«Quando grandes potências com passado de hostilidade relativamente ao liberalismo usam a força armada para atingirem os seus objetivos, os americanos geralmente acordam da sua inércia, abandonando as definições limitadas de interesse e adotam uma visão mais vasta daquilo que vale a pena sacrificarem.»
Robert Kagan1
Dilemas e decisões
Vladimir Putin continuava a dizer diariamente: a Rússia não vai invadir a Ucrânia. Estávamos em meados de novembro de 2021 e apenas Washington parecia não estar convencido, apesar de as forças russas estarem em prontidão junto à fronteira com a Ucrânia. Vinham todos os dias, da capital dos Estados Unidos da América (EUA), notícias que uma invasão da Rússia da vizinha Ucrânia já não tinha retorno, apesar do ceticismo da maioria dos aliados europeus e da própria Ucrânia2.
A 21 de fevereiro o mundo começou a desconfiar que a Casa Branca poderia ter razão: o Presidente russo proferiu um discurso em que descreveu o casus belli, justificando a intervenção militar especial que se ia seguir com a não existência soberana da Ucrânia, e o seu uso, por parte do Ocidente - especialmente dos EUA -, para pôr em causa a segurança e, quem sabe, até a própria integridade russas3. Putin já tinha exposto os elementos da sua argumentação num longo artigo - «Sobre a unidade histórica dos russos e ucranianos» - publicado em julho, curiosamente apenas quatro dias antes da primeira cimeira Biden-Putin, em Genebra4.
A Administração Biden teve tempo para se preparar. Relatos a posteriori contam que o briefing de meados de outubro, em que os serviços de inteligência americanos garantiam a Joe Biden que a probabilidade de invasão em larga escala era elevadíssima (senão certa), o Presidente americano não teve quaisquer hesitações relativamente ao papel que os EUA seriam forçados a ter no conflito5.
Mas com a decisão veio um conjunto de dilemas. Entre eles destacam-se dois: como apoiar a Ucrânia sem desencadear uma guerra entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (nato, na sigla inglesa) e a Rússia e, talvez mais importante, como manter simultaneamente a segurança transatlântica e a defesa do Indo-Pacífico, num momento de transição de poder, e com o problema de Taiwan tão pendente?
Este artigo argumenta que a invasão russa da Ucrânia e a tentativa de Moscovo de internacionalizar o conflito implicando os Estados Unidos, tanto nas suas origens como no seu desenvolvimento6, não poderiam ter vindo em pior altura para Washington. No entanto, a Administração Biden identificou esta invasão como uma guerra de transição de poder e um ataque às regras liberais internacionais, de forma que a intervenção americana se tornou inevitável. Washington viu a invasão da Ucrânia como um imperativo de atuação política e moral e, eventualmente, como uma oportunidade de provar que, como disse Biden muitas vezes, a «América está de volta»7 e «determinada a voltar a envolver-se com a Europa […] para recuperar a posição de líder confiável»8.
A Casa Branca decidiu atribuir este apoio de forma muito pública e explícita. Parte da razão prende-se com o papel que os EUA assumiram para si próprios: a liderança do mundo livre. A invasão de um Estado soberano por razões de revisionismo global e expansionismo regional exigia uma resposta inequívoca de quem pretende defender um conjunto de valores grosseiramente violados.
A liderança do mundo livre
Para desenvolvermos o argumento exposto acima, é preciso percebermos a visão norte-americana do sistema internacional e do papel que nele desempenha.
A Administração Biden vê o sistema internacional em transição de poder, ou seja, de forma muito simplificada, reconhece o declínio dos EUA, a ascensão da China e a consequente competição entre estas duas potências pela definição da ordem mundial9. Estas realidades estão explanadas na Estratégia Interina de Segurança Nacional, publicada a 2 de março de 2021. Por um lado, afirma-se que não é possível regressar à política externa de 201610 porque o mundo mudou consideravelmente nos últimos anos, ou seja, a transição de poder em curso tem-se adensado. Por outro lado, a China é o rival «sistémico», aquele que pelas suas capacidades económicas, diplomáticas, militares e tecnológicas tem poder suficiente para pôr em questão a liderança norte-americana do sistema internacional11.
A Rússia está num patamar muito menos importante. É vista como «ameaça imediata ao sistema internacional» devido ao seu «desprezo imprudente pelas regras básicas da ordem internacional de hoje, como ficou demonstrado na sua brutal guerra de agressão contra a Ucrânia»12. Por outras palavras, apesar de a ameaça russa ser bem real, está subordinada à ameaça chinesa e englobada num desafio mais vasto que opõe autocracias a democracias. Mais, o itálico que introduzimos demonstra que a questão das regras do sistema internacional está intimamente ligada à guerra na Ucrânia13.
Neste contexto, assevera a Administração Biden, as democracias precisam de uma liderança. Tal como Harry Truman no início da Guerra Fria, Biden assumiu esse papel explicitamente na Conferência de Segurança de Munique em 202114. Mais tarde, viria também a assumir que os EUA são uma «potência global»15, com pendor ideológico iminentemente liberal e com interesses vitais em várias partes do mundo (especialmente no Indo-Pacífico, na Europa e no hemisfério sul). Ou seja, na grande estratégia «Biden», os EUA voltaram a «equacionar a defesa do mundo livre com a sua própria segurança»16.
É certo que há, desde o primeiro momento, uma rejeição dos excessos democráticos dos anos 1990 e 200017. A ordem democrática separada de Biden - relacionada com a confissão de que a América não pode enfrentar este gigantesco desafio «sozinha»18 - tem três tipos de Estados que a constituem: os «aliados», as democracias da Europa e do Indo-Pacífico; os «parceiros», Estados de política externa fluida, que querem manter outras alianças para além da que têm com os EUA, mas identificam como interesse primordial a contenção da China e/ou da Rússia - a Índia é o melhor exemplo; e os like minded states, Estados que partilham os mesmos interesses dos EUA e a quem não é exigido muito mais do que o respeito pela Carta das Nações Unidas19. Veja-se o exemplo das Filipinas, que cederam mais quatro zonas especiais à defesa norte-americana há poucas semanas20. Manila está longe de ser uma democracia perfeita, mas a sua proximidade geográfica com Pequim permite-lhe ter uma relação importante com os EUA.
A fluidez da «grande coligação» que Biden quer - e, de certa maneira, está - a construir, precisa de uma normatividade mais inclusiva. Daí que os documentos estratégicos contenham uma definição muito mais abstrata de democracia, que se traduz, internacionalmente, nos valores da Carta das Nações Unidas, nomeadamente a «autodeterminação», a «integridade territorial», a «independência política», a «soberania» e a «dignidade da pessoa humana». Estes valores, explanados na Estratégia de Segurança Nacional, são certamente informados pela guerra na Ucrânia - o primeiro desafio direto à liderança de Biden e às democracias. Mas esta viragem ideológica - que rejeita, como já foi sugerido, o liberalismo radical do pós-Guerra Fria e o nacionalismo soberanista de Donald Trump - deve-se essencialmente à necessidade de conter a China21. Se as democracias liberais continuam a ser os aliados mais confiáveis, a luta contra as autocracias só pode ser levada a cabo com a colaboração de todos, incluindo «parceiros» e «povos decentes»22.
A primeira guerra de transição de poder do século XXI
A Administração Biden está convencida de que o conflito europeu é uma expressão regional da transição de poder em curso, o que tem um duplo significado: por um lado, não pode desviar Washington do seu objetivo central, a China, mas por outro, sendo a primeira guerra de transição de poder do século XXI, tem de ter a atenção proporcionada dos EUA.
O conflito na Ucrânia é a primeira guerra de transição de poder do século XXI por dois motivos: tem um carácter revisionista - a Rússia pretende alterar as fronteiras da Ucrânia através do uso da força e, simultaneamente, contribuir para deterioração da ordem internacional vigente, erguida e defendida pelos EUA - e, além disso, envolve todas as potências do sistema internacional, uma característica deste tipo de conflito.
Não pensamos que a Ucrânia se tenha tornado uma proxy dos EUA para enfraquecer a Rússia. O contrário é verdadeiro23: a Rússia usa a Ucrânia para expressar o seu descontentamento relativamente ao Ocidente e à suposta tentativa de Washington inibir Moscovo de ocupar o lugar de «grande potência» que merece por direito24. Esta insistência na responsabilidade ocidental, especialmente americana, é a forma russa de expressão de descontentamento relativamente ao seu lugar na ordem internacional vigente - o que aliás tem sido expresso desde 200725 - outra expressão desse revisionismo.
Mas, mais importante, esta guerra, que opõe um Estado autocrático e um Estado democrático, acabou por se transformar num conflito com duas narrativas e ideologias distintas e incompatíveis que alinham potências e Estados em torno de cada um dos contendores. A Ucrânia já representa a luta pela democracia, a liberdade e a autodeterminação contra a Rússia, que incorpora o autoritarismo e um conjunto de valores sociais e religiosos conservadores russos, bem como um reiterado antiamericanismo e antiocidentalismo.
Assim, os dois beligerantes são apoiados por um conjunto de Estados: o Ocidente, no sentido mais alargado do termo, liderado pelos EUA, apoia Kiev em confronto com o apoio chinês à Rússia. Se o apoio ocidental à Ucrânia se faz nos domínios político, diplomático, económico e militar explícito, o apoio chinês à Rússia está relacionado com a abertura da porta comercial e diplomática da Rússia, permitindo-lhe escapar às sanções e ao isolamento que os EUA e a Europa têm tentado impor.
Não só Pequim se tornou compradora do petróleo e do gás (tal como a Índia, que tem tido um papel bastante ambíguo), como facilita as relações russas com um conjunto de Estados africanos, médio-orientais e latino-americanos. Estes Estados podem até simpatizar com a causa do Kremlin ou, em alternativa, serem profundamente antiamericanos, e verem uma vitória russa na guerra como uma derrota da ordem liberal. Mas a maioria deles depende economicamente da China, que viabiliza estas relações político-comerciais com o seu parceiro «sem limites». Recentemente, a China tornou mais explícito o seu apoio à Rússia, mas ainda é cedo para perceber de que forma esta mudança vai influenciar o decurso do conflito e da transformação do sistema internacional.
Ainda que uma condição de Washington seja a circunscrição da guerra a território ucraniano e, como já referido, não haver qualquer interesse em envolver forças militares americanas no terreno, uma vitória russa tout court teria, pelo menos, três consequências muito negativas para Washington.
Em primeiro lugar, fragilizaria profundamente a posição norte-americana no sistema internacional, uma vez que os EUA tinham sido incapazes de conter uma potência autocrática e defender o seu mundo liberal (e seria também uma vitória indireta da China, aliada «sem limites» da Rússia e líder informal do «bloco autocrático»).
Em segundo lugar, constituiria um enfraquecimento profundo dos valores da Carta das Nações Unidas, especialmente no que toca ao seu centro nevrálgico - a defesa da soberania dos Estados.
Finalmente, significaria o colapso da arquitetura de segurança europeia (em parte também ela construída pelos EUA), e a sua reconstrução em termos ditados pela Rússia.
Independentemente do apoio à Ucrânia - também importante para os EUA como um bem em si mesmo -, as preocupações americanas centraram-se, em grande medida, num contexto mais vasto, relacionado com a distribuição de poder no sistema internacional e a defesa da ordem internacional liberal e da predominância das democracias neste contexto.
A fragilidade europeia
Uma razão final para a intervenção dos EUA no conflito é a fraqueza relativa da Europa, desmilitarizada e impreparada para lidar com uma guerra de agressão no seu próprio continente.
Antes da guerra, a Administração Biden já tinha vindo recuperar a Aliança Atlântica «cerebralmente morta»26, reassegurando o seu interesse na segurança do continente europeu. Fê-lo com uma veemência que recordava o tempo da Guerra Fria, mas que queria, sobretudo, inverter a tendência muito negativa deixada por Donald Trump. Era preciso fazer com que os europeus voltassem a confiar nos EUA e na sua liderança27. Parte da razão para esta recuperação parece ter sido uma vontade genuína de reconstruir o elo transatlântico, em parte explicado pelo passado político de Biden.
Mas há outras razões importantes. A Administração Biden vê a ordem internacional como um todo indivisível. Sendo o laço transatlântico a primeira e mais consistente «aliança de democracias», esta é dotada de um tipo de legitimidade que não existe em mais nenhuma instituição internacional. Este capital político-diplomático não poderia ser desperdiçado. Biden nunca enfatizou a contribuição do pilar europeu da Aliança Atlântica (nem depois da guerra na Ucrânia ter começado), mas integrou a nato na sua estratégia de transição de poder.
Apesar das divergências, a China figura no Conceito Estratégico da Aliança Atlântica como uma «ameaça» devido às suas «ambições e políticas coercivas»28 que «desafiam os interesses, a segurança e os valores [da nato]». Aliás, Jens Stoltenberg fez recentemente uma visita ao Japão e à Coreia do Sul onde afirmou, num discurso na Universidade de Keio, que «a Rússia e a China estão cada vez mais próximas […], portanto, a mensagem é, mais uma vez, que a segurança não é regional, a segurança é global.
A segurança está interconectada»29. Stoltenberg é o novo protagonista do círculo virtuoso de alianças que os EUA querem criar e manter. O Reino Unido, em certa medida, já desempenhava esse papel, mas a legitimidade é maior através do secretário-geral da Aliança Atlântica que representa os 30 Estados-Membros.
As relações transatlânticas seguiam o seu curso quando foram interrompidas e reestruturadas pela guerra na Ucrânia. Agora a Europa encontra-se em processo de militarização e transformação da sua cultura política de «poder normativo» ou «poder civil» em cultura de potência de facto. Neste caminho espoletado pela guerra na Ucrânia, o laço transatlântico estreitou-se profundamente, até porque não há incentivo maior para as alianças do que a existência de um inimigo comum. Se os EUA viam a Europa como um poder legitimador e institucional, agora percecionam-na como um parceiro político e, a seu tempo, militar. O perfil da nato é agora incontestável - e provavelmente sê-lo-á nos próximos anos, caso a Europa responda ao desafio da ameaça russa. É o aliado regional do qual os EUA não podem abdicar nas condições sistémicas que temos vindo a descrever.
Não menos importante, a Europa não tem tido capacidade política para liderar este processo, como ficou patente nos debates acerca do envio dos carros de combate para a Ucrânia. A Alemanha, detentora da licença de exportação dos Leopard II, apenas deu luz verde a que se doassem à Ucrânia a seguir a Washington ter prometido o envio de Abrams, atrasando significativamente a defesa ucraniana e dando à Rússia tempo de repensar os objetivos para a sua próxima manobra no teatro de operações. Por outras palavras, apesar de a Europa se ver obrigada a esta transição forçada, os EUA ainda são a «liderança indispensável» do continente europeu30. A Administração Biden, consciente desse facto e do seu papel no sistema internacional, decidiu que era fundamental liderar este processo, assegurando-se, assim, que a Ucrânia e a Europa tinham o apoio necessário para não sucumbir à autocracia regional agressora.
Notas finais
A guerra na Ucrânia chega num momento muito difícil para os EUA. Consciente da transição de poder em curso e da sua incapacidade de manter duas frentes de guerra simultaneamente, Washington optou por apoiar a Ucrânia por todos os meios, menos uma intervenção militar direta. Os EUA privilegiam Taiwan e não estão certos de que a China não usará a atenção prestada por Washington à Ucrânia para integrar Taipé pela força.
Até agora o resultado tem sido moderadamente positivo. A Ucrânia não só tem conseguido defender-se da Rússia como reconquistou algum do território perdido. O apoio moral, político, económico e, principalmente, militar dos EUA e do Ocidente tem sido fundamental para esse resultado.
Como argumentámos ao longo do artigo, a Administração Biden fez esta escolha por cinco razões essenciais: (i) para evitar uma guerra aberta com a Rússia; (ii) para se manter apta para intervir no Indo-Pacífico se necessário, mas, ao mesmo tempo, para (iii) desempenhar com credibilidade o seu papel de potência global e líder do mundo livre; (iv) para proteger as regras da ordem internacional; e (v) para apoiar a Europa nesta fase em que o continente está em transformação rumo a uma maior força política e militar.
A estes factos não é alheia a avaliação do sistema internacional. A fase de transição de poder e o revisionismo russo são os fatores preponderantes na avaliação da Casa Branca.
Por muito indesejável que fosse, a invasão da Ucrânia pela Rússia - além de evidentes questões normativas e humanitárias - não podia ser ignorada pelos EUA. Além da integridade territorial da Ucrânia, estão em questão elementos mais vastos: a segurança europeia, ainda muito dependente da liderança americana e a ordem internacional liberal, que Washington quer continuar a liderar. Sem intervenção indireta dos EUA, o mundo transformar-se-ia e a correlação de forças não favoreceria as democracias. Por todas estas razões, o conflito na Ucrânia é uma indesejada - mas necessária - guerra do mundo livre.