A 20 de março de 2003, os Estados Unidos da América (EUA), em conjunto com uma coligação limitada de outros países que incluía o Reino Unido, a Austrália e a Polónia, iniciaram uma invasão de um Estado soberano, o Iraque, baseando-se no pressuposto de que este país possuía armas de destruição maciça e, por conseguinte, constituía uma ameaça para a segurança regional e global1. A operação militar de invasão e derrube do regime de Saddam Hussein foi concluída em poucas semanas. Porém, após a fase inicial da intervenção militar, a situação no Iraque tornou-se cada vez mais complexa e difícil. A ausência de um plano pós-invasão, associada ao desmantelamento do exército iraquiano e ao afastamento do poder e da administração dos funcionários do Partido Ba’ath, provocou um vazio de poder e criou um clima de instabilidade e de insegurança generalizada. As insurreições e a violência sectária emergiram, desestabilizando ainda mais o país.
Para a Administração de George W. Bush, esta invasão simbolizava o fim de um ciclo iniciado em 1990, quando o regime iraquiano invadiu o Kuwait, originando a Primeira Guerra do Golfo. Ao contrário de Bush filho, George H. W. Bush recusou promover uma mudança de regime no Iraque, receando criar uma instabilidade na região que pusesse em risco a ordem internacional que emergiu no pós-Guerra Fria. A sua opção passou pela aplicação de um plano de sanções económicas, impostas pela Organização das Nações Unidas (ONU), que provocaram disputas constantes com o regime de Saddam Hussein devido ao incumprimento dessas resoluções2.
Mas a invasão do Iraque de 2003 foi, também, um momento charneira para a ordem internacional. As suas consequências foram multifacetadas quer a nível regional, quer a nível global, fraturando a comunidade internacional. Essas divisões foram particularmente evidentes a quatro níveis. Em primeiro lugar, no que diz respeito às relações transatlânticas3; depois, no que concerne às relações a nível regional, contribuindo para desestabilizar os países vizinhos e exacerbar clivagens e conflitos existentes, como no caso da Síria4; em terceiro lugar, no que diz respeito às relações entre as grandes potências - EUA, China e Rússia; e finalmente, a Guerra do Iraque corroeu a dimensão normativa da ordem internacional vigente, precipitando a sua crítica e o seu declínio. Estas quatro dinâmicas, em última análise, contribuíram para a transformação da ordem internacional5. O presente artigo tem como objetivo fazer uma breve reflexão sobre o conceito de ordem, salientando as principais transformações ocorridas nos últimos vinte anos no quadro da relação transatlântica e do Médio Oriente, em consequência da crise do Iraque de 2003.
O conceito de ordem internacional e a arquitetura pós-Guerra Fria
O conceito de ordem é complexo e pode ser entendido de várias formas. O denominador comum diz-nos que a ordem internacional subentende um certo nível de padronização e de regularidade que conduz a um determinado grau de previsibilidade nas relações entre agentes. Neste sentido, ordem pode ser entendida como regularidade e previsibilidade dentro de um sistema social, quando o comportamento dos agentes, as suas interações e os seus resultados estão sob algum tipo de regulação. Esse padrão de relações subentende não só uma dinâmica normativa, como um conjunto de práticas internacionais6. Adicionalmente, como demonstram Alexander Cooley e Daniel Nexon, não se pode considerar a existência de uma ordem internacional única. Esta pode variar consoante as áreas temáticas e as relações específicas entre os vários agentes políticos7. Finalmente, as ordens são compostas por mais duas dinâmicas fundamentais. Em primeiro lugar, a existência de um conjunto de normas, de regras, de princípios e de instituições que permitem aos agentes estabelecer uma forma de governo entre si; em segundo lugar, a ideia de que, na maioria das vezes, essa proteção dos interesses dos agentes é liderada ou potenciada, primordialmente, por apenas um agente ou por um grupo de agentes8.
Com o final da Guerra Fria assistiu-se a uma alteração das regras de funcionamento da ordem internacional. Os EUA tornaram-se a única grande potência, o que permitiu um empenhamento cooperativo na resolução de conflitos. No entanto, a forma de travar diferendos ou conflitos internacionais «raramente funcionou sem a ameaça» do «uso da força», ou o uso da força em si, através de missões de peacekeeping, peacebuilding ou peace enforcement9.
A ordem internacional liberal (OIL) teve outras expressões antes de 1990. Foi sempre uma ordem contestada10, mas nunca tanto como depois da Guerra do Iraque11. Antes, muitos autores, como David Lake, acreditavam que a ordem tinha sido uma instituição de sucesso12.
Formada na sequência da Segunda Guerra Mundial, a OIL tinha como objetivo primordial defender coletivamente o Ocidente perante a ameaça expansionista da União Soviética, «apoiando a ascensão do comércio livre e a mobilidade internacional do capital, espalhando a democracia e promovendo os direitos humanos»13. Neste processo, a ordem baseou-se na cooperação entre os EUA, a Europa Ocidental e o Japão, possibilitando a formação de uma comunidade de segurança pluralista, em que o uso da força entre os membros deixou de fazer sentido14. A cooperação securitária estendeu-se à liberalização do comércio e do capital internacional, permitindo um crescimento económico e uma melhoria do nível de vida. Finalmente, potenciou, também, a consolidação da democracia nas antigas forças do Eixo e promoveu a expansão dos valores democráticos a nível mundial o que, em última análise, facilitou o estabelecimento de um regime global de direitos humanos, melhorando estas práticas em muitos países15.
Esta perceção deve-se, também, à definição avançada por G. John Ikenberryque, grosso modo, define a OIL como sendo aberta e assente em regras, consagrada em instituições como a ONU e em normas como o multilateralismo16. Adicionalmente tinha, também, como característica, uma certa hierarquia, assente no poder dos EUA. Não deixando de perder a sua característica constitucional, «no sentido em que se baseia em regras e instituições que refletem os interesses comuns e o consentimento dos Estados principais», ela é, também, hierárquica, «porque a sua construção foi impulsionada pelos Estados Unidos», espelhando os interesses americanos e dependendo do exercício do poder americano17.
Desde o final da Guerra Fria, a OIL aprofundou-se e alargou-se a várias zonas do globo18. Esse processo tirou partido do momento unipolar de Washington, «onde a preponde- rância dos Estados Unidos neutralizou os perigos da guerra entre potências»19. A hegemonia dos EUA, um país com uma raiz democrática, impôs as «regras do direito contra os abusos dos regimes despóticos com as intervenções na Bósnia-Herzegovina, no Kosovo ou em Timor-Leste»20. Adicionalmente, a hegemonia norte-americana criou condições para o desenvolvimento de «transições pós-autoritárias» em vários países da Ásia, da América do Sul e de África, confirmando a tendência da democratização que se verificava desde o final da Segunda Guerra Mundial, e mostrando que as «afinidades eletivas entre os processos de modernização económica e social e a liberalização política» podiam prevalecer sobre as «clivagens civilizacionais, religiosas ou culturais»21. Finalmente, a adesão da China e da Rússia à Organização Mundial do Comércio consolidou o processo de integração de grandes potências na OIL, pela primeira vez à escala global.
Estas transformações garantiram um ciclo de crescimento sem precedentes que marcou a emergência da China e da Índia, seguidas de outras potências do Sul Global22. Confirmavam, também, a expansão dos ideais liberais a uma escala global.
Contudo, o 11 de Setembro e, em particular, a crise provocada pela invasão do Iraque em 2003 fizeram desmoronar a ideia de que os EUA tinham um papel central para garantir a distribuição de bens comuns internacionais23 - função da potência hegemónica de acordo com a teoria da estabilidade hegemónica. Em parte, isto deveu-se às consequências da aplicação da chamada «Doutrina Bush»24.
A estratégia neoconservadora de George W. Bush tinha quatro objetivos: (1) legitimar a estratégia de guerra preemptiva como forma eficaz de dissuadir os Estados próximos do terrorismo global; (2) dar preferência ao unilateralismo em prejuízo do multilateralismo, já que as instituições multilaterais não podiam condicionar a estratégia da principal potência internacional; (3) a desvalorização de alianças permanentes, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, na sigla inglesa), favorecendo coligações ad hoc, que mantivessem o apoio e a liberdade de ação aos EUA; e (4) defender a virtude da democracia, como a única forma de combater a ameaça terrorista. A crise do Iraque de 2003 foi a materialização da nova estratégia dos EUA, que pretendia confirmar a sua «supremacia estratégica», dar credibilidade à estratégia da guerra preemptiva e demonstrar aos regimes autoritários que o caminho era a democratização. Mas, simultaneamente, mostrou aos Estados europeus que as alianças permanentes não estavam, à partida, garantidas25.
Nos anos subsequentes à Guerra do Iraque, o fracasso da Doutrina Bush contribuiu para que a nova Administração liderada por Barack Obama procurasse alterar alguns aspetos da estratégia dos EUA, em particular no que dizia respeito às virtudes do multilateralismo - principalmente na Europa e no Indo-Pacífico26. Porém, o ceticismo em relação às instituições multilaterais tem uma longa história entre os conservadores norte-americanos e as ameaças às instituições multilaterais continuaram nos anos seguintes, em particular desde a chegada de Donald Trump ao poder27. Ao mesmo tempo que se assistiu à crise das instituições multilaterais, o colapso do Lehman Brothers em setembro de 2008 e a crise financeira euro-atlântica que daí adveio vieram acelerar a retração política, económica e militar dos EUA28. A emergência de um conjunto de novas potências económicas, principalmente na Ásia (consolidação do Japão, da China e da Índia), revelou uma alteração na distribuição do poder económico que refletiu o declínio relativo do Ocidente na política internacional29.
A evolução na dinâmica transatlântica
A invasão norte-americana do Iraque em 2003 deu origem a uma das crises mais graves nas relações transatlânticas. Ao longo desta crise, ficou evidente a determinação dos EUA em garantir a invasão do Iraque, mesmo que provocasse uma divisão entre os aliados europeus, bastante clara quando a Alemanha não hesitou em assumir uma posição de oposição ao seu principal aliado. Esta divisão demonstrou a ausência de posição comum entre aliados e provocou uma deterioração da imagem internacional dos EUA na Europa. Até ao final da Administração Bush, o caminho da relação transatlântica foi feito no sentido de recuperar a confiança perdida30.
Se até ao final da Administração Bush a preocupação era a fratura nas relações entre os dois lados do Atlântico, com a Administração Obama a preocupação central passou a ser a deslocação do interesse estratégico norte-americano para a Ásia-Pacífico, o chamado pivô asiático. Porém, desde 2008, a tendência mais forte foi para o restabelecimento da convergência euro-atlântica, quer através das negociações do Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento - suspensas por Trump -, quer pela importância que a NATO e a ideia de defesa coletiva passaram a ter após a crise da Geórgia em 2008 e da Crimeia em 2014, acontecimentos que tornaram evidente a reemergência do revisionismo russo.
Com efeito, durante a Administração Obama, enquanto se delineava a estratégia de reposicionamento para a Ásia, passou também a defender-se o conceito de leading from behind no espaço euro-atlântico aplicado à intervenção na Líbia em 2011 e na crise da Ucrânia de 2014. O objetivo era que os aliados europeus passassem a ter, cada vez mais, uma posição ativa na defesa do seu espaço regional. Porém, a Crimeia demonstrou os limites do alargamento a Leste da NATO e da União Europeia (UE). A Europa tornou-se uma região mais insegura. A invasão da Crimeia e o apoio dado aos movimentos separatistas na Ucrânia que desafiam o Memorando de Budapeste de 1994 (proteção da segurança territorial ucraniana desde que fosse assegurado o desmantelamento do seu arsenal nuclear) enfraqueceram a credibilidade da NATO e da UE. O revisionismo russo veio demonstrar que a comunidade de segurança do Atlântico Norte e a necessidade e confirmação da segurança coletiva, no quadro da NATO, nunca fizeram tanto sentido31.
A eleição de Donald Trump nos EUA e o referendo a favor do Brexit no Reino Unido reforçaram esta perspetiva. As consequências de longo prazo da crise da Crimeia, com a deterioração das relações entre o Ocidente e a Rússia - em questões como a forma de lidar com o terrorismo internacional -, a instabilidade em África e no Médio Oriente e a Guerra da Síria foram mais alguns dos aspetos a ter em conta, a par da posição retórica da Administração Trump no sentido de uma diminuição do compromisso com a segurança euro-atlântica. No espaço regional da UE, a crise da zona euro e a crise migratória, o recrudescimento do euroceticismo, bem como a crise da legitimidade democrática, sobretudo na Europa de Leste, tornaram o ambiente estratégico e de segurança europeu mais frágil e instável32.
Desenvolvimentos no Médio Oriente
A Guerra do Iraque em 2003 implicou uma mudança significativa no intervencionismo das democracias liberais no Médio Oriente, ao demonstrar os limites das ações militares para promoção democrática e construção do Estado, mas também do acolhimento da população à intervenção ocidental na região, vista com desconfiança e como desfavorável aos esforços democráticos. A Administração W. Bush acreditava numa intervenção rápida que levaria a democracia ao Iraque e ao mundo árabe-muçulmano, que
«marginalizaria a Alcaida e garantiria a influência dos EUA na região». Ao invés, «xiitas, sunitas e curdos alimentaram a violência […] e lutaram não só entre si, mas também contra as forças armadas americanas»33. O Governo iraquiano, vinte anos depois, não é estável nem democrático34.
Quando se iniciou a vaga de protestos na Tunísia, que ficou conhecida como «Primavera Árabe», o Ocidente optou por uma abordagem mais prudente face à intervenção e influência nos processos locais. Os resultados pírricos da Primavera Árabe - que provocaram a queda de três líderes autoritários (Ben Ali na Tunísia, Hosni Mubarak no Egito e Muammar Khadafi na Líbia), duas guerras civis (Síria e Líbia) e a rápida reação de vários regimes para reprimir ou introduzir reformas de natureza essencialmente cosmética, sem que tenha emergido qualquer democracia consolidada na região - puseram em causa a atração do modelo ocidental e a convicção de que aos protestos e revoltas se seguiria a democracia. Neste sentido, a instabilidade que se seguiu à Guerra do Iraque provocou uma reavaliação das estratégias de promoção democrática, ilustrada na reação à Primavera Árabe quando o Ocidente se deparou com o dilema entre o apoio à estabilidade e o apoio à promoção democrática35.
Ao longo deste processo, ao intervencionismo da Administração Bush seguiu-se o retraimento estratégico da Administração Obama. Num contexto regional e nacional diferente, os EUA e os seus aliados, perante a escalada de violência e os apelos a uma intervenção contra os líderes autoritários da Líbia e da Síria, optaram por uma estratégia de leading from behind36. A opção de Obama, em plena Primavera Árabe, significou um discurso retórico de apoio aos manifestantes pela democracia e de estabelecimento de linhas vermelhas aos líderes autoritários enquanto era clara a intenção de não intervir militarmente nesses países, explícita nas Orientações Estratégicas de Defesa de 2012, em que era claramente afirmado que as forças armadas dos EUA «já não seriam dimensionadas para conduzir operações de estabilidade prolongadas em grande escala»37. Na Síria, a repressão violenta com que o regime de Bashar al-Assad respondeu aos manifestantes levou Obama a advertir o ditador, apelando a que se afastasse do poder e estabelecendo a «linha vermelha» da utilização de armas químicas contra a população, sugerindo uma ação militar norte-americana caso esta linha fosse ultrapassada. Contudo, a hesitação de Obama acabou por fortalecer a posição de Assad e o apoio do Irão e da Rússia ao regime, iniciando-se uma guerra civil hoje avaliada como uma guerra por procuração (proxy war) com recurso a forças irregulares38 em que a Rússia e o Irão apoiam militar, política e financeiramente o regime, a Turquia, o Qatar e a Arábia Saudita financiam e apoiam as fações rebeldes e os EUA desenvolveram ataques aéreos contra forças do Estado Islâmico junto à fronteira do Iraque (e para lá da fronteira, no norte do Iraque).
Contudo, a estratégia de retraimento seguida pelos EUA acabou por trazer perigos associados pois, como demonstrou Robert Gilpin, as potências rivais procuram ocupar o lugar deixado vago pelas potências de statu quo. Tal foi o que aconteceu no Médio Oriente, onde a China e a Rússia se sentiram encorajadas a preencher o vazio de poder deixado pelos EUA39. Importa salientar que o retraimento estratégico não foi revertido pela Administração Trump, e que mesmo a Administração Biden está mais atenta à escolha de compromissos internacionais, como assumiu durante a retirada do Afeganistão - «ao virar a página da política externa que guiou a nossa nação nas últimas duas décadas, temos de aprender com os nossos erros» -, pelo que a influência norte-americana deixará de ser «exercida através de intermináveis destacamentos militares, mas sim através da diplomacia, de ferramentas económicas e da mobilização do resto do mundo para nos apoiar»40.
Vinte anos depois da Guerra do Iraque e mais de uma década depois da Primavera Árabe e das intervenções na Líbia e na Síria, emergiu uma nova ordem regional no Médio Oriente41, de progressiva autonomização das potências regionais. Os EUA abandonaram a posição de potência dominante e passaram a estar em competição com a China e a Rússia. A par disto, existe uma competição entre potências regionais, quer entre Estados (Turquia, Arábia Saudita, Irão), quer ao nível de instituições regionais, como a Liga Árabe e o Conselho de Cooperação do Golfo. Por outro lado, perante o retrocesso da democracia no mundo e o falhanço de promoção democrática das intervenções militares (Iraque, Afeganistão, Síria e Líbia), a estratégia de promoção demo- crática deixou de ser a prioridade e muitos dos principais defensores da invasão do Iraque reconhecem hoje o erro que representou. Por isso, a Líbia terá sido a última tentativa de promoção da liberdade e da democracia e de isolamento internacional dos regimes autocráticos42. Daí que, hoje, até os neoconservadores, acérrimos defensores da invasão do Iraque, assumam que a intervenção foi negativamente determinante para o novo cenário geopolítico na região43. Assim, a tentação imperial norte-americana colapsou no Médio Oriente. A estratégia de limitação de soberania de Estados não democráticos deu lugar a uma certa indiferença relativamente aos regimes internos, impulsionada pela emergência de novas potências e de novos desafios estratégicos44.
Tensão crescente entre ordens
Neste novo ambiente estratégico, em que o retraimento dos EUA é acompanhado por um reforço da competição com novas potências, em particular a China e a Rússia, a ordem internacional tem vindo a adaptar-se ao regresso à multipolaridade, o que tradicionalmente origina um sistema internacional mais fluído e instável. Como demonstra Chester Croker, a «polarização internacional apresenta sérios obstáculos à resolução de questões críticas relativas aos direitos humanos, à soberania dos Estados e ao papel adequado da comunidade internacional»45.
As tensões entre a Rússia, a China e o Ocidente agravam-se e as consequências desta polarização são evidentes, como demonstram o caso do conflito na Síria e na Ucrânia, ou a situação de paralisia a que organizações de segurança coletiva como a ONU chegaram46. Finalmente, se a globalização contribuiu para o crescimento económico e para a ascensão na cena internacional dos países do Sul Global, no mundo ocidental potenciou o aumento de um conjunto de desigualdades que estimularam o crescimento dos movimentos populistas, catalisadores do descontentamento das sociedades47.
Fruto desta evolução, nos últimos vinte anos temos assistido a uma «crescente tensão entre os defensores da ordem liberal e os partidários da soberania vestefaliana que poderá acentuar as clivagens entre as potências conservadoras e as potências revisionistas»48. A ordem vestefaliana baseia-se na ideia de que os Estados soberanos são as principais unidades do sistema, exigindo o reconhecimento dos Estados pela comunidade internacional e recusando a interferência nos assuntos internos de cada Estado - princípio incorporado na Carta das Nações Unidas. Neste sentido, a ordem vestefaliana e a OIL têm-se coconstituído e evoluído paralelamente, num conjunto de normas e práticas que são sobrepostas. Partilham princípios comuns como a autodeterminação dos Estados, a resolução pacífica de conflitos e a não interferência nos assuntos internos49. Mas a OIL contém princípios não presentes em Vestefália, como o respeito pelos valores liberais, a defesa dos direi- tos humanos e a doutrina da responsability to protect. Valoriza também questões pouco evidentes em Vestefália, como a defesa do multilateralismo e da segurança coletiva. E entra em contradição com a ordem vestefaliana, nos anos 1990 e 2000, ao colocar o indivíduo - e não o Estado - no centro do direito internacional, o que cria uma tensão evidente entre as duas ordens50.
Esta tensão é ainda mais notória quando, no momento presente, o liberalismo, nas suas formas económicas e políticas, desafia as noções de identidade nacional, numa tensão entre normas de soberania territoriais, central para a ordem de Vestefália e normas cosmopolitas, fundamentais para a OIL51. Neste processo, uma potência como a China, que não é uma democracia nem demonstra tendência para o ser, acaba por se colocar, claramente, numa posição de defesa dos princípios da soberania e de não interferência entre Estados52. Com esta tensão crescente, o mundo pode ser dominado por Estados soberanos nacionalistas, aumentando a possibilidade de mais competição e discórdia nas relações internacionais à medida que tentam maximizar os seus próprios ganhos. Neste cenário de «discórdia», existe um potencial crescente de conflito interestatal e de relações competitivas com a alteração dos equilíbrios de poder no sistema internacional53.
Em parte, as razões para esta evolução prendem-se com as consequências da crise do Iraque iniciada em 2003. As cisões provocadas pela decisão unilateral da Administração Bush em invadir o Iraque, que vieram confirmar uma viragem dos EUA no sentido da unilateralidade, como a questão do Kosovo já havia demonstrado, contribuíram para a rutura das normas de cooperação e unidade que estiveram presentes nas instituições internacionais antes da década de 1990, em particular na ONU, a organização primordial de segurança coletiva. O Iraque, no fundo, enfraqueceu um sistema de normas baseado em regras, nunca permitindo a recuperação da unidade. Adicionalmente, permitiu que o estigma da violação do direito internacional se desvanecesse em geral, a par das operações militares sem resolução do Conselho de Segurança da ONU, abrindo precedentes que foram usados posteriormente em vários conflitos, desde a Geórgia, em 2008, passando pela Síria, pela Crimeia e, finalmente, pela Ucrânia, em 202254.
Estes golpes na ordem do pós-Guerra Fria, erigida arduamente ao longo da década de 1990, aceleraram a crítica ao internacionalismo liberal. De certa forma, a Guerra do Iraque de 2003 pareceu justificar a visão realista das relações internacionais. Afirmando que os interesses materiais e a segurança são os motores da política internacional - e não as normas, a ideologia ou as instituições -, o realismo teve dificuldade em se adaptar à sua incapacidade de prever o final da Guerra Fria, bem como às consequências dessa mudança no sistema internacional. Ao contrário do que alguns previram, nos anos imediatos a seguir ao derrube do Muro de Berlim e à implosão da União Soviética, a tese do equilíbrio de poder foi substituída pela atuação da principal potência de acordo com os pressupostos liberais, sobretudo em regiões como a Europa (Europa de Leste e Balcãs) e o Médio Oriente, após 11 de setembro de 2001. Como demonstra Samuel Helfont, «[o]s Estados Unidos empreenderam intervenções humanitárias em locais onde tinham poucos interesses nacionais vitais; expandiram as suas alianças com base em compromissos ideológicos e não em requisitos de segurança; e promoveram vigorosamente a democracia liberal»55.
Considerações finais
O momento unipolar dos EUA no pós-Guerra Fria levou esta potência a assumir demasiados compromissos externos, expandindo-se excessivamente56. Como demonstra Carlos Gaspar, o 11 de Setembro revelou «uma vulnerabilidade e uma insegurança excessiva dos EUA, incompatível com o seu estatuto unipolar»57. Se ainda é prematuro dizer-se que a ordem liberal está a desvanecer-se, os princípios vestefalianos estão a reemergir, já que muitos Estados veem estes princípios como mais do que suficientes para a manutenção de uma ordem mínima nas relações entre Estados58.
Se a Rússia e a China são exemplos disto, não nos podemos esquecer do crescimento do Sul Global. Construída sobre instituições concebidas após a Segunda Guerra Mundial, quando os EUA representavam metade do produto interno bruto mundial e poucos eram os países que tinham o poder político, militar e económico para moldar a cena internacional, as instituições da OIL assistiram à emergência de novas potências, com visões diferentes do que seria uma ordem internacional conveniente e desejosas de reverem as normas da OIL.
A crise do Iraque teve, neste aspeto, duas consequências. Por um lado, o desgaste dos EUA em guerras intermináveis no Grande Médio Oriente deixo-os mais desconfiados não só em relação aos seus aliados e às instituições internacionais, como em relação aos novos países emergentes, desde a Índia, a China, o Brasil e, até, em relação à Alemanha reunificada. Por outro lado, permitiu que os críticos da OIL emergissem e se sentissem com poder para a reformar. Livres de se conformarem com as normas de um sistema baseado em regras, as novas potências deixaram de seguir automaticamente o Ocidente liberal, procurando defender os seus próprios interesses e valores no âmbito das instituições internacionais. Contudo, tal não quer dizer que, automaticamente, todas estas novas potências se conformem com o aumento de poder de algumas delas e tendam a cair, definitivamente, para o lado de atores como a China59.