Os Estados Bálticos da Estónia, Letónia e Lituânia localizam-se na Europa do Norte, junto à Rússia e à Bielorrússia. Não surpreende que a localização geográfica tenha definido as relações históricas, políticas, económicas e de segurança entre os três pequenos países e o seu gigantesco vizinho a leste. As relações com a Rússia têm estado no centro da diplomacia do Báltico, não só durante o seu primeiro período de independência, entre as duas guerras mundiais, mas também depois de 1991, quando os países reconquistaram a sua soberania face à União Soviética. Foi a sua própria história violenta com a Rússia que definiu a perspetiva báltica. E foi esta mesma história que facilitou o afastamento do Báltico dos legados da União Soviética e a sua aproximação à União Europeia (UE) e à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, na sigla inglesa) nas últimas três décadas.
A intensificação da guerra da Rússia contra a Ucrânia, em 2022, foi recebida pela oposição imediata e vigorosa dos Estados Bálticos e da Polónia. O atingir de um equilíbrio e o desacoplamento económico e político relativamente à Rússia, durante três décadas objeto de esforços fragmentados, estavam concluídos. A quarta fase - a fase da autoassertividade, da mudança pós-soviética do Báltico1 -, traduziu-se em os países iniciarem uma nova era no desenvolvimento da sua política externa. Os antigos receios de uma possível agressão em larga escala da Rússia tornaram-se realidade mais uma vez na Ucrânia.
A rápida reação do Báltico, condenando o ataque e enviando material militar para a Ucrânia durante as primeiras horas de combate, revelou uma mudança significativa na sua atitude face aos seus violentos vizinhos.
Este artigo analisa as principais viragens e mudanças, no que respeita à Rússia, que as políticas externa e interna dos Estados Bálticos sofreram em 2022. Tratará das respostas dos diplomatas e dos decisores bálticos, bem como do reconhecimento de que os Estados Bálticos se tornaram de facto partes envolvidas no conflito com o seu apoio à Ucrânia, e discutirá como os bálticos perderam o que restava da sua fé e do medo da Rússia. A guerra da Rússia contra a Ucrânia tornou os pequenos Estados Bálticos mais resilientes e destemidos na sua política externa.
Diplomatas reagindo não diplomaticamente
Embora a invasão da Ucrânia pela Rússia, na manhã de 24 de fevereiro de 2022, tenha constituído uma notícia terrível, pode dizer-se que as aspirações imperialistas da Rússia que resultaram na sua agressão contra a Ucrânia não foram uma surpresa. Há muito que os Estados Bálticos vêm a alertar o Ocidente para a ameaça permanente que a Rússia representa para a segurança da Europa, especialmente após a incursão da Rússia na Geórgia em 2008, da anexação da Crimeia e das ações destabilizadoras - ou quase guerra que foi - apoiadas pela Federação Russa no Donbas em 2014. Ingrida Simonyte, primeira-ministra da Lituânia, declarou antes da invasão que um ataque à Ucrânia seria uma «alteração completa das regras» para a Europa, e que exigiria a necessidade de «repensar toda a situação de segurança se estas tropas e armas russas estiverem aqui para ficar»2.
A forte reação da liderança política dos Estados Bálticos foi imediata. A 24 de fevereiro de 2022, o Seimas (Parlamento lituano) aprovou uma resolução condenando a invasão russa da Ucrânia. Os membros do Parlamento lituano exortaram igualmente a NATO e a UE a concederem o estatuto de candidato da UE à Ucrânia e a oferecerem à Ucrânia o Plano de Ação para a Adesão à NATO. Manifestaram a sua disponibilidade para dotar a Ucrânia de apoio militar, económico, político, humanitário e jurídico. Da mesma forma, o Parlamento letão aprovou uma declaração em que apelida a invasão russa da Ucrânia de violação grosseira da soberania e da integridade territorial da Ucrânia e das obrigações internacionais da Rússia. Para a Estónia, a data de 24 de fevereiro é altamente simbólica, uma vez que é o Dia da Independência do país. A liderança estónia condenou a agressão russa e expressou o seu apoio à aplicação de amplas sanções contra a Rússia, incluindo restrições contra os chamados territórios separatistas de Lugansk e Donetsk reconhecidos pela Federação Russa. No mesmo dia, os ministros dos Negócios Estrangeiros da Lituânia, da Letónia e da Estónia estavam de visita a Kiev, numa viagem que coincidiu com o início da agressão russa. Tiveram de fugir de Kiev de comboio para o oeste da Ucrânia e depois para a Polónia, uma rota hoje usada por muitos líderes mundiais para chegar a Kiev. Outro gesto de solidariedade foi um encontro entre o Presidente da Lituânia, Gitanas Naus˙eda, e o Presidente da Polónia, Andrzej Duda, com o líder ucraniano Volodymyr Zelensky em Kiev, dentro da fórmula do Triângulo de Lublin3.
Os Estados Bálticos têm estado na vanguarda da aplicação de sanções severas contra a Rússia, compreendendo claramente que o preço económico a pagar para restringir a Rússia é incomparável às ameaças à segurança e à necessidade de travar a máquina de guerra do agressor. Os bálticos acreditam que cada euro vale a pena, apesar do desafio que por vezes tem sido garantir o fornecimento de energia, e das taxas de inflação muito elevadas que os países têm enfrentado. Para os Estados Bálticos, um completo isolamento da Rússia tem sido o objetivo central4. Nove rondas de sanções sem precedentes da UE visam limitar significativamente as capacidades financeiras e económicas da Rússia, bem como o seu potencial de renovação e progresso tecnológicos. Estas sanções, coordenadas com os aliados transatlânticos, estão a pressionar cada vez mais, por exemplo, as exportações de energia da Rússia, cruciais para a capacidade do Kremlin de financiar a guerra. Nos Países Bálticos, as decisões políticas para acabar com a dependência e interromper a aquisição de combustíveis fósseis russos foram tomadas muito antes de o Ocidente ter decidido avançar com os vários tipos de sanções ao setor energético da Rússia. Outro passo importante será a dessincronização das redes elétricas da Rússia e da Bielorrússia.
A Bielorrússia tem servido de base para a invasão russa, fornecendo apoio militar. Adicionalmente, tem prosseguido com as suas atividades híbridas na fronteira com a Lituânia e a Estónia. Para travar ainda mais o regime de Lukashenko, talvez tenha chegado a altura de impor sanções do género das impostas à Rússia contra a Bielorrússia. Para os Estados Bálticos, especialmente para a Lituânia, o apoio ao povo da Bielorrússia - incluindo a sociedade civil, os meios de comunicação independentes e a oposição - tem sido uma parte importante da luta contra o regime de Lukashenko.
No plano diplomático, os Estados Bálticos têm estado na linha da frente na revisitação das relações diplomáticas com a Rússia e agora, após as recentes decisões da Letónia e da Estónia, as relações diplomáticas entre os três e a Rússia foram restringidas e os embaixadores foram mandados regressar de Moscovo. Entretanto, muitas vezes a posição dura dos Estados Bálticos em relação a tudo o que é russo tem sido criticada por outros Estados. Alguns chegaram ao ponto de referir a duplicidade de critérios dos europeus de Leste que foram objeto de escrutínio: «Os Estados Bálticos sempre exigiram que a UE falasse a uma só voz sobre a Rússia, mas agora destruíram sozinhos Schengen»5, foi assim que um correspondente (do Leste europeu) descreveu a proibição de vistos aos russos conduzida pelos Estados Bálticos.
As partes em guerra
Para os Estados Bálticos, a orientação errática da política externa russa, bem como a opção de utilizar o instrumento militar de poder nas suas fronteiras, tanto em termos teóricos como na prática, tem constituído uma enorme preocupação de segurança. Nesse sentido, os Estados Bálticos têm partilhado esta avaliação meditada da situação de segurança na região com os seus parceiros. Embora se supusesse geralmente que uma Rússia mais democrática poderia apoiar a estabilidade regional global e não só, Moscovo prosseguiu com as suas ações revisionistas não democráticas e agressivas em relação ao ambiente de segurança que culminou numa nova Guerra Fria e inclusive numa guerra efetiva.
Há muito que os Estados Bálticos se preocupam com a retórica do Kremlin e com as aspirações imperialistas de Moscovo de recuperar a sua esfera de controlo, enquanto - até à invasão - os governos ocidentais têm permanecido surdos. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, no seu discurso anual sobre o Estado da União, em 2022, disse: «Uma lição desta guerra é que devíamos ter ouvido aqueles que conhecem Putin.»6 Agora, o Ocidente é confrontado com a seguinte perspetiva: se a Rússia não for derrotada no campo de batalha na Ucrânia, provavelmente tentará voltar a impor a sua influência não só na Ucrânia, mas também noutros Estados vizinhos anteriormente sob o seu controlo. Além disso, o estatuto da Ucrânia, se a Rússia fosse derrotada, exigiria que fosse integrada na comunidade euro-atlântica. Por isso, outro acordo do tipo «Minsk» para acabar com as hostilidades só serviria para ganhar tempo e permitir ao Kremlin preparar-se para mais uma tentativa de conquistar a Ucrânia7.
Para os Bálticos, uma preocupação em particular, do ponto de vista da segurança militar, é a capacidade de a Rússia afastar os três países do resto da Europa através da estreita fronteira polaca e lituana entre a Bielorrússia e o exclave russo de Kaliningrado. A brecha de 65 quilómetros de Suwałki é vista como um dos pontos mais vulneráveis da NATO. Por conseguinte, não é de estranhar que a região do Báltico seja particularmente vulnerável à agressão russa. A geografia regional favorece a Rússia em qualquer ataque aos Bálticos. Uma parte considerável do poder militar da Rússia, incluindo muitas das suas forças mais capazes e mais bem equipadas, tem estado no seu Distrito Militar Ocidental, que faz fronteira com o território membro da NATO.
Entretanto, a maioria das forças militares da NATO está sediada na Europa Ocidental ou na América do Norte. Por conseguinte, os três Estados Bálticos apelaram à NATO para reforçar a sua presença nos seus territórios, uma vez que a aliança ativou pela primeira vez a sua força de reação rápida de milhares de tropas para reforçar o seu flanco oriental. Os Estados Bálticos também contam com outros membros da NATO para defenderem o seu espaço aéreo numa base rotativa8. Não admira que o objetivo báltico para a cimeira da NATO, em Vilnius, em julho de 2023, seja a aprovação dos planos regionais da NATO e o reforço da postura de dissuasão e defesa da NATO no flanco oriental. Também os acordos para o investimento da NATO na defesa poderão ter de ser revistos, uma vez que os 2% para as despesas de defesa já não são suficientes9.
Os Estados Bálticos (e a Polónia) temem menos uma escalada real ou imaginada do que uma vitória russa10. Por essa razão, forneceram a Kiev o máximo de ajuda militar possível, ultrapassando muitos outros países, se tivermos em conta a dimensão das suas economias. A Estónia, com 1,097% do produto interno bruto, é líder absoluta, seguida da Letónia, com 0,93%, e da Lituânia, com 0,463%. O financiamento total dos Estados Bálticos é de 910 milhões de euros11. Do ponto de vista destes Estados, os limites inconsistentes e sempre variáveis do Ocidente sobre o tipo de armas que irá fornecer prolongarão desnecessariamente a guerra, aumentando o número de mortos e o sofrimento civil da Ucrânia. Também aumenta a hipótese de Putin ainda poder inverter a maré da guerra, uma vez que o seu objetivo de destruir o Estado ucraniano não mudou e que só pela força será possível travá-lo, o que quanto mais cedo acontecer, melhor.
O fim da esperança e da justiça
As preocupações de segurança expressas pelos Estados Bálticos a respeito do seu vasto vizinho têm raízes profundas e estendem-se em vários contextos. Primeiro, os Estados Bálticos usaram a janela de oportunidade durante a Rússia de Ieltsin para garantir que o exército da ocupação soviética (na altura, as Forças Armadas da Federação Russa) deixasse os seus territórios em 1994, ou seja, três anos depois de terem conseguido a independência. Não se sabe exatamente quantas tropas do exército soviético se encontravam estacionadas no território dos Estados Bálticos, mas o número pode situar-se entre as 100 mil e as 130 mil12. Em segundo lugar, os Estados Bálticos foram ilegalmente ocupados e anexados pela União Soviética em junho de 1940, e fica a dúvida de se os Bálticos e o Ocidente poderiam ter resistido13.
Para os Estados Bálticos, a guerra de agressão russa na Ucrânia poderia finalmente pôr fim ao processo de afastamento da esfera de influência russa - algo pelo qual muitos, nos Países Bálticos, lutaram durante quase três décadas. Embora os governos dos Estados Bálticos durante largos anos tenham sido muito firmes na sua posição contra o Kremlin, o soft power da Rússia, com os seus instrumentos económicos, socioculturais, institucionais e jurídicos, trabalhou em pleno para ganhar influência sobre as populações dos Estados Bálticos14. E a influência podia fazer-se sentir em muitos domínios - ligações empresariais e de cooperação económica, media, cultura, desporto e outros. Agora parece que os bálticos, ao cabo de um ano de guerra na Ucrânia, cortaram com quase tudo isto - os canais de propaganda russos e a sua retradução foram encerrados, os atletas das seleções nacionais estão proibidos de ter qualquer relação com os desportos russos, os restantes laços económicos foram cortados, incluindo no que respeita ao trânsito e à logística, e não há música ou atividades culturais ligadas à Rússia de Putin. Muitos artistas russos foram adicionados à lista negra pelos Estados Bálticos pelo seu apoio à guerra da Rússia. Algumas das empresas detidas pelos oligarcas russos nos Bálticos foram encerradas devido às sanções. Os Estados Bálticos congelaram dezenas de milhões de euros de ativos pertencentes a muitos oligarcas, entre eles Andrey Melnichenko, Viacheslav Kantor, na Estónia, ou Dmitry Mazepin, na Letónia. Até os patriarcados locais das igrejas ortodoxas nos Bálticos se têm separado do Patriarcado de Moscovo.
Para muitos letões, estónios e lituanos, os monumentos de guerra soviéticos representam tanto a derrota dos nazis como as décadas de dolorosa ocupação pela URSS que se seguiram, marcadas por deportações em massa para gulagues e pela repressão política. A guerra na Ucrânia sem dúvida acelerou a demolição de monumentos da era soviética nos Estados Bálticos. Globalmente, os governos bálticos decidiram que cerca de 400 monumentos e memoriais soviéticos teriam de ser removidos, alguns deles já foram removidos, mas há alguns ainda por derrubar15. O culminar da eliminação do património deixado pela ocupação soviética ocorreu quando um monumento de libertação, de 80 metros, em Riga, foi derrubado no chamado Parque da Vitória desta cidade, que durante muitos anos foi também o local - controverso - onde se celebrou a vitória soviética na Segunda Guerra Mundial. Nos Bálticos, especialmente na Letónia e na Estónia, é evidente que a invasão da Ucrânia tornou as coisas mais claras: ou se apoia a guerra e, em última análise, o regime de Putin, ou se é contra.
Nos Estados Bálticos, o instinto predominante de ser cauteloso em relação a todas as coisas russas - agudizado pela guerra numa posição purista e maximalista - entrou em conflito com o desejo da oposição russa de se identificar como russo, como parte da paisagem política e mediática da Rússia. Além disso, as sociedades dos Estados Bálticos têm sido muito críticas em relação à guerra, apoiando inclusive o corte de laços pessoais com russos. A esmagadora maioria - 82% - dos letões apoia a luta da Ucrânia contra a agressão da Rússia, o acolhimento de refugiados ucranianos e a admissão da Ucrânia na UE e na NATO. Uma grande maioria - 86% - é contra a guerra travada pela Rússia na Ucrânia16. Da mesma forma, na Estónia, num estudo recente, a maioria dos inquiridos apoia a Ucrânia (79%) e apenas 3,1% apoiavam a Rússia17. Na Lituânia, 62% apoiaram a proposta de proibir completamente os vistos Schengen para os cidadãos russos18.
Observações para o futuro
Os três Estados Bálticos, juntamente com os outros aliados do flanco oriental da Europa, têm estado na vanguarda do apoio à Ucrânia e da resistência internacional, tanto nas suas declarações como nos exemplos pessoais e na firmeza demonstrada. A partir deste momento, como lição retirada da Segunda Guerra Mundial e da própria experiência, a questão da responsabilidade é também extremamente importante. Sem julgamento jurídico e prestação de contas, não há esperança de uma paz justa e duradoura. Nesta medida, é evidente que os Países Bálticos vão fazer pressão para que a Rússia pague uma indemnização pelos danos causados à Ucrânia, incluindo por crimes de guerra e crimes de agressão19. Edgars Rinkevičs, o ministro dos Negócios Estrangeiros mais antigo da Letónia, afirmou que a Rússia obliterou a arquitetura de segurança existente na Europa, e que a guerra da Rússia contra a Ucrânia apresenta uma perspetiva assustadoramente clara de questões de segurança que representam riscos não só para a região do Báltico, mas também para o espaço euro-atlântico e à escala global20. Estas observações descrevem com nitidez a nova era, bem como a nova fase da política externa do Báltico. Os Bálticos estão fartos das cortesias diplomáticas prestadas à Rússia e de se encolherem timidamente com receio de uma agressão russa. Claramente puseram de parte, na sua retórica, as simpatias em relação à Rússia e à Bielorrússia.
O ano de 2022 foi um momento decisivo em que os Bálticos usaram o impulso histórico e acabaram não só com a sua retórica diplomática bastante suave, mas também com o remanescente dos seus legados e ligações soviéticos. Os Bálticos estabeleceram distintamente a linha entre si próprios e as políticas e desejos da Rússia. Começaram a cimentar-se como a fronteira oriental da civilização ocidental, não só aos olhos da NATO e dos parceiros da UE, mas também aos seus próprios. A luta destemida da Ucrânia pela sua soberania e pelo seu território mostrou aos Bálticos que é possível defender-se da Rússia. Além disso, os Bálticos estão a fazer tudo o que está ao seu alcance para ajudar a Ucrânia na defesa bem-sucedida do seu país e para denunciar os ataques da Rússia. Entretanto, não podemos esquecer que uma resposta rápida e determinada do Báltico não seria possível sem o apoio e o incentivo dos seus parceiros da NATO e da UE. A unidade de todos os países ocidentais contra a violação da Ucrânia pela Rússia é primordial e constitui a alavanca para a força da Estónia, da Letónia e da Lituânia.
TRADUÇÃO: SAMUEL JERÓNIMO