66) durante a Guerra Fria porque «a estabilidade das alianças é a regra no centro estratégico da competição bipolar e nenhum Estado é autorizado a cruzar a linha de demarcação que divide a Europa» (p. 70).

A Europa de Berlim emerge em 1990, com a reunificação alemã, o fim da Guerra Fria e a implosão da União Soviética, e define-se pela «revolução democrática europeia» (p. 81). Mas ao contrário do processo de reconstrução da Europa em 1945, em 1991 a reconstrução é marcada pela continuidade «das instituições multilaterais construídas pela comunidade de segurança transatlântica na Guerra Fria» (p. 95) e pelo alargamento institucional da Aliança Atlântica e da União Europeia. Todavia, também a Europa de Berlim, apesar de não emergir a partir de uma guerra hegemónica, é uma Europa profundamente instável que não consegue evitar sucessivas crises. No final da segunda década do pós-Guerra Fria, a Europa encontra-se paralisada pela instabilidade multipolar que «é mais perigosa do que a instabilidade unipolar»: à «conjunção entre o retraimento estratégico dos Estados Unidos na sequência da aventura iraquiana, a viragem ofensiva das principais potências revisionistas, [e] a multiplicação dos conflitos periféricos» (p. 123) associa-se «a insegurança crescente da Europa» devido à «ascensão dos movimentos populistas», à «fragmentação dos sis- temas partidários prevalece[nte] na Europa continental» (p. 124) e à crise epidémica, que «tem um impacto brutal numa Europa deprimida» (p. 125) que acaba de sair da sua pior crise económico-financeira desde o início do projeto europeu.

Neste contexto, a tese de Carlos Gaspar não é apenas a da competição entre as grandes potências, que decorre há, pelo menos, mais de uma década. É também a de que, perante o fim do «momento uni- polar» norte-americano, já está em curso uma bipolarização entre a comunidade transatlântica e a comunidade democrática asiática, entre as democracias do Quad transatlântico e o Quad asiático, «os Estados Unidos e os seus aliados - as principais potências conservadoras» (p. 127), por um lado, e, por outro lado, a China e a Rússia, cujas ambições do projeto da Grande Eurásia definem «as autocracias chinesa e russa, como as principais potências revisionistas» (p. 127).

Nesta «nova dinâmica do sistema internacional» (p. 127), «a viragem defensiva de Washington, marcada pela decisão de não intervir na Guerra da Síria, é o sinal para a viragem ofensiva de Moscovo, marcada pela decisão de anexar a Crimeia» - o que

«confirma a ressurgência da Rússia como grande potência revisionista» (p. 131) cuja prioridade estratégica «é dividir a NATO e a União Europeia e excluir os Estados Unidos da ordem de segurança europeia» (p. 133). À nova dinâmica corresponde também a viragem ofensiva de Pequim, cuja «estratégia ofensiva […] na Europa, consolidada por Xi Jinping, tem três objetivos principais: separar a Europa dos Estados Uni- dos, dividir a União Europeia e integrar Estados europeus no sistema alternativo que a China está a edificar à escala global», e em que a Europa se torna «o terminal geográfico e o destino político das novas “Rotas da Seda”, que confirmam a determinação da China em reordenar a “Grande Eurásia” através de uma estratégia de “interconectividade”» (p. 135).

Nestes termos, «a balança triangular confirma o declínio da Alemanha, da França e da Grã-Bretanha na hierarquia internacional dominada pelos Estados Unidos, pela China e pela Rússia, que reconhecem a Europa como um teatro crucial na sua luta pelo poder» (p. 127). Para Carlos Gaspar, este «declínio da posição internacional da Europa» é ainda mais exposto pelas «estratégias divergentes» com que estas «três principais potências europeias, potências médias na nova configuração da hierarquia internacional», respondem «às crises sucessivas» (p. 137).

Estas divergências definem-se pela estratégia radical da Grã-Bretanha, quando sai da União Europeia e «regressa à sua posição original como a única das três potências europeias que privilegia a NATO e a sua “relação especial” com os Estados Unidos» (p. 138), recuperando assim o seu estatuto internacional enquanto Global Britain; pela estratégia europeísta da França, cujo dilema «é sobreviver aos riscos simétricos do isolamento europeu e da hegemonia alemã», ao mesmo tempo que sabe da sua

«dependência crescente» e que a sua «visão da “soberania europeia” só pode ser realizada se e quando se inserir na estratégia alemã» (p. 141). Para colmatar esta assimetria franco-alemã, ressurge o velho sonho gaullista de um sistema de segurança pan-europeu, que inclui a Rússia mas exclui os Estados Unidos. A Alemanha, por seu turno, ilude-se com a possibilidade de uma equidistância das grandes potências e com a ideia de que «o desacoplamento da segurança europeia da segurança norte-americana» seria «uma forma de subtrair a Europa aos dilemas de segurança dos Esta- dos Unidos e de isolar o sistema de segurança europeu da dinâmica competitiva do sistema internacional» (p. 142). Ao mesmo tempo, reconhece, desde a anexação da Cri- meia, «a contenção da pressão estratégica russa desde o Báltico ao mar Negro» como prioridade estratégica (p. 143).

Assim, conclui Carlos Gaspar,

«trinta anos depois do fim da Guerra Fria, a divisão perpétua entre o atlantismo da Grã-Bretanha, o excepcionalismo da França e o centrismo da Alemanha significa a incapacidade colectiva para definir uma estratégia europeia de resposta às mudanças na conjuntura internacional, num momento em que a rivalidade sistémica entre o Ocidente e a China, alinhada com a Rússia, condiciona os alinhamentos estratégicos à escala global e regional» (p. 147).

E, consequentemente, «os dilemas de segurança europeus, […] continuam por resolver no post-Guerra Fria», «pela marginalização da Grã-Bretanha, pelas ilusões da França e pelo imobilismo da Alemanha que impede as três potências de levar a cabo uma revolução na balança europeia» (pp. 147-148).

A invasão russa da Ucrânia - «o maior terramoto internacional do post-Guerra Fria» (p. 154) -, transforma as relações entre as três principais potências internacionais. Primeiro,

«[a guerra] confirma o declínio relativo da principal potência internacional, cujos esforços se concentram na tentativa de limitar o conflito e evitar a escalada, o que exclui o envolvimento directo das forças militares da NATO e dos aliados europeus na guerra, sem, todavia, deixar a Ucrânia desarmada e isolada perante a Rússia» (p. 154).

Segundo, a Guerra da Ucrânia «fecha o breve intervalo durante o qual a reintegração da Rússia na Europa foi uma possibilidade real» (p. 160), bem como a «oportunidade de reconstituir a unidade europeia com a Rússia» (p. 161). Porém, a guerra «deixa a Rússia mais isolada e mais dependente da China», confirmando a assimetria na relação russo-chinesa a favor da potência asiática. Terceiro, a guerra da Rússia na Ucrânia definiu a nova linha de demarcação no continente europeu, entre a Europa e a Rússia, e colocou a Ucrânia e a Moldávia, ao fim de três décadas de incerteza, do lado da Europa. Como afirma Carlos Gaspar, «[a] invasão torna definitiva a separação entre a Rússia e a Ucrânia e a futura linha de demarcação entre as duas antigas repúblicas soviéticas define não só a fronteira entre os dois Estados, mas também a fronteira da Europa com a Rússia» (p. 160). Com o pedido de adesão formal à União Europeia «a Ucrânia deixa de ser a fronteira da Rússia com a Europa e passa a ser a fronteira da Europa com a Rússia» (p. 160).

Qual é, neste contexto de bipolarização de alianças e de regresso da guerra à Europa, o lugar da Europa? Se as Europas, de Ver- salhes, de Ialta, de Berlim não perduram, qual é e deve ser o propósito da Europa perante o seu «“11 de setembro” europeu» (p. 150)?

O propósito dessa Europa, para Carlos Gaspar, é triplo e é crucial. Primeiro, «a bipolarização entre o campo democrático e o campo autocrático que domina a luta pelo poder internacional torna indispensável consolidar a aliança com os Estados Unidos» (p. 148). Segundo, reconhecer a necessidade do reforço da comunidade transatlântica, e dos «quadros multilaterais onde Berlim, Paris e Londres podem concertar, entre si e com os seus aliados democráticos, as suas estratégias de contenção das potências autoritárias».

Para o efeito, «as três potências europeias devem convergir numa estratégia de europeização da NATO, que garanta a sua capa- cidade colectiva para conter a pressão estratégica da Rússia» (p. 148). Neste sen- tido, «A revolução nas políticas externas, de segurança e de defesa da Alemanha marca o fim das ilusões pacifistas e representa uma viragem decisiva para a balança europeia e transatlântica». Este realinha- mento, que torna a Alemanha «a principal potência europeia em todas as dimensões relevantes, excepto no domínio estratégico nuclear» (p. 158), pode fortalecer

«a europeização da NATO, que exige a convergência da Alemanha, da Grã-Bretanha e da França para reduzir a dependência estratégica dos Estados Unidos e garantir a sua capacidade colectiva para travar uma agressão da Rússia nas fronteiras da Europa, passa a ser possível» (p.157).

Por último, a Europa deve evitar a consolidação da aliança entre a Rússia e a China. Como afirma Carlos Gaspar,

«a viragem asiática da Rússia de Putin tem um significado estratégico, político e moral que altera a balança europeia […]. A guerra europeia e a convergência sino-russa tornam imperativa a unidade estratégica entre os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a Alemanha e a França e a convergência entre o QUAD transatlântico e o QUAD indo-pacífico» (p. 156).

Desta forma, o fim da nossa Europa permanece um propósito complexo e pesado, em que o sossego e a calma com que a Senhora Europa de Almada Negreiros e de Fernando Pessoa «jazia posta nos cotovelos» são mais uma vez interrompidos pelas turbulências e incertezas do sistema internacional.

Referencias

GASPAR, Carlos . 2022. O Fim da Europa. Lisboa, Instituto da Defesa Nacional. 186 páginas. ISBN: 978-972-9393-49-5 [ Links ]

Patricia Daehnhardt Investigadora do IPRI-NOVA. Doutorada em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Science sobre a política externa da Alemanha após a unificação. Foi membro da Coordenação da Secção de Relações Internacionais da Associação Portuguesa de Ciência Política (2012-2014) e diretora da Secção de Relações Internacionais da Associação Portuguesa de Ciência Política (2014-2016). Tem publicado vários artigos em revistas nacionais e internacionais.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons