SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número77A política externa russa um ano depois. Narrativas múltiplas e as suas implicaçõesO esfriamento da amizade entre a Ásia Central e a Rússia após a guerra na Ucrânia índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.77 Lisboa mar. 2023  Epub 31-Mar-2023

https://doi.org/10.23906/ri2023.77a06 

A Guerra da Rússia na Ucrânia: o primeiro balanço

Um ano de guerra na Ucrânia. Como chegámos aqui? Para onde estamos a ir?

The war in Ukraine one year on: how did we get here? Where are we heading?

Vanda Amaro Dias1  1

1Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Largo da Porta Férrea, 3004-530 Coimbra, Portugal | vandadias@fl.uc.pt


Resumo

Este ensaio apresenta uma leitura crítica das relações entre a Ucrânia e a Rússia, centrada em exemplos de hegemonia e resistência. Para tal, o ensaio começa por contextualizar as principais tensões que têm marcado as relações entre Kiev e Moscovo. Segue-se uma interpretação da guerra como uma medida extrema do Kremlin no seu caminho rumo à hegemonia regional e relevância global. O ensaio termina com algumas reflexões sobre a situação atual e as possíveis consequências da guerra. Esta abordagem crítica visa contribuir para uma compreensão aprofundada de como aqui chegámos e para onde nos dirigimos em termos de poder regional e de dinâmica de segurança.

Palavras-chave: guerra; hegemonia; Rússia; Ucrânia

Abstract

This essay provides a critical reading of Ukraine-Russia relations focusing on instances of hegemony and resistance. To do so, it starts by contextualizing major tensions underpinning relations between Kiev and Moscow. It then proceeds with an interpretation of the war as an extreme measure by the Kremlin in its pursuit of regional hegemony and global relevance. The essay concludes with remarks on the current situation and on possible consequences of the war in Ukraine. Such critical account aims at contributing to an in-depth understanding of how we got here and of where we are heading to in terms of regional power and security dynamics.

Keywords: war; hegemony; Russia; Ukraine

As relações entre os Novos Estados Independentes (NEI) e Moscovo têm sido afetadas por desafios múltiplos e complexos. Após a dissolução da União Soviética, estes países iniciaram uma transição quádrupla - democratização, «marketização», construção do Estado e construção da identidade -, cujo sucesso dependia tanto da sua credibilidade como países independentes, como da sua integração na nova ordem mundial.

Em muitos aspetos, o facto de o colapso da União Soviética ter sido essencialmente negociado complicou ainda mais este processo. Genericamente, a Rússia - o herdeiro formal da União Soviética - foi autorizada a preservar e a reproduzir relações assimétricas com os NEI. Isso foi altamente benéfico para os interesses de Moscovo, mas restringiu severamente a transição destes países num contexto já pressionado pela memória coletiva de décadas de opressão e pelo pesado fardo das crises económicas da década de 1990.

Como resultado, a Rússia foi capaz de preservar uma postura imperialista nos assuntos regionais e explorar múltiplas vulnerabilidades para perpetuar o papel de liderança de Moscovo na região. O conceito de política externa da Rússia tem atribuído valor estratégico a esta abordagem e enfatizado continuadamente a necessidade de contrabalançar a influência do poder ocidental nos assuntos regionais e globais, enquanto consolidam o poder e a influência da Rússia sobre a sua esfera de influência tradicional. Isso significa não apenas que o Kremlin estava apostado na preservação do seu domínio sobre a região, mas que a hegemonia regional era vista como essencial para manter o status e a relevância da Rússia enquanto grande potência2.

Assim, Moscovo rapidamente começou a recompensar regimes leais e a punir governos que se desviavam da sua órbita ou se aproximavam de instituições ocidentais. Em relação a estes últimos, as retaliações incluíram frequentemente desestabilização política, sanções económicas, cortes de energia e manobras mais agressivas, como o demonstram o desencadeamento de conflitos congelados e as guerras abertas na Geórgia, em 2008, e na Ucrânia, em 2022.

Com base nessa perspetiva, este ensaio fornece uma leitura crítica das relações entre a Ucrânia e a Rússia centrada em exemplos de hegemonia e resistência. Para esse fim, começa por contextualizar as principais tensões subjacentes às relações entre Kiev e Moscovo. Em seguida, prossegue com uma interpretação da guerra como uma medida extrema por parte do Kremlin na sua busca por hegemonia regional e relevância global. O ensaio termina com observações sobre a situação atual e sobre as possíveis consequências da guerra na Ucrânia. Este relato crítico visa contribuir para uma compreensão aprofundada de como aqui chegámos e para onde caminhamos em termos de poder regional e dinâmica de segurança.

Antagonismo crescente, resistência crescente

Desde o início da década de 1990, a evolução das relações entre a Rússia e a Ucrânia girava em torno de exemplos de hegemonia e resistência. Enquanto Moscovo pretendia preservar o seu domínio sobre o país e dissuadir a ingerência de potências externas, Kiev debatia-se para consolidar a sua independência e integração na comunidade internacional. Isto resultou numa relação tensa e complexa.

Devido ao seu tamanho geográfico, ao peso demográfico e à localização na interseção Leste-Oeste, a Ucrânia é provavelmente o país mais relevante do ponto de vista estratégico de entre os vizinhos da Rússia. Além disso, os fortes laços históricos e culturais entre Moscovo e Kiev justificam tanto a centralidade da Ucrânia na agenda russa pós-Guerra Fria, como a dificuldade de muitas elites russas em aceitar a independência de facto da Ucrânia e o seu direito à autodeterminação.

Como resultado, as relações bilaterais durante a década de 1990 centraram-se no papel da Comunidade de Estados Independentes liderada por Moscovo, no futuro do arsenal nuclear na Ucrânia e na regulamentação do trânsito de energia da Rússia para a Europa. Embora tenham sido alcançados acordos sobre a maioria dessas questões, persistiu um grande foco de tensão relativamente ao futuro da frota russa do mar Negro e ao estatuto da Crimeia. Foi apenas em 1997 que o Tratado de Amizade, Cooperação e Parceria conferiu um tom mais amigável às relações entre a Ucrânia e a Rússia, estabelecendo que a frota do mar Negro permaneceria na Crimeia sob controlo russo, em troca do reconhecimento desta região como parte do território soberano da Ucrânia3. Seguiram-se vários acordos políticos, económicos e militares, demonstrando o desejo da Rússia de afirmar a sua hegemonia sobre a Ucrânia.

Consciente da sua elevada dependência, Kiev optou por manter uma relação amigável com o Kremlin sem se submeter totalmente ao seu domínio. Lentamente, a Ucrânia foi diversificando os parceiros estrangeiros e promovendo uma aproximação às instituições ocidentais, abstendo-se de participar ativamente em iniciativas regionais sob a égide de Moscovo.

A suspeita de interferência russa nas eleições ucranianas desencadeou a Revolução Laranja em 2004 e o consequente realinhamento da política externa de Kiev numa direção mais pró-europeia. Levou igualmente à adoção de medidas destinadas a contrabalançar as vantagens políticas e económicas russas no país, tornando a Ucrânia vulnerável à influência de Moscovo e restringindo de facto a sua soberania4.

De uma forma pragmática, Kiev libertou-se gradualmente da órbita de influência da Rússia, reforçando o seu compromisso com a integração europeia. Isto é notório na sua participação na Política Europeia de Vizinhança, na cooperação no âmbito da Política Externa e de Segurança Comum e nos pedidos para que a União Europeia (UE) assuma um papel mais forte na gestão de conflitos e da segurança na vizinhança oriental. Entendendo essas opções como um confronto, Moscovo usou os seus recursos económicos e energéticos para punir Kiev por desafiar a hegemonia regional russa.

À medida que a Ucrânia e a Rússia se afastavam, Kiev reforçou a cooperação com a UE, aderindo à Parceria Oriental, lançada em 2009, e adotando uma agenda de associação em preparação de um futuro acordo de associação. No entanto, por esta altura, o otimismo pró-europeu pós-Revolução Laranja havia desaparecido. O caminho da integração europeia falhou, até agora, em enfrentar os múltiplos desafios da Ucrânia pós-independência, incluindo o clientelismo severo e a corrupção, levando a uma divisão crescente entre partidos políticos pró-europeus e pró-russos5.

Isto preparou o terreno para a eleição presidencial do pró-russo e apoiado por Moscovo, Viktor Yanukovych, em 2010. Seguiu-se uma reavaliação das prioridades da política externa da Ucrânia, que resultou num realinhamento com a Rússia e numa abordagem mais utilitária das relações com Bruxelas. Tal foi confirmado pela celebração dos chamados «Acordos de Kharkiv», que prolongam a permanência da frota russa do mar Negro na Crimeia até 2042 em troca de preços preferenciais da energia para a Ucrânia. Esta fórmula de «gás por frota» era benéfica para os interesses económicos imediatos de Kiev, mas consubstanciava uma grave limitação à sua soberania sobre a Crimeia6. Para Moscovo, representou um reforço do seu poder sobre a Ucrânia e a reiteração da sua hegemonia regional. Essa dinâmica foi aproveitada pela Rússia para estabelecer uma parceria estratégica em 2012, prevendo níveis mais profundos de cooperação com a Ucrânia, e para pressionar o país a aderir a iniciativas regionais lideradas pela Rússia. Embora Kiev tenha resistido a submeter-se a tais exigências hegemónicas, as sucessivas pressões de Moscovo e a celebração de um acordo económico generoso, embora não transparente, foram cruciais para a recusa da Ucrânia em assinar um acordo de associação com a UE, em novembro de 2013, sugerindo um completo abandono do caminho para a integração europeia.

Esta decisão, no entanto, desencadeou o movimento Euromaidan, em que milhares de manifestantes inundaram as ruas de Kiev exigindo uma retomada clara do processo de integração europeia. A situação agravou-se rapidamente e Kiev transformou-se num campo de batalha entre os manifestantes do Euromaidan e as forças policiais leais a Yanukovych. Após meses de confrontos, em fevereiro de 2014 foi assinado um acordo pondo fim à crise ucraniana e expressando o compromisso do país com o caminho da integração europeia.

Com o objetivo de inverter essa dinâmica e assegurar a manutenção da Ucrânia na sua esfera de influência, Moscovo mobilizou uma gama substancial de recursos económicos e diplomáticos, incluindo apoio político e militar aos movimentos separatistas no Leste da Ucrânia e a anexação da Crimeia em março de 2014. O objetivo era seguramente preservar o controlo sobre Kiev num contexto de crescente aproximação à UE. De facto, o movimento Euromaidan e as manobras agressivas russas na Ucrânia forneceram bases sólidas para grandes melhorias nas relações com Bruxelas e, no final de junho de 2014, a Ucrânia já tinha assinado todas as disposições do Acordo de Associação com a UE.

Após anos de cooperação racional com uma Rússia hegemónica, Kiev abraçou a integração europeia como uma questão de segurança e resistência ontológica. Como tal, torna-se percetível nas narrativas oficiais uma tendência sólida que retrata a Rússia como uma ameaça não só para a Ucrânia, mas para toda a civilização ocidental7. Esta estratégia argumentativa articulava-se tanto com a UE como com a Rússia, com impacto no poder regional e nas dinâmicas de segurança. De um modo geral, é evidente um maior empenho da UE na região e o alinhamento pró-europeu da Ucrânia, da Moldávia e da Geórgia, algo prejudicial para os interesses russos.

Este cenário fez descarrilar a resolução da crise ucraniana. Só em fevereiro de 2015 é que a Rússia, a Ucrânia, a Alemanha e a França conseguiram chegar a acordo sobre um cessar-fogo com os movimentos separatistas no Donbas. Os chamados «Acordos de Minsk» nunca foram totalmente aplicados ou respeitados pelas partes envolvidas, fracassando assim em promover a resolução do conflito até à invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, há um ano, em fevereiro de 2022.

A guerra como busca extremada da hegemonia regional e relevância global

A secção anterior enquadrava a crise ucraniana como o resultado das ambições hegemónicas de Moscovo num cenário marcado pela competição UE-Rússia pelo poder e influência regionais. Esta disputa seguramente aumentou a capacidade da Ucrânia para resistir à Rússia, ao apresentar a UE como um aliado alternativo e a integração europeia como um meio de alcançar a segurança ontológica contra um vizinho cada vez mais ameaçador.

Além disso, a crise ucraniana pode ser entendida como uma extensão da intenção de Moscovo de reafirmar o seu estatuto de grande potência e de recuperar um papel central nos assuntos internacionais. Isto justifica-se pelo facto de o controlo sobre o antigo espaço soviético ser aparentemente o fundamento dos esforços da Rússia para desafiar a ordem internacional liberal e promover uma ordem alternativa baseada em esferas de influência. Portanto, os movimentos desestabilizadores na região - de uma intervenção mais subtil em conflitos congelados às guerras mais extremas na Geórgia e na Ucrânia - dizem respeito, em última análise, à reorganização da arquitetura de segurança europeia e ao equilíbrio de poder internacional8.

A falta de sucesso na preservação de um regime leal em Kiev desencadeou a desestabilização do leste da Ucrânia liderada pela Rússia e a anexação da Crimeia, promovendo assim um conflito prolongado que interrompeu a integração da Ucrânia nas instituições ocidentais. Além disso, a Rússia esperava que o conflito tivesse um impacto negativo na política e na economia ucranianas, aumentando as pressões entre as elites políticas e a sociedade civil para reverter a desvinculação de Moscovo em troca de paz e estabilidade. No entanto, os acontecimentos não se deram como esperado.

A Ucrânia manteve-se empenhada na integração europeia e aumentou lentamente o seu nível de preparação para combater os movimentos separatistas apoiados pela Rússia no Donbas. Com a escalada do conflito, Moscovo apresentou uma proposta de cessar-fogo que levou à adoção dos Acordos de Minsk I em setembro de 2014. O cessar-fogo foi quebrado em janeiro de 2015 pelas forças separatistas e um novo acordo foi assinado em fevereiro de 2015. Os chamados «Acordos de Minsk II» reproduziam maioritariamente o quadro anterior, não avançando assim na promoção da resolução dos conflitos, tendo sido frequentemente violados por todas as partes em conflito9.

Neste cenário, a Ucrânia lançou uma operação Forças Conjuntas em 2018, substituindo a operação Antiterrorismo criada em 2014 como resposta de curto prazo ao conflito. Esta operação, que integra todas as forças de segurança e defesa ucranianas, foi planeada como uma abordagem nacional e de longo prazo para a resolução do conflito, o que incluía a reintegração da Crimeia e do Donbas. Nesse momento, a Ucrânia estava empenhada na defesa ativa do seu território e investiu no reforço das suas capacidades militares defensivas10.

À medida que o conflito evoluiu, a ideia da Rússia como ameaça ontológica consolidou-se, com impacto significativo no cenário político ucraniano. As eleições presidenciais e parlamentares de 2019 confirmaram a intenção do país de se retirar da órbita de influência da Rússia. O então Presidente eleito Volodymyr Zelensky prometeu pôr fim à corrupção e resolver o conflito na Ucrânia. Para conseguir este último objetivo, tentou retomar as conversações com Vladimir Putin. Numa primeira fase, tal implicou várias concessões, incluindo a troca de presos políticos e a adoção da chamada «Fórmula Steinmeier», uma versão simplificada dos Acordos de Minsk que favorece os interesses de Moscovo11. Zelensky aceitou estes termos como base para se envolver numa resolução sustentável do conflito, mesmo que impusessem à Ucrânia a adoção de um modelo descentralizado concedendo poder de veto em matéria de política externa às regiões separatistas, assegurando assim, na prática, a permanência do país na esfera de influência da Rússia. Apesar de tais concessões, o conflito não só permaneceu sem solução, como escalou para uma guerra em grande escala com a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022.

Embora a intervenção da Rússia na crise ucraniana seja racionalmente justificável pelas suas ambições regionais e globais, a situação com a guerra na Ucrânia é diferente. Tendo em conta a disponibilidade para negociar de Zelensky, torna-se difícil compreender o contributo desta guerra para as ambições hegemónicas de Moscovo, mesmo num contexto de disputa com a UE.

A este respeito, é importante sublinhar que, apesar da melhoria das relações entre a UE e a Ucrânia após o Euromaidan, estas permaneceram limitadas ao quadro da política europeia de vizinhança, pelo que a adesão da Ucrânia não era uma opção. Além disso, a crise ucraniana tinha descido significativamente nas prioridades políticas da UE, que se concentrava na gestão de questões como o Brexit, a crise dos refugiados, a ascensão de partidos de direita por toda a Europa e a deriva autoritária da Polónia e da Hungria.

No entanto, a guerra pode ter sido parte da provocação da Rússia à ordem internacional e da tentativa de recuperar relevância global. A transformação da política internacional nos últimos vinte anos tem vindo gradualmente a periferizar a Rússia. À medida que o centro da política mundial se movia para leste, a Rússia perdeu influência e relevância como ator global. A guerra na Ucrânia voltou a colocar o Kremlin no centro das atenções dos assuntos internacionais. Esta interpretação é reforçada pela recusa de Putin em encetar negociações diretas com Zelensky. Ao longo do último ano, e apesar de alguns contactos com líderes europeus, Putin tentou trazer os Estados Unidos para o centro das negociações, como forma de reconhecimento do papel de liderança da Rússia na política mundial. No entanto, esta estratégia está longe de ser bem-sucedida. Pelo contrário, após o começo da guerra, a Rússia foi rapidamente condenada como agressora por uma esmagadora maioria dos Estados-Membros das Nações Unidas, e os Estados Unidos tornaram-se um dos principais apoiantes da Ucrânia, recusando-se a dialogar diretamente com o Kremlin. Além disso, a invasão da Ucrânia forneceu o contexto para reforçar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (nato, na sigla inglesa) e a UE, e para fortalecer os elos entre essas organizações e os respetivos Estados-Membros. De facto, a guerra trouxe um novo propósito e sentido de unidade tanto à nato como à UE, que condenaram veementemente a Rússia e forneceram um forte apoio à Ucrânia, e simultaneamente abriram-se a novos membros, como a Finlândia e a Suécia, no caso da nato, e a Ucrânia e a Moldávia, a quem foi concedido o estatuto de candidato pela UE em junho de 202212.

Embora a guerra na Ucrânia possa ser interpretada como o resultado da ansiedade ontológica da Rússia perante um ambiente internacional em rápida mudança que ameaça os elementos fundamentais da identidade e do lugar do país no mundo, os resultados têm sido totalmente contrários aos supostos objetivos russos, levando ao fortalecimento do Ocidente e a uma crescente periferização de Moscovo. Então, para onde, exatamente, nos estamos a dirigir?

Observações finais

A guerra na Ucrânia está profundamente enraizada no imperialismo russo e nas suas ambições hegemónicas em relação ao antigo espaço soviético. No entanto, se a coerção é fundamental para o estabelecimento do poder hegemónico, a sua estabilidade e permanência são inatingíveis sem consenso e colaboração. Nesse sentido, a invasão da Ucrânia pode muito bem sinalizar o fim da dominação regional russa e da sua relevância nos assuntos globais.

As tentativas da Rússia de preservar - pela força, se necessário - uma zona de influência no antigo espaço soviético parecem ter falhado. A rutura neste espaço é agora inquestionável, tendo sido formalizada pela candidatura da Ucrânia, da Moldávia e da Geórgia de adesão à UE. Além destas expressões mais evidentes de resistência ao domínio de Moscovo, a guerra na Ucrânia fragilizou a pegada regional da Rússia, levando a um vazio geopolítico da Europa Oriental à Ásia Central. Esta ausência revela os limites da hegemonia russa, enquanto tem o potencial de perturbar as dinâmicas de segurança e um statu quo essencialmente frágil na região. A isto acresce o facto de a Rússia estar enfraquecida económica, política e militarmente, e de apenas num cenário muito remoto ser concebível que consiga ganhar a guerra na Ucrânia e, simultaneamente, recuperar o controlo sobre a sua vizinhança13.

Se as ambições hegemónicas nos trouxeram até aqui, os sucessivos e atuais casos de resistência a diferentes níveis podem muito bem estar a encaminhar-nos para o fim do império de Putin14, se não mesmo do imperialismo russo no seu conjunto, com consequências importantes para a governação política e de segurança ocidental e para o desenrolar das dinâmicas de segurança no espaço europeu mais alargado.

TRADUÇÃO: SAMUEL JERÓNIMO

Bibliografia

ÅTLAND, Kristian - «Destined for deadlock? Russia, Ukraine, and the unfulfilled Minsk agreements». In Post-Soviet Affairs. Vol. 36, N.º 2, 2020, pp. 122-139. DOI: https://doi.org/10.1080/1060586X.2020.1720443. [ Links ]

BAER, Daniel - «The thaw on Russia’s periphery has already started». In Foreign Policy. 14 de outubro de 2022. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2022/10/14/russia-ukraine-war-caucasus-georgia-armenia-azerbaijan-moldova-balkans-periphery-geopolitics-power-vacuum/. [ Links ]

BOJCUN, Marko - «Origins of the Ukrainian crisis». In Critique. Vol. 43, N.º 3-4, 2016, pp. 395-419. doi: https://doi.org/10.1080/03017605.2015.1089085.0 [ Links ]

DETSCH, Jack - «Ukraine pins hopes in Javelin missiles to dent Putin’s armor». In Foreign Policy. 26 de janeiro de 2022. Consultado em: 6 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2022/01/26/ukraine-missile-russia-baltics-biden/. [ Links ]

DIAS, Vanda Amaro - Hegemony, Agency and Resistance: A Critical Analysis of Power and Security Relations in the European Union-Russia-shared Neighbourhood Triangle. Coimbra: Repositório Científico da Universidade de Coimbra, 2016. [ Links ]

DIAS, Vanda Amaro - «The battle of giants: the collision of EU and Russian foreign policies towards the contested neighbourhood and the Ukrainian crisis». In Debater a Europa. N.º 18, 2018, pp. 63-83. doi: https://doi.org/10.14195/1647-6336_18_5. [ Links ]

PROEDROU, Filippos - «Ukraine’s foreign policy: accounting for Ukraine’s indeterminate stance between Russia and the West». In Southeast European and Black Sea Studies. Vol. 10, N.º 4, 2010, pp. 443-456. doi: https://doi.org/10.1080/14683857.2010.529993. [ Links ]

SIMÃO, Licínia - «The Ukrainian conflict in Russian foreign policy: rethinking the interconnections between domestic and foreign policy strategies». In Small Wars & Insurgencies. Vol. 27, N.º 3, 2016, pp. 491-511. doi: https://doi.org/10.1080/09592318.2016.1175141. [ Links ]

SPECK, Ulrich - «Russia’s challenge to the international order». Disponível em: https://carnegieeurope.eu/2015/08/13/russia-s-challenge-to-international-order-pub-61059. [ Links ]

UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY - «Eleventh emergency special session». A/ES-11/L1. 1 de março de 2022. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/LTD/N22/272/27/PDF/N2227227.pdf?OpenElement. [ Links ]

WHITE, Stephen - Understanding Russian Politics. Cambridge: Cambridge University Press. 2012. [ Links ]

ZAPOROZHCHENKO, Ruslan - «The end of “Putin’s empire?”. Ontological problems of Russian imperialism in the context of the war against Ukraine, 2022». In Problems of Post-Communism. 5 de janeiro de 2023, pp. 1-12. DOI: https://doi.org/10.1080/10758216.2022.2158873 [ Links ]

Notas

1 Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Estímulo ao Emprego Científico - Apoio Institucional - 00152_2018.

2 DIAS, Vanda Amaro - «The battle of giants: the collision of EU and Russian foreign policies towards the contested neighbourhood and the Ukrainian crisis». In Debater a Europa. N.º 18, 2018, pp. 67-68.

3 WHITE, Stephen - Understanding Russian Politics. Cambridge: Cambridge University Press. 2012, p. 297.

4 BOJCUN, Marko - «Origins of the Ukrainian crisis». In Critique. Vol. 43, N.º 3-4, 2016, p. 398.

5 PROEDROU, Filippos - «Ukraine’s foreign policy: accounting for Ukraine’s indeterminate stance between Russia and the West». In Southeast European and Black Sea Studies. Vol. 10, N.º 4, 2010, pp. 443-456.

6 SIMÃO, Licínia - «The Ukrainian conflict in Russian foreign policy: rethinking the interconnections between domestic and foreign policy strategies». In Small Wars & Insurgencies. Vol. 27, N.º 3, 2016, p. 500.

7 DIAS, Vanda Amaro - Hegemony, Agency and Resistance: A Critical Analysis of Power and Security Relations in the European Union-Russia-shared Neighbourhood Triangle. Coimbra: Repositório Científico da Universidade de Coimbra, 2016, p. 140.

8 SPECK, Ulrich - «Russia’s challenge to the international order». Disponível em: https://carnegieeurope.eu/2015/08/13/russia-s-challenge-to-international-order-pub-61059.

9 ÅTLAND, Kristian - «Destined for deadlock? Russia, Ukraine, and the unfulfilled Minsk agreements». In Post-Soviet Affairs. Vol. 36, N.º 2, 2020.

10 DETSCH, Jack - «Ukraine pins hopes in Javelin missiles to dent Putin’s armor». In Foreign Policy. 26 de janeiro de 2022. Consultado em: 6 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2022/01/26/ukraine-missile-russia-baltics-biden/.

11ÅTLAND, Kristian - «Destined for deadlock? Russia…».

12 UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY - «Eleventh emergency special session». A/ES-11/L1. 1 de março de 2022. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/LTD/N22/272/27/PDF/N2227227.pdf?OpenElement.

13 BAER, Daniel - «The thaw on Russia’s periphery has already started». In Foreign Policy. 14 de outubro de 2022. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2022/10/14/russia-ukraine-war-caucasus-georgia-armenia-azerbaijan-moldova-balkans-periphery-geopolitics-power-vacuum/.

14 ZAPOROZHCHENKO, Ruslan - «The end of “Putin’s empire?”. Ontological problems of Russian imperialism in the context of the war against Ukraine, 2022». In Problems of Post-Communism. 5 de janeiro de 2023, pp. 1-12.

Recebido: 08 de Fevereiro de 2023; Aceito: 25 de Fevereiro de 2023

Vanda Amaro Dias Investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES), na linha temática «Capitalismo (Semi)Periférico: Crises e Alternativas». Professora auxiliar de Estudos Europeus no Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes (DHEEAA) da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC).

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons