Introdução
Nas últimas três décadas, é notória uma tendência para a afirmação e consolidação do contributo de Portugal para a produção de segurança internacional como um dos eixos estratégicos de política externa e um importante veículo para a concretização do interesse nacional. Para esta tendência muito contribuíram: no plano exógeno, as alterações internacionais no contexto pós-Guerra Fria que estimularam uma crescente interdependência ao nível da produção da segurança internacional nas escalas regional e global, e uma maior preponderância dos arranjos multilaterais no combate a ameaças de segurança complexas e difusas; e, no plano endógeno, a adoção de um posicionamento geopolítico e geoestratégico de vocação mais internacionalista e orientado para o cumprimento e promoção de valores democráticos, de direitos humanos e do direito internacional, através da intervenção em várias plataformas internacionais. Em consonância, este posicionamento tem-se materializado num sólido cumprimento dos compromissos decorrentes da integração em alianças e organizações internacionais no domínio da defesa coletiva e da segurança cooperativa, no contexto de missões internacionais1.
Não obstante este panorama transversal, o que se verifica na prática é que o contributo português para a produção de segurança através de missões internacionais tem assumido diferentes configurações e níveis de ambição ao longo do tempo. Assim, podemos discernir entre uma primeira abordagem de matriz predominantemente reativa, orientada para o cumprimento dos compromissos assumi- dos no âmbito da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, na sigla inglesa) e, a partir de 2003, da União Europeia (UE), e uma abordagem gradualmente mais proativa. Esta última visa uma participação mais equilibrada nas missões da NATO, da UE e também da Organização das Nações Unidas (ONU), bem como uma melhor articulação com os demais eixos de política externa portuguesa, por forma a ampliar a reputação internacional de Portugal como contribuinte líquido de segurança internacional e as vantagens comparativas daí decorrentes2. Esta evolução resulta, em grande medida, da gestão das oportunidades e dos constrangimentos, estruturais e conjunturais, que se colocam quer à participação de Portugal em missões internacionais, quer à resolução das causas mais profundas dos principais problemas de segurança internacional.
Neste contexto, o contributo português nos 20 anos de intervenções internacionais militares no Afeganistão surge como um palco privilegiado para analisar a evolução da participação de Portugal em missões internacionais, e a forma como o país soube aproveitar oportunidades e mitigar constrangimentos na sua afirmação como um produtor solidário de segurança internacional.
Este artigo visa, por isso, analisar o envolvimento português nos esforços internacionais para gerir a situação no Afeganistão, no pós-11 de setembro de 2001, através das suas Forças Nacionais Destacadas (FND), salientando a forma como esta experiência, em particular, contribuiu para a afirmação e reconhecimento de Portugal como parceiro credível, solidário e conciliador, e importante aliado nos processos de promoção da paz e da produção de segurança internacional. Para o efeito, o artigo começa por enquadrar a participação portuguesa no contexto da International Security Assistance Force (ISAF), entre 2001 e 2014. Segue-se a análise da participação das Forças Armadas Portuguesas na Resolute Support Mission (RSM), entre 2015 e 2021, e, por fim, uma reflexão sobre o processo de retirada das forças internacionais do Afeganistão, com particular enfoque no caso português. O artigo termina com algumas considerações sobre a importância da participação nas intervenções internacionais militares no Afeganistão ao longo de duas décadas para a consolidação do contributo de Portugal para a paz e a segurança internacionais.
A participação de Portugal na ISAF: compromissos, constrangimentos e reconhecimento
No seguimento da forte condenação internacional aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, ocorridos em solo norte-americano, do expresso apelo à atuação conjunta da comunidade internacional no combate ao terrorismo3 - considerado como uma ameaça à paz e à segurança internacionais -, do reconhecimento do direito à autodefesa - individual ou coletiva4 - e após a queda do regime talibã, no Afeganistão, a ONU encetou vários esforços para garantir o estabelecimento de um governo de transição capaz de terminar com as sucessivas guerras civis que assolavam o país e o tornaram terreno fértil para grupos terroristas5. O estabelecimento da ISAF, em dezembro de 2001, pela Resolução 1386 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), no espírito do capítulo VII da Carta das Nações Unidas e com base no Agreement on Provisional Arrangements in Afghanistan Pending the Re-Establishment of Permanent Government Institutions, resultante da Conferência de Bona de 5 de dezembro de 2001, é uma peça central destes esforços. Esta força multinacional constitui-se com o objetivo de apoiar a transição institucional e a estabilização política do Afeganistão, facilitar a reconstrução do país em articulação com organizações nacionais e internacionais, bem como de prestar assistência à missão da ONU no Afeganistão (United Nations Assistance Mission in Afghanistan - UNAMA)6. A NATO viria a assumir a liderança da ISAF, em agosto de 2003, num contexto de preparação do alargamento faseado da área de atuação da missão a todo o Afeganistão, e de reforço da articulação com as autoridades afegãs, o representante especial do secretário-geral da ONU e as forças integradas na operação Enduring Freedom, liderada por Washington7.
A participação de Portugal na ISAF foi política e legalmente enquadrada no âmbito das responsabilidades e obrigações decorrentes do princípio de defesa coletiva da NATO e de contributo para a segurança cooperativa fora das fronteiras nacionais8. Neste sentido, apesar de esta participação não ser clara do ponto de vista da proximidade geográfica e do retorno que permitiria, ela rapidamente se tornou uma prioridade nacional por ser uma missão nuclear da NATO inserida num esforço transversal e solidário de com- bate ao terrorismo e de construção de um sistema internacional mais seguro9.
Desde 2002, quando iniciou a sua participação na ISAF, com o envio de uma equipa sanitária e um C-13010, Portugal contribuiu com cerca de 3200 militares, num esforço que variou muito em termos de forças, de equipamento e de desempenho de funções. Destacam-se a liderança do Grupo de Comando do Aeroporto de Cabul, o contributo para a Quick Reaction Force da missão e para as operational mentoring and liaison teams11, bem como funções de elevada importância estratégica, como o treino das forças afegãs e a proteção de forças no terreno, a título de exemplo12.
Esta missão constituiu um enorme teste à capacidade operacional dos três ramos das Forças Armadas Portuguesas, naquilo que concerne à continuidade e longevidade do destacamento, mas também à adaptabilidade a um teatro de operações complexo - nas suas características geopolíticas, socioeconómicas, estratégicas e operacionais - e mar- cado pelo surgimento de novas ameaças e dinâmicas de conflito no terreno13. Neste processo, denotaram-se vários constrangimentos, sobretudo no que diz respeito à capacitação das FND, incluindo meios de proteção individual em número insuficiente, meios de comunicação por satélite e armamento obsoletos e em quantidade reduzida, número de viaturas blindadas desajustado e efetivo limitado dos módulos sanitário e de manutenção14. Apesar destas falhas terem comprometido a eficiência e o grau de operabilidade das FND, num contexto de elevada intensidade e risco, também permitiram a aprendizagem de lições essenciais para a continuidade do contributo de Portugal para a produção de segurança internacional, através de missões internacionais, incluindo: a criação de comandos centralizados para orientar esforços operacionais e maximizar os meios disponíveis; a antecipação da mobilização das unidades para garantir o atempado cumprimento de todas as operações; o treino orientado para a missão, procurando reproduzir o teatro de operações em ambiente controlado e o mais próximo possível da realidade no terreno; a adequada proteção da força, com o desenvolvimento e aperfeiçoamento do sistema de informações, de equipamentos de segurança e de procedimentos táticos normalizados; a coordenação com os diversos atores no terreno e estabelecimento de uma comunicação eficaz com os mesmos (com o apoio de tradutores, mas também com a adoção de comportamentos respeitadores dos costumes locais); o desenvolvimento de ações humanitárias que complementassem o vetor securitário da missão; bem como a gestão da projeção e retração da força15.
Para além das lições aprendidas, a ISAF foi essencial para reforçar a projeção e a reputação de Portugal, como um coprodutor de segurança internacional, junto das organizações internacionais que integra, mas também junto de atores locais. Com efeito, a participação praticamente sem caveats e o grande desempenho na quick reaction force da missão valeu a Portugal o reconhecimento internacional do profissionalismo, da competência e do rigor das suas Forças Armadas, numa lógica que se destaca pela integração das forças locais, através da transferência de know-how, confiança e entreajuda, como elemento crucial no processo de produção de segurança internacional. Como resultado, Portugal reforçou a sua imagem como país confiável - no cumprimento das suas obrigações internacionais -, facilitador e reconciliador, bem como a sua credibilidade enquanto contribuinte de segurança internacional capaz de responder às necessidades decorrentes de novas e mais complexas ameaças, em diferentes contextos geográficos e operacionais.
É de salientar que Portugal manteve a sua participação na ISAF, mesmo no contexto da grave crise financeira de 2010-2014 e do descontentamento da opinião pública europeia face à intervenção internacional no Afeganistão, o que reforçou a sua reputação como parceiro confiável e solidário16. Por outro lado, a ISAF gerou oportunidades para reforçar equipamentos e valências, transferíveis a outras missões17, mas também para uma atualização do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN), em 2003. Este passa agora a articular de forma mais clara um maior nível de ambição que reclama para Portugal uma vocação universalista com responsabilidades humanistas, de onde decorre uma participação mais ativa na produção de segurança internacional18, entendida de forma holística para integrar não apenas missões internacionais, mas também projetos de boa governação, de desenvolvimento socioeconómico e de reconstrução19.
A ISAF manteve-se no terreno até dezembro de 2014 e foi substituída, em janeiro de 2015, pela RSM da NATO, uma missão de dimensão mais reduzida que visava prestar treino, aconselhamento e assistência às forças de segurança afegãs. O contributo português para esta missão é analisado em seguida.
A RSM e a adoção de uma postura proativa na produção de segurança internacional
Ao contrário da ISAF, a RSM não é uma missão de combate, surgindo antes no seguimento do convite do Governo afegão, posteriormente enquadrado pela Resolução 2189 do CSNU20, para apoiar os esforços de capacity-building das instituições e forças de segurança afegãs, essenciais no apoio a Estados fracos ou frágeis e à luta global contra o terrorismo21.
A participação nacional na RSM insere-se já num contexto de transição para uma postura proativa do país na produção de segurança internacional, tal como cristalizada no CEDN de 2013, que assinala uma maior ambição de afirmar Portugal neste domínio, a importância das missões internacionais para gerar retornos transversais a outros eixos de política externa e de um entendimento mais abrangente dos desafios, das prioridades e das oportunidades que se colocam à segurança internacional22.
Em termos práticos, a RSM coincide com a aposta numa participação mais equilibrada nas missões da NATO, da UE e da ONU, e com o assumir de um empenhamento de grande visibilidade e de longo prazo nas missões internacionais na República Centro-Africana, com destaque para a United Nations Multidimensional Integrated Stabilization Mission in the Central African Republic (MINUSCA)23. Estes fatores, combinados com o facto de a RSM ser uma missão mais reduzida que a sua antecessora e sem dimensão de combate, justifica que o empenhamento de forças nacionais tenha sido bastante mais reduzido do que o que se verificou no contexto da ISAF. Com efeito, até junho de 2018, Portugal manteve empenhados dez militares dos três ramos das Forças Armadas no terreno, encontrando-se os mesmos destacados no quartel-general da missão e no quartel-general do Comando da Componente de Operações Especiais. Para além disso, os militares portugueses assumiam responsabilidades de treino, aconselhamento e assistência, através de funções diversificadas como watch-keeper, staff officer, theatre chief infrastructure e guardiana, no contexto de equipas multinacionais. Daqui resultaram riscos e perigos para os elementos nacionais destacados, incluindo o desajuste do seu armamento aos requisitos de segurança e de interoperabilidade da missão, o que, em articulação com as lições aprendidas na ISAF, justificou a sua rápida substituição. Não obstante, a projeção de armamento e equipamento continuou a ser um desafio, dependendo Portugal dos seus aliados para este fim24.
Em maio de 2018, a participação de Portugal aumenta significativamente com o empenhamento da 1.ª FND na RSM, composta por 146 militares do Exército português e constituindo-se como quick reaction force para a proteção da base do Aeroporto Internacional Hamid Karzai25. Nesta altura, são destacados mais 23 militares para prestar consultoria e assessoria no âmbito do treino dos militares afegãos em artilharia e dá-se um reforço dos elementos nacionais destacados em funções nos quartéis-generais da missão que passam a um total de 1526. Este reforço da participação portuguesa responde à decisão tomada pelos ministros da Defesa da NATO, em novembro de 2017, no sentido de aumentar o total de forças destacadas de 13 mil para cerca de 16 mil27.
Com efeito, em 2019, o chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas foi auto- rizado a empregar e sustentar: um efetivo até dez militares para exercer funções de estado-maior em quartéis-generais da RSM; 23 militares com missão de treino, aconselhamento e assistência na Escola de Artilharia Afegã; 154 militares para desempenhar a missão de quick reaction force no aeroporto; até 16 militares para o destacamento de apoio nacional; e uma equipa de operações especiais, com um efetivo de até 12 militares28. Após atingir o pico de efetivos empenhados na RSM, em 2019, o gradual decréscimo de forças destacadas neste contexto, com a supressão da equipa de operações especiais e a redução para metade dos militares para exercer funções de estado-maior e para o destacamento de apoio nacional, sugere já a preparação de uma estratégia de retirada. A participação das FND na RSM contribuiu para reafirmar a excelência das Forças Armadas Portuguesas, a sua competência e capacidade de execução das mais diferentes funções no terreno. Este reconhecimento é destacado pelos países aliados, pelos parceiros e pelos atores locais, e expresso em louvores e condecorações, como a atribuição da medalha Non Article 5 Afghanistan da NATO, pelo contributo na luta contra o terrorismo e para a paz e a segurança internacionais29.
A retirada do Afeganistão: lições aprendidas e desafios futuros
Após a assinatura do Acordo de Doha entre a Administração Trump e os talibãs, em fevereiro de 2020, estabelecendo a total retirada de forças internacionais do Afeganistão, assiste-se a um rápido aumento da instabilidade interna no país, com as forças talibãs a assumirem o controlo do país a um ritmo acelerado. Apesar de a decisão de retirada ter gerado um manifesto mal-estar entre os aliados da NATO, os mesmos acabaram por reconhecer que a abordagem militar não seria adequada para responder aos desafios de segurança do Afeganistão - também pela excessiva dependência da missão da infraestrutura militar norte-americana -, pelo que acordaram a retirada das forças da RSM do terreno, em maio de 2021. A missão seria definitivamente concluída no início de setembro de 2021, colocando termo a um envolvimento de duas décadas no Afeganistão30.
O difícil cenário de retirada e o rápido deteriorar das condições de segurança do país e o retrocesso das reformas encetadas durante vinte anos exacerbaram as críticas em relação à presença internacional no Afeganistão. Neste contexto, o então ministro da Defesa Nacional, João Gomes Cravinho, demonstrou a sua preocupação face ao regresso das forças talibãs, salientando que o respeito pelos direitos humanos e pelo direito internacional constituía parâmetro fundamental para a manutenção de um diálogo produtivo entre a comunidade internacional e o regime que se reinstalava no país31. No entanto, rejeitava a ideia de inutilidade das missões internacionais no Afeganistão ou de regresso ao passado, destacando, em alternativa, o facto de a presença internacional ter permitido mostrar o caminho para a construção de um país melhor, e que seria importante para o futuro do país32.
O ciclo de quase vinte anos de presença portuguesa nas intervenções internacionais militares no Afeganistão - por onde passaram cerca de 4500 militares nacionais - ter- minou antes da conclusão da RSM, com o regresso da 6.ª FND, composta por 162 militares, em 24 de maio de 202133.
Mais complexa foi, no entanto, a retirada de civis do Afeganistão e a sua receção em território nacional. Salienta-se, neste contexto, a preferência pela gestão desta questão num quadro multilateral. Esta opção resultou da articulação de constrangimentos logísticos e operacionais e das oportunidades geradas pela integração de Portugal em alianças e organizações internacionais, e materializou-se com a participação na operação Allied Solace, que visava a recolocação de cidadãos afegãos elegíveis em países de acolhimento.
Portugal contribui para esta operação com o Destacamento Conjunto de Cooperação Civil-Militar 3, composto por 11 militares dos três ramos das forças armadas, integradas na Very High Readiness Joint Task Force da Response Force da NATO, entre setembro e dezembro de 202134. Entre janeiro e fevereiro de 2022, Portugal continuou a contribuir para esta operação, mas desta feita com cinco militares, dos quais um estava integrado no Multinational CIMIC Group, e os restantes quatro formavam o destaca- mento de apoio sanitário do Agrupamento Logístico Conjunto da operação35.
A longa intervenção no Afeganistão gerou uma série de lições para Portugal e para a comunidade internacional. A importância de definir uma estratégia de retirada rápida e eficaz é uma delas. O «verão quente» de 2021 demonstra a necessidade de promover evacuações céleres em contextos marcados por um elevado grau de incerteza e condições de segurança em rápida degradação. O caos a que se assistiu em agosto é uma consequência direta da incapacidade de as forças aliadas preverem ou anteciparem a tomada de Cabul pelos talibãs, antes da retirada estar completa. Isto demonstra também a relevância de recolher e analisar informação de forma ampla e fidedigna, bem como de a aplicar no contexto de exercícios de cenarização rápidos, abrangentes e que possam constituir uma mais-valia na capacidade de resposta e adaptação das forças no terreno. Por outro lado, a excessiva dependência, logística e operacional, das forças de defesa e de segurança afegãs do apoio internacional deitou por terra qualquer capacidade de proteção dos cidadãos e de instituições afegãos, num contexto de retirada e desmobilização das forças aliadas. Esta é uma lição que alerta a comunidade internacional para a necessidade de apostar numa melhor preparação para a reconstrução de Estados intervencionados e em contexto de pós-conflito - uma fragilidade exposta pelo sucedido no Afeganistão, mas em tantos outros cenários, como o Iraque, a Somália ou a Líbia -, assim como a importância de apostar em abordagens integradas e bottom-up capazes de gerar efetivo capacity-building, resiliência e autonomia, possibilitando a manutenção de condições de segurança mesmo - e sobretudo - na ausência de forças internacionais36.
No plano multilateral, a retirada do Afeganistão chamou a atenção para as consequências do unilateralismo norte-americano no que toca à sobrevivência e relevância da NATO na arquitetura de segurança e defesa internacional. Do mesmo modo, alertou para a necessidade de os países europeus apostarem na sua autonomia estratégica e capacidade de ação mesmo na eventualidade de uma falta de apoio ou disponibilidade dos Estados Unidos para contribuírem para os esforços de defesa coletiva ou de com- bate a ameaças de segurança com impacto na ordem europeia. Não obstante a resposta norte-americana à guerra na Ucrânia, a evolução das relações transatlânticas permanece incerta e a solidariedade norte-americana demasiado conjuntural e dependente de um processo simultâneo de retraimento e reorientação estratégica, em curso desde a administração Obama.
Estas lições são particularmente relevantes no atual contexto internacional, marcado pela confluência de ameaças não tradicionais e pelo regresso da guerra de larga escala e da great power politics ao centro da agenda de segurança internacional. Para Portugal, representam uma aprendizagem no que toca ao aproveitamento de oportunidades e de mitigação de constrangimentos, mas também uma ferramenta de especialização num contributo efetivo para a produção de segurança internacional através de uma abordagem solidária, holística e transversal, capaz de promover a resolução das causas mais profundas dos conflitos internacionais e a construção de uma paz sustentável e sustentada à escala global.
Conclusão
O contributo português durante os vinte anos de intervenções internacionais militares no Afeganistão constitui uma etapa central da afirmação da participação em missões internacionais como eixo estratégico da política externa do país, bem assim como da sua gradual especialização e reconhecimento no âmbito da produção de segurança internacional. Com efeito, primeiro no contexto da ISAF, posteriormente na RSM e, finalmente, no âmbito da operação Allied Solace, Portugal aprendeu valiosas lições que foram incorporadas quer na prática, quer na doutrina nacional no âmbito das relações externas de defesa, como motor de projeção internacional do país e de concretização do interesse nacional.
Esta participação foi também muito importante em termos do reconhecimento e louvor granjeado pelo país. Destacam-se a este nível a capacidade, a rapidez e a vontade de aprendizagem das FND no contexto de partilha de experiências e competências com contingentes de outras nacionalidades. Esta interação e esta aprendizagem no terreno foram essenciais para reforçar as competências técnicas das FND e da sua experiência operacional, sobretudo em contexto de contrainsurgência37. Do mesmo modo, os aliados e, em particular, os Estados Uni- dos salientam o contributo português para o aperfeiçoamento da interoperabilidade no contexto das missões no Afeganistão, mas também para o reforço dos laços transatlânticos e dos esforços conjuntos para a segurança cooperativa no âmbito da NATO. Juntamente com o reconhecimento do contributo ativo de Portugal para a produção de segurança internacional, como democracia ocidental consolidada, membro integrante as principais organizações e alianças de segurança internacional, e participante em missões internacionais, isto tem permitido ao país projetar a sua visibilidade e reforçar a sua credibilidade. No contexto das missões militares no Afeganistão, denota-se ainda o elogio sobre a forma como as FND procuram formas alternativas e próximas dos locais para difundir valores democráticos, o primado do direito e os direitos humanos, incluindo igualdade de género, e, assim, alargar a sua influência.
Neste sentido, o destacamento de forças nacionais no Afeganistão durante cerca de duas décadas, apesar do enorme encargo e risco que implicou, proporcionou a Portugal uma reputação internacional de Estado solidário, conciliador e de fácil relaciona- mento com as comunidades locais, o que se traduziu em vantagens comparativas relativamente a médias e grandes potências, com políticas externas mais interessadas e/ou intervencionistas.
Por seu turno, estas vantagens comparativas foram essenciais para o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da capacidade de Portugal se assumir como um contribuinte líquido de segurança internacional, estando intimamente ligadas à transição de uma abordagem reativa para uma abordagem proativa no que toca à participação em missões internacionais.
Por fim, a experiência no Afeganistão e o que ficou no terreno após a retirada das forças internacionais constitui também uma importante lição e plataforma para reflexão sobre que paz e segurança está a comunidade internacional a produzir, a que custo e com que benefício: uma reflexão que Portugal deve aproveitar para ajudar a reconfigurar os esforços internacionais de promoção de paz e de segurança através da participação mais ativa e central também nos processos de tomada de decisão e de definição de estratégicas das alianças e das organizações de segurança e defesa que integra.