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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.77 Lisboa mar. 2023  Epub 31-Mar-2023

https://doi.org/10.23906/ri2023.77a01 

Editorial

A guerra da Rússia na Ucrânia: o primeiro balanço

Sandra Fernandes1  1

1 Universidade do Minho, Campus Universitário de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal | sfernandes@eeg.uminho.pt


Nos últimos dois séculos, a Rússia foi a nação militarmente mais ativa no mundo - a China situa-se em quarto lugar2. Desde 1816, a Rússia participou em 19% de todas as disputas militares interestaduais. Esta observação sublinha a necessidade de percebermos o tempo presente, sem perder de vista o tempo longo. Esta postura caracteriza, aliás, a análise científica na área de Relações Internacionais, assim como a análise estratégica: pensar num tempo longo, recuar para ver. É um desafio particularmente exigente na conjuntura atual em que a História acontece no tempo presente, a grande velocidade.

A guerra atual da Rússia contra a Ucrânia está a provocar ondas de choque geopolítico não só à escala europeia, mas também à escala mundial. Na manhã de quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022, a Europa mudou irremediavelmente, procurando não só lidar com o terrível regresso da guerra de agressão territorial ao solo europeu, como necessitando de rever todas as políticas que cimentaram aquilo que conhecíamos como a «ordem do pós-Guerra Fria».

A constatação de que a reaproximação à Rússia depois do fim da competição bipolar não resultou é confirmada pelo acontecimento inelutável da guerra, alimentado pela liderança de Putin e pela forma como exacerbou o sentimento de humilhação da Federação Russa - a qual os russos chamam de sovremienaia Rossia (Rússia Moderna) -, esse país diferente e único que surge em 1991.

Uma das facetas do atual choque geopolítico prende-se, precisamente, com a rutura interna do país. A Rússia de Putin deixou de ser europeia. Para os países bálticos e a Polónia, a Federação, aliás, nunca o foi, pois consideram que o país desconhece o Estado de direito, ou seja, o primado da Lei. Apenas reconhece o primado da autoridade. Assim, este número da revista dá espaço aos países que partilham o mesmo receio face à Rússia, o qual se reflete por exemplo na maior ajuda bilateral à Ucrânia em percentagem de produto interno bruto3. O ensaio de Jakub Bornio apresenta uma visão polaca da guerra que, conforme sublinha, se iniciou já em 2014. O texto de Karlis Bukovskis explana a posição dos três Estados Bálticos desde que a guerra começou mostrando uma trajetória comum no sentido de um corte definitivo com a pegada do soft power russo.

Se todos os dirigentes europeus visitaram Kiev desde o início da guerra, aquilo que a História irá reter é que as autoridades da Polónia e dos Países Bálticos foram as primeiras a deslocarem-se à Ucrânia. Foi também a Polónia que pressionou a Alemanha a entregar as viaturas de combate Leopard 2, afirmando a sua estratégia militar de fornecimento de armas à Ucrânia. Cracóvia quer ser a primeira potência militar da Europa, com o objetivo de aumentar de 142 mil para 300 mil soldados, numa clara afirmação de Varsóvia na Europa4.

Os Estados Unidos da América (EUA) também escolheram a Polónia para «falar» a Putin na semana que marcou o primeiro ano de guerra. A dinâmica política do atlantismo é alimentada pelo receio destes países europeus da Rússia e do seu imperialismo. Os países que conheceram a dominação russa no passado olham primeiramente na direção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, na sigla inglesa) para a sua segurança. Nesse contexto, as visitas de Biden em março de 2022 e em fevereiro de 2023 destinaram-se a reafirmar garantias de segurança. A Polónia tem o objetivo de gastar 4% do produto interno bruto em defesa, duplicando o patamar mínimo exigido e que apenas alguns aliados cumprem hoje. Estando Varsóvia a transformar-se na terceira força militar da Europa, como irá influenciar a cultura e o debate estratégico? O ensaio de Jakub Bornio contribui para discernirmos a leitura da alteração do paradigma securitário na perspetiva da Europa Oriental.

Nesse contexto, após um ano de guerra, a narrativa do Presidente francês Emmanuel Macron sobre a necessidade de pensar o pós-guerra numa perspetiva europeia não é audível5. As garantias de segurança são esperadas no imediato, olhando para os EUA e para a NATO. Assim, a Europa da defesa é mais do que nunca necessária, mas, paradoxalmente, continua a ser adiada pela urgência premente de não deixar a Rússia ganhar a guerra. O ensaio de Liliana Reis reflete sobre a União Europeia (UE) e os três instrumentos ativados para apoiar a Ucrânia. Para além da vertente militar, sublinha as dimensões humanitárias e económicas. O mapeamento apresentado releva não só as medidas adotadas e o grau de coesão interna, mas também as inovações institucionais na articulação com os Estados-Membros.

Olhando para a Rússia, qualquer perspetiva de negociação é dificultada pelo seu dirigente que rompeu com a tradição europeia do país, incluindo os seus valores, princípios e visão do mundo, materializando uma rutura que terá consequências mais profundas na construção da identidade nacional russa e, portanto, no redesenhar, em curso neste momento, do novo mapa da Europa.

Assistimos há mais de uma década ao regresso do Kremlin ao palco principal das relações internacionais, que melhorou a posição da Federação no sistema internacional e modificou a sua política externa em conformidade. A rutura inequívoca na relação entre a UE e a Rússia, os dois maiores vizinhos do continente, deita por terra a ideia de uma «casa comum europeia». Construir esta «casa» idealizada por Gorbachov (falecido há um ano) revelou-se um ideal algo ingénuo no contexto dos anos 1990. O ensaio de Maria Raquel Freire explora a afirmação ultranacionalista da Federação Russa na vigência do Presidente Putin e como, apesar de elementos de continuidade, o primeiro ano da guerra foi alimentado por incoerências discursivas centradas na construção de uma ameaça existencial para o país, edificada na defesa da sua civilização. A sua análise contribui para, por um lado, o entendimento da nova linha divisória que se está a desenhar, separando a Europa Ocidental (um conceito profundamente geopolítico) da Rússia e dos seus aliados. Por outro lado, sublinha a função interna das novas narrativas russas para o apoio da população ao atual regime.

O ensaio de Vanda Amaro Dias explora a relação entre a Ucrânia e a Rússia num face a face entre vontade hegemónica russa e resistência ucraniana. Vanda Dias aponta para os efeitos negativos da guerra na capacidade de imposição coerciva da sua dominação, com consequências que atravessam todo o espaço pós-soviético. O «estrangeiro próximo» russo [que inclui os 15 Estados que faziam parte da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS)] representa um limite político e operacional intransponível, em que a Ucrânia detinha uma importância particular aos olhos do Kremlin, a qual se transformou numa obsessão pessoal para o Presidente Putin.

Desde 2015, a Rússia tem usado amplamente a visão de «Grande Eurásia»6 para justificar a aproximação dos países do ex-espaço soviético a Moscovo e para orquestrar uma viragem para a Ásia e a China, simultaneamente afastando-se das suas relações com a Europa. O artigo de Sandra Fernandes e Vera Grantseva (Ageeva) analisa o posicionamento de quatro países da Ásia Central, tradicionalmente aliados e dependentes de Moscovo, durante o primeiro ano de guerra. A análise política aponta para posicionamentos que não são claramente pró-russos e na vertente militar as mudanças são ainda mais assinaláveis. Na vertente económica, em que esses países mostram algumas fragilidades, é também patente algum afastamento, alimentado por um debate sobre a descolonização da região em relação à Rússia (e à China).

No plano global, a consequência geopolítica desta guerra situa-se no redesenhar da ordem mundial e da transição hegemónica americana que oferece uma leitura mais difícil e coloca o bloco ocidental perante um mundo mais fluido e imprevisível. O ensaio de Diana Soller analisa a forma como os EUA percecionam o exercício da sua liderança contestada e como têm respondido, no último ano, aos grandes dilemas que a guerra na Ucrânia lhes coloca. A China é apresentada como o principal rival de Washington no sistema internacional e é sob esse prisma que os americanos fazem a sua leitura da guerra na Ucrânia. Assim, neste número da R:I, a China, e a possível aliança com Moscovo, é analisada sob o prisma da transição hegemónica americana.

O ensaio de David Silva Ferreira também salienta o fator chinês na política norte-americana, em articulação com as consequências da guerra na Ucrânia, numa análise específica à política nuclear de Washington. A leitura dos EUA sobre a necessidade inédita de se confrontarem com duas superpotências nucleares (a China e a Rússia) e a fragilização contínua dos acordos de controlo de armamentos confirmam a opção de reforço do seu poderio nuclear.

Este número da R:I - dedicado ao balanço de um ano de guerra na Ucrânia - identifica, portanto, a forte dimensão ideacional do conflito, adensada pelo clube das potências iliberais que apoiam de várias formas a guerra de Putin. Nesta dimensão, a mensagem é clara desde o primeiro dia da guerra e os seus desenvolvimentos: Putin não precisa do mundo ocidental, não respeita as formas de regulação internacional que limitem as soberanias e acredita que tem amigos, de preferência autoritários e populistas, com quem levar a cabo os desígnios imperialistas dos saudosos tempos da URSS.

Por esses motivos, a Ucrânia é o epicentro da nova geopolítica mundial, que requer uma renovada avaliação de capacidades e de criação de alianças. O poder de atração americano existe e é uma política externa (soft power), mas deve ser, hoje, equilibrado com outras formas de gerar modelos de sociedade e de desenvolvimento mais debatidos. Isto porque o diálogo entre as sociedades e a possibilidade de trocas é a única alternativa para as relações internacionais, se não quisermos aceitar a visão dos realistas de guerra permanente como condição natural da política internacional: o soft power tem um papel para ultrapassar a competição de jogo de soma nula.

O atual momento de crise tem um forte potencial para forjar novas identidades no ambiente global e as capacidades em termos de soft power afiguram-se uma ferramenta essencial de política externa para avançar no novo mundo em construção e moldá-lo. Na perspetiva europeia, é central a ideia de «Ocidente» e do seu projeto normativo, entendido como liberdade, igualdade, progresso e direito, vertidos na Carta das Nações Unidas.

No entanto, e no imediato, é nas dimensões de hard power que mais alterações políticas se observam, desde o futuro alargamento da NATO aos países nórdicos e às viragens a 180 graus nas políticas da UE. A questão em aberto é saber se a extraordinária coesão atual, em contexto de crise, irá perdurar entre os Estados-Membros.

Os doze meses de guerra na Ucrânia aceleraram mudanças geopolíticas, tanto na Europa como a nível global, que colocam em causa a construção de uma política internacional mais normativa, baseada nos pressupostos da cooperação multilateral desenvolvida desde 1945. A humilhação histórica sentida por Putin enquanto «homem soviético» (antigo membro da elite do KGB, saudoso da grandeza da URSS e do paternalismo de Estaline, o seu modelo de liderança política) prova que a construção de regimes cooperativos pode ser abalada por espirais de desconfiança mútua e levar ao eventual colapso do edifício que se tinha já como adquirido.

A evolução da geopolítica mundial coloca os atores internacionais perante um dilema (clássico) de segurança. Um dilema, conforme o termo sugere, implica uma escolha perante opções que se excluem: uma, a interpretação, e outra, a resposta7. A primeira, a interpretação, está fechada: ou seja, a Rússia é vista como uma ameaça séria e vice-versa. Nesse contexto, o otimismo dos conceitos estratégicos da UE e da NATO nas primeiras décadas do século XXI deixou de existir, contrastando radicalmente com o ambiente securitário hodierno8. A segunda, a resposta a dar, ainda está em aberto e é diferenciada em função dos atores, como muito bem analisam os artigos dedicados a um ano de guerra na Ucrânia.

Bibliografia

BACHMANN, David; BUNDE, Tobias; MADERSPACHER, Quirin; OROZ, Adrian; SCHERF, Gundbert; WITTEK, Kai - More European, More Connected and More Capable: Building the European Armed Forces of the Future. Munique: Munich Security Conference, McKinsey, Hertie School of Governance, 2017. doi: https://doi.org/10.47342/BXTP7454. [ Links ]

BECKLEY, Michael - «The power of nations. Measuring what matters». In International Security. Vol. 3, N.º 44, 2018, pp. 7-44. doi: https://doi.org/10.1162/isec_a_00328. [ Links ]

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«La Pologne est en train de devenir la première puissance militaire européenne». In Le Grand Continent. 20 de fevereiro de 2023. Consultado em: 20 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://legrandcontinent.eu/fr/2023/02/20/la-pologne-est-en-train-de-devenir-la-premiere-puissance-militaire-europeenne/. [ Links ]

«Total bilateral aid commitments to Ukraine as a percentage of donor gross domestic product (GDP) between January 24, 2022 and January 15, 2023, by country». In Statista. 20 de fevereiro de 2023. Consultado em: 21 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.statista.com/statistics/1303450/bilateral-aid-to-ukraine-in-a-percent-of-donor-gdp/. [ Links ]

VINOCUR, Nicholas - «Theater or Zelenskyy? How Macron keeps failing to lead European response to Ukraine war». In Politico. 15 de fevereiro de 2023. Consultado em: 20 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.politico.eu/article/theatre-zelenskyy-macron-keeps-failing-lead-european-response-ukraine-war-paris-scholz-russia-jets-tanks/. [ Links ]

Notas

1 A autora contou com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e do Ministério da Educação e Ciência de Portugal através de fundos nacionais (UID/CPO/0758/2019).

2 BECKLEY, Michael - «The power of nations. Measuring what matters». In International Security. Vol. 3, N.º 44, 2018, pp. 7-44.

5 VINOCUR, Nicholas - «Theater or Zelenskyy? How Macron keeps failing to lead European response to Ukraine war». In Politico. 15 de fevereiro de 2023. Consultado em: 20 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.politico.eu/article/theatre-zelenskyy-macron-keeps-failing-lead-european-response-ukraine-war-paris-scholz-russia-jets-tanks/.

6FERNANDES, Sandra; AGEEVA, Vera - Geopolitics in the Twenty-First Century: Territories, Identities, and Foreign Policies. Nova Iorque: Nova Science Publishers, Inc., 2021.

7 BOOTH, Ken; WHEELER, Nicholas J. - Security Dilemma Fear, Cooperation, and Trust in World Politics. Basingstoke, UK: Palgrave Macmillan, 2008.

8 BACHMANN, David, et al. - More European, More Connected and More Capable: Building the European Armed Forces of the Future. Munique: Munich Security Conference, McKinsey, Hertie School of Governance, 2017.

Sandra Fernandes Investigadora do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho/Universidade de Évora. Professora auxiliar, com agregação, de Relações Internacionais e Ciência Política da Universidade do Minho. Doutorada em Ciência Política, com especialização em Relações Internacionais, pela Sciences Po (Paris).

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