Introdução
Em meados de julho de 1973, o presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, realizou uma visita oficial a Londres para participar nas comemorações do sexto centenário da aliança anglo-portuguesa. A viagem suscitou uma grande controvérsia no Reino Unido pelo facto de ter coincidido com massacres recentemente perpetrados em Moçambique pelo exército colonial português1. Harold Wilson, o então líder trabalhista na oposição, não tardou a condenar os massacres, que qualificou de «genocídio», e a exigir a suspensão da visita de Caetano e a expulsão de Portugal da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, na sigla inglesa). A visita também foi criticada por outros conhecidos membros do partido, entre os quais se encontrava James Callaghan, que mais tarde se tornaria ministro dos Negócios Estrangeiros britânico. No âmbito das atividades contra a presença de Caetano em Londres, Callaghan teve uma reunião com Mário Soares, líder do Partido Socialista português (PS), recentemente criado sob os auspícios da social-democracia alemã e o apoio dos trabalhistas britânicos. Ainda que a ajuda trabalhista ao partido-irmão em Portugal fosse modesta, traduziu-se num impulso moral e internacional significativo para o PS. Também serviu para forjar laços que ambas as partes aproveitariam num futuro imediato2. Alguns meses depois, o programa trabalhista para as eleições legislativas britânicas de fevereiro de 1974 manifestava solidariedade com os movimentos de libertação nacional nos territórios portugueses em África e comprometia-se com a promoção da democracia no sul da Europa3. Durante a campanha eleitoral, o candidato trabalhista Wilson criticou a complacência do Governo conservador face às ditaduras do Chile, de Espanha, da Grécia e de Portugal. Resumidamente, nos meses anteriores à Revolução dos Cravos os trabalhistas ingleses expressaram em diversas ocasiões o seu apoio à democratização de Portugal e à descolonização das suas possessões em África. Isto fez com que, apesar de um passado contemporizador por parte da Grã-Bretanha em relação à ditadura portuguesa e à sua obstinada resistência imperialista, o novo governo trabalhista, resultante das eleições do início de 1974, se encontrasse numa posição vantajosa para influir sobre os processos de transformação política e colonial que se seguiram ao golpe militar de abril desse ano em Portugal.
No entanto, o caso britânico tem sido um dos menos explorados na crescente literatura sobre as dimensões internacionais da mudança de regime em Portugal4. Este artigo analisa a política externa do Governo trabalhista de Harold Wilson em relação a Portugal entre abril de 1974 e novembro de 1975. Qual foi a contribuição britânica para a manutenção dostatu quointernacional desafiado pela tumultuosa evolução sociopolítica de Portugal? Para responder a esta pergunta, as páginas seguintes investigam o papel da Grã-Bretanha na canalização da revolução portuguesa numa direção liberal e ocidental, alinhada com os interesses geopolíticos e económicos da Grã-Bretanha.
A Grã-Bretanha e o golpe do 25 de Abril: descolonização e democratização
Os acontecimentos do 25 de Abril de 1974 em Portugal geraram novas expetativas para a política externa britânica na África Austral e na Europa do Sul. O fim da ditadura trouxe a Lisboa ventos inusitados de descolonização e democratização, oferecendo ao Governo de Harold Wilson a possibilidade de alinhar a sua política em relação a Portugal com os compromissos internacionais do manifesto eleitoral trabalhista5. Em consequência disso, a diplomacia britânica focou-se em dois objetivos. Em primeiro lugar, facilitar o estabelecimento de uma democracia liberal em Portugal, de forma moderada e pacífica. Em segundo lugar, apoiar uma dissolução rápida e ordenada do império português no Ultramar, o que também dava a Londres a possibilidade de lidar com a situação espinhosa da Rodésia, uma antiga possessão britânica onde um governo rebelde de minoria branca tinha, em 1965, declarado unilateralmente a independência com o apoio da administração colonial salazarista6.
O PS converteu-se num aliado-chave do Governo britânico para alcançar estes objetivos. Enquanto o presidente da Junta de Salvação Nacional, o general António de Spínola, era partidário de uma transição gradual para uma espécie de solução federalista e plebiscitária, sob a forma de uma Commonwealth lusófona, o PS defendia uma transferência de poderes rápida e direta, em linha com as ideias britânicas7. Além disso, o PS combinava uma retórica radical com uma prática política realista e moderada, o que permitia que a sua ideologia anticapitalista e de defesa da neutralidade não colocasse entraves ao compromisso com a democracia parlamentar, com a economia de mercado e com o atlanticismo. Desde o fim do regime autoritário, os dirigentes trabalhistas viram no PS um ativo estratégico para conter a crescente influência dos comunistas, encabeçados por Álvaro Cunhal, e garantir o estabelecimento de uma democracia de tipo ocidental em Portugal8.
Pouco depois do levantamento militar, o líder socialista Mário Soares foi convidado por Ron Hayward, secretário-geral do Partido Trabalhista (PT), a ir a Londres para um encontro com o primeiro-ministro Wilson e o ministro dos Negócios Estrangeiros Callaghan. Nesta reunião foram delineadas as principais orientações da política britânica em relação a Portugal durante a revolução: dar assistência ao PS através de canais não governamentais e fomentar a cooperação bilateral em temas de interesse comum com as novas autoridades em Lisboa. Por um lado, o ministro Callaghan sugeriu o envio de ajuda de âmbito financeiro, técnico, de formação e organização aos socialistas portugueses, através do PT e do Trade Union Congress (TUC). Por outro, propôs que o Governo britânico cooperasse com o português a vários níveis. Concretamente, comunicou a Soares a vontade de Londres de partilhar com os dirigentes portugueses a «experiência britânica em matéria de descolonização»9. A colaboração anglo-portuguesa neste capítulo ganhou impulso depois da nomeação, em meados de maio de 1974, de Mário Soares como ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Provisório liderado por Adelino da Palma Carlos. Em finais de maio e início de junho, Callaghan teve duas reuniões com o novo ministro Soares, nas quais foram discutidos os «planos portugueses para a descolonização em África» e o possível «impacto do desenvolvimento dos acontecimentos em Moçambique sobre a situação política na Rodésia e África do Sul»10. Através destes contactos e de outras atividades diplomáticas, o Governo britânico tentou facilitar uma descolonização imediata das possessões portuguesas, com o intuito de promover uma reorganização política e racial que fortalecesse a sua posição na África Austral e na Commonwealth. Não surpreende, portanto, a satisfação que se fez sentir em Londres quando no final de julho de 1974 Spínola abandonou os seus planos de descolonização limitada, preparando o caminho para o fim imediato do império português.
A ofensiva cultural e sindical
No verão de 1974, numa altura em que a descolonização em África parecia seguir um caminho adequado, a situação política interna em Portugal tornava-se cada vez mais volátil. O golpe militar desencadeara um processo revolucionário que inquietava os observadores estrangeiros, como o embaixador britânico Nigel C. Trench, que no início de junho de 1974 expressou a sua preocupação pelo enfraquecimento do Estado e o vazio de poder que, na sua opinião, alimentavam um incontrolável «sentimento geral de libertação» e um aumento da desordem social no país11. Trench advertia que a inflação galopante, a fuga de capitais estrangeiros e a erosão da figura de Spínola podiam beneficiar o Partido Comunista Português (PCP), o único ator político que via como «suficientemente bem organizado para explorar o caos resultante»12.
No mês seguinte, a embaixada britânica em Lisboa alertou para o fluxo constante de visitas a Portugal por parte de jornalistas e intelectuais soviéticos vinculados aos partidos comunistas ocidentais. Era o caso de uma missão do World Peace Council, que percorreu Portugal em finais de junho, e de uma delegação do Conselho Soviético dos Direitos de Autor, que viajou a Lisboa para estabelecer vínculos com autores e editoras portugueses e promover intercâmbios culturais entre os dois países. Estes contactos, juntamente com a visita do Ballet Bolshoi e do Coro do Exército Vermelho, refletiam, segundo a diplomacia britânica, o desejo soviético de «afirmação no campo cultural em Portugal»13. Pouco tempo depois, outro relatório oficial indicava que desde o fim do regime ditatorial tinha sido promovido um «extenso programa de atividade cultural por parte dos novos amigos de Portugal» no Bloco de Leste, que estava «a obter uma grande visibilidade e a atrair a curiosidade e atenção do público português»14. A esposa de Mário Soares manifestou aos oficiais britânicos o seu descontentamento pela inação ocidental nesta questão, que permitia «que os russos e os seus amigos tenham o campo cultural inteiro só para eles»15.
Em resposta, a embaixada britânica propôs enfrentar a ofensiva ideológica comunista no terreno mediático e cultural através de uma estratégia dupla. Em primeiro lugar, sugeria «contrabalançar o domínio comunista e de esquerda nos meios de comunicação em Portugal»16 através de cursos de formação a jornalistas e da utilização de materiais do Information Research Department, uma agência governamental vinculada aos serviços de informações britânicos, cujo trabalho consistia em produzir e disseminar secretamente propaganda anticomunista. Além disso, planeava-se levar a cabo uma campanha de relações públicas, através de visitas, contactos e publicações, para explicar às principais figuras do Governo e do Movimento das Forças Armadas (MFA) o ponto de vista britânico sobre «as relações Leste-Oeste e a natureza da ameaça soviética na Europa ocidental»17. Não obstante, tudo isto deveria ser realizado com a maior prudência, uma vez que os setores militares ligados ao PCP se mostravam «patologicamente receosos da CIA ou de qualquer outra forma de manipulação por parte das forças do capitalismo e da reação»18.
Em segundo lugar, a embaixada propunha aumentar a presença cultural e educativa em Portugal através do British Council (BC). No entanto, a dinâmica revolucionária iniciada na primavera de 1974 limitou consideravelmente a capacidade de atuação deste organismo. Até então, o BC tinha levado a cabo um trabalho «bem-sucedido» e «intenso» em Portugal. Para além da sua participação destacada nos preparativos do sexto centenário da aliança anglo-portuguesa, tinha colaborado de forma estreita com o Governo de Caetano, fornecendo assessoria e assistência técnica para a reforma do sistema educativo português19. Porém, as purgas que se seguiram ao golpe deixaram o BC sem alguns dos seus melhores contactos de tendência anglófila entre as elites educativas portuguesas. A revolução também levou à paralisação e adiamento da reforma educativa, privando o BC de uma das suas principais plataformas de influência em Portugal. Ainda que o programa de ensino do inglês não tenha sido afetado pelo clima político, a instabilidade que atingiu Portugal na segunda metade de 1974 prejudicou uma parte importante do trabalho cultural e educativo do BC, cuja atividade não voltaria a ser reatada até finais de 197520.
Neste período, o Foreign and Commonwealth Office (FCO) também expressou a sua preocupação pelo crescente peso dos comunistas nos meios sindicais em Portugal. Depois da derrocada da ditadura, o PCP era o único partido no país com uma forte presença entre a classe operária. O Governo trabalhista temia que Portugal seguisse o exemplo da Europa de Leste depois da Segunda Guerra Mundial, quando o controlo dos sindicatos por parte dos comunistas antecedeu a tomada do poder político. O debate sobre a reforma sindical em Portugal foi seguido desde Londres com atenção. Mas qualquer intervenção oficial nesta questão podia ser interpretada e condenada como uma ingerência relacionada com as atividades da Central Intelligence Agency (CIA). Face à dificuldade sentida pelo Governo em atuar na esfera sindical portuguesa, no final de junho de 1974 Wilson e Callaghan pediram a Jack Jones, o presidente do comité internacional do TUC, a colaboração do sindicato na contenção do comunismo no mundo do trabalho. A partir daí, o TUC difundiu materiais, realizou cursos de formação sindical e prestou assessoria em negociação coletiva com o intuito de fomentar um marco legal de relações industriais baseadas na colaboração entre as forças do trabalho e o capital. Simultaneamente, outra organização sindical britânica, a International Federation of Transport Workers, levou a cabo diversas atividades para contrabalançar o crescente ativismo de dirigentes sindicais oriundos dos países do Leste em Portugal, incluindo conferências destinadas a «abrir os olhos aos sindicalistas portugueses sobre os perigos da manipulação comunista»21.
A resposta britânica face à radicalização da mudança política
Em julho de 1974, a embaixada britânica em Lisboa enviou informações acerca da degradação notável do panorama sociopolítico em Portugal depois da renúncia do primeiro-ministro Adelino da Palma Carlos. A tensão política e a agitação social aumentaram nos meses seguintes até alcançarem, nas palavras de N. Trench, «condições muito próximas da anarquia»22, que resultaram na demissão do Presidente Spínola a 30 de setembro. Na opinião do embaixador britânico, o fracasso de Spínola na sua tentativa de restabelecer a disciplina social e a autoridade política significava a «vitória total da extrema-esquerda» e uma ameaça séria à transição para a democracia em Portugal23. Perante esta evolução preocupante dos acontecimentos, o Subsecretariado Permanente para os Negócios Estrangeiros do FCO reuniu-se em finais de outubro com o objetivo de abordar a situação em Portugal. Nesta reunião ficou decidido que a contribuição britânica para a estabilização política de Portugal deveria ter uma dimensão dupla: «positivamente, fomentar o desenvolvimento de instituições democráticas saudáveis […] alinhadas firmemente com o Ocidente» e «negativamente, prevenir que Portugal caia na esfera de influência soviética»24. A diplomacia britânica entendia que para alcançar a «instauração segura de uma democracia pluralista em Portugal» era preciso fortalecer os «partidos que correspondam em linhas gerais aos do nosso Parlamento», através de programas e visitas que facilitassem «o seu acesso à experiência organizativa dos partidos [britânicos] e reforçassem o seu estatuto internacional»25. Assim, ainda que a ajuda trabalhista continuasse a centrar-se no PS, a grande debilidade de outras forças moderadas do centro e da direita levou o Governo britânico a alargar o seu apoio a estas organizações, em especial ao Centro Democrático Social (CDS), uma força de tendência conservadora, cuja existência tinha sido questionada depois da queda de Spínola.
No outono de 1974, Londres aceitou o pedido do CDS para que alguns dos seus líderes visitassem a Grã-Bretanha com o objetivo de consolidar as suas «ligações no estrangeiro, presumivelmente sobretudo com o Partido Conservador»26. Esperava-se que uma relação mais estreita com os conservadores britânicos fortalecesse as credenciais democráticas e a legitimidade política do CDS, aumentando assim a capacidade deste partido de contribuir para a estabilização da situação interna e exercer uma função moderadora no espectro ideológico do centro-direita. Antes de terminar o ano, o presidente do CDS, Diogo Freitas do Amaral, e outros dirigentes do partido visitaram a Grã-Bretanha, sob a tutela do Partido Conservador britânico. Posteriormente, Freitas do Amaral regressou à Grã-Bretanha como convidado da Federação de Estudantes Conservadores para falar na conferência conservadora em Blackpool, onde manifestou a sua gratidão pela «ajuda e assistência que os conservadores britânicos haviam prestado ao seu partido»27. Também se realizaram visitas de lideranças conservadoras britânicas a Portugal para identificar «grupos e forças em Portugal que o Partido Conservador poderia guiar e ajudar no processo de democratização da era pós-Caetano»28. O FCO tentou também estabelecer contactos e relações com forças moderadas e liberais, ainda que com pouco êxito29.
A radicalização do processo revolucionário em Portugal colocou em alerta os membros da NATO, num contexto de crescente destabilização do flanco sul da Aliança resultante do aumento da tensão em Chipre, da queda do «regime dos coronéis» na Grécia, da popularidade dos partidos comunistas em França e em Itália, do aumento da presença naval soviética no Mediterrâneo e do enfraquecimento da ditadura franquista em Espanha30. Ao contrário de outros membros da organização, o Governo britânico reagiu com tranquilidade face ao crescente domínio da esquerda comunista sobre o processo de mudança política em Portugal. A reunião do Subsecretariado Permanente, já mencionada, chegou à conclusão de que «a situação era confusa e turva», mas que «seria desacertado e contraproducente considerar Portugal uma causa perdida»31. Defendeu-se que, tendo em conta o colapso da economia portuguesa, uma rutura dos laços entre este país e o «Mundo Livre» seria aproveitada pela União Soviética para oferecer ajuda financeira e aumentar a sua presença em Lisboa. A diplomacia britânica considerava que o caos económico em que se encontrava Portugal convertia a ajuda económica num meio eficaz de persuasão para reorientar o rumo da revolução. Segundo David Thomas, director do South West European Department, tornava-se necessário
«dar ao governo português o benefício da dúvida, respondendo tão positivamente quanto possível aos seus pedidos de cooperação e assistência e demonstrando confiança neles, com o objetivo de aumentar desta forma a capacidade britânica de influir sobre as suas ações»32.
Desta forma, o Governo britânico decidiu oferecer ajuda técnica e económica a Portugal. Embora este compromisso tenha colocado em evidência a fraqueza económica da intervenção externa britânica e gerado atritos entre vários ministérios33.
Apesar destas limitações e desavenças, o ministro Callaghan conseguiu apresentar um plano de assistência técnica na sua visita a Portugal no início de 1975. Durante a viagem a Lisboa, Callaghan reuniu-se com membros do Governo português, a quem ofereceu a referida ajuda como «demonstração prática da nossa amizade, apoio e confiança» em Portugal e no seu «progresso em direção a uma democracia estável e pluralista»34. Durante a primavera e o verão de 1975 foram levadas a cabo várias visitas e reuniões entre comissões e especialistas de ambos os países para acertar as linhas mestras do programa de cooperação técnica. Em resultado destes encontros, ficou decidido que as questões prioritárias seriam a saúde pública, a formação empresarial, a construção de estradas, a poluição, as pescas, o planeamento urbano e os recursos naturais renováveis. Ainda que os ingleses se esforçassem em enfatizar a contribuição do plano para o desenvolvimento económico e social de Portugal, a frágil situação económica da Grã-Bretanha levou a uma diminuição notável deste plano, que ficou reduzido a «proporções modestas»35. Esta situação colocou em relevo as dificuldades da Grã-Bretanha em alcançar o nível de ajuda bilateral prestada por outros aliados como a Alemanha Ocidental e os Estados
Unidos. Para dissimular esta fraqueza e cultivar uma imagem positiva em Portugal, desde meados de 1975 o Governo britânico tornou-se um dos principais defensores da ajuda multilateral a este país através da Comunidade Económica Europeia36.
A Grã-Bretanha, a Revolução Socialista e as eleições constituintes
No dia 15 de março de 1975, a embaixada britânica em Lisboa informou sobre a tentativa de golpe de Estado protagonizada por sectores de direita próximos a Spínola, cujo fracasso fez com que o «regime virasse violentamente para a esquerda»37. O golpe frustrado desencadeou um contragolpe radical, fazendo com que a revolução democrática entrasse na sua fase socialista. A diplomacia inglesa considerava que esta evolução do panorama político aumentava «a possibilidade de que um regime militar de esquerda com apoio comunista empurre a democracia incipiente para fora do seu ninho»38. Na opinião do embaixador Trench, «o novo executivo (o IV Governo Provisório) encabeçado por Vasco Gonçalves estava claramente mais próximo do Leste europeu e do bloco soviético do que os seus antecessores»39.
Os responsáveis britânicos observaram com preocupação como a crescente força do comunismo e da extrema-esquerda ameaçava os interesses comerciais britânicos e a estabilidade da própria NATO. No entanto, a revisão da política em relação a Portugal, realizada pelo FCO alguns dias depois do golpe, não divergiu da linha pragmática seguida até então. Além de apoiar o PS e as forças não comunistas, aconselhava «continuar a fazer amigos entre os dirigentes portugueses e tratar de influir sobre eles enquanto subsistir alguma perspetiva de democracia»40. O FCO defendia que as posturas duras, semelhantes às dos seus aliados norte-americanos e alemães, podiam ter efeitos contraproducentes, antagonizando os governantes portugueses e dando aos soviéticos a oportunidade de «preencher o vácuo à nossa custa»41. Tratava-se, portanto, de atingir um difícil equilíbrio, procurando manter uma interlocução fluida com as autoridades portuguesas sem desmoralizar os grupos moderados. Esta estratégia ambígua incluía ainda «cultivar uma relação positiva» com os setores mais pragmáticos de um MFA que emergia «claramente como a força decisiva em Portugal»42.
Ao contrário do Departamento de Estado norte-americano, o FCO não efetuou uma interpretação dos eventos em Portugal exclusivamente baseada no prisma da Guerra Fria. Em vez disso, as suas análises atribuíram mais importância aos fatores internos do país do que à intervenção externa da União Soviética. No final de março de 1975, o ministro Callaghan destacava que, ainda que Portugal parecesse dirigir-se na direção de um «regime totalitário controlado por comunistas», continuava a existir uma relação de forças fluida na cena política portuguesa43. Ainda que os sectores comunistas e radicais do MFA dirigissem o rumo da revolução, os grupos centristas e progressistas podiam inclinar a balança a seu favor nas eleições para a Assembleia Constituinte, agendadas para 25 de abril de 1975. Do ponto de vista britânico, as eleições tinham um grande potencial para forjar uma nova distribuição do poder político, despojando os comunistas e os seus aliados no MFA de posições importantes no aparelho de Estado e nos meios de comunicação. Os britânicos acreditavam que as eleições ajudariam a substituir a legitimidade revolucionária pela eleitoral, beneficiando aquele que consideravam o ator político com maior apoio entre o eleitorado português, o PS de Soares. Estimava-se que a vitória nas urnas daria a Soares a capacidade política necessária para reorientar a revolução numa direção liberal e ocidental.
A estratégia britânica face às eleições seguiu dois eixos. Em primeiro lugar, o Governo tentou garantir a realização de eleições justas num ambiente não tensionado. Neste sentido, o embaixador Trench transmitiu aos líderes portugueses o interesse britânico na realização de comícios num ambiente «estável e equilibrado» como «passo importante para a consolidação da democracia»44. Em segundo lugar, o pt britânico prestou ao PS - principalmente através da Internacional Socialista - ajuda material, económica e técnica de tipo eleitoral45. Durante a campanha, o Partido Conservador também direcionou ajuda e recursos para o CDS. Alguns meses antes, representantes de ambos os partidos tinham sido convidados a visitar o Reino Unido durante as eleições legislativas de outubro de 1974 para aprender «a mecânica de realizar (e vencer) eleições que podem fortalecer as possibilidades de a democracia prevalecer em Portugal»46.
O sucesso eleitoral das forças moderadas lideradas pelo PS e os resultados modestos dos comunistas foram recebidos com entusiasmo pela diplomacia britânica. O embaixador Trench afirmou que «a magnitude da vitória socialista nas eleições» representava o «primeiro revés de grande importância para os comunistas» desde o fim da ditadura47. No entanto, os comunistas mantiveram a determinação de preservar a sua posição dominante nas instituições civis e militares, levando o país a uma crise política e social aguda. No final de junho de 1975, um relatório da inteligência militar britânica assinalava que a distribuição do poder político em Portugal continuava a ser inversamente proporcional aos resultados eleitorais48. Esta situação desencadeou uma luta intensa entre a esquerda radical e os partidos moderados pelo controlo da revolução.
A política do Governo trabalhista no verão quente de 1975
Durante o verão de 1975 Portugal esteve mergulhado num intenso conflito social que ameaçou desembocar numa guerra civil. Apesar da gravidade da situação, o Governo britânico optou por continuar com a sua atitude pragmática baseada em «manter contacto com os elementos moderados da vida portuguesa e dar-lhes todo o apoio e ânimo legítimos que pudermos»49 e, ao mesmo tempo, cultivar relações construtivas com o V Governo Provisório e com os membros do MFA que «ainda têm mentes bastante abertas»50. Por outras palavras, pretendia-se prosseguir com a ajuda a forças não comunistas «sem parecer que se está a tomar partido contra os militares» e colaborar com os sectores oficiais «sem parecer […] que se está a retirar o apoio aos democratas»51. Todavia, durante esses meses as relações com Portugal atravessaram um momento espinhoso por causa da ocupação, no Alentejo, de várias explorações agrícolas propriedade de ingleses, e da tomada de indústrias de capital britânico. Perante estes acontecimentos, o Governo trabalhista adotou uma postura moderada e cautelosa, a fim de proteger os interesses da comunidade britânica sem alienar os sectores governamentais em Lisboa. Esta prudência rendeu-lhe críticas por parte de organizações patronais e da oposição conservadora no parlamento. Além disso, o carácter possibilista da política de Wilson também mereceu a reprovação da ala esquerda do seu próprio partido, descontente pelo apoio sem reservas ao PS, que era visto como uma organização contrarrevolucionária e alinhada com os Estados Unidos e a NATO52.
Ainda que com reservas, os britânicos juntaram-se à campanha diplomática protagonizada pelos aliados ocidentais durante a primavera e o verão de 1975, que visava evitar o triunfo do comunismo em Portugal. Nos encontros bilaterais realizados durante a Conferência sobre a Segurança e Cooperação na Europa, que ocorreu em Helsínquia em agosto de 1975, o primeiro-ministro Wilson e o ministro Callaghan abordaram a situação interna de Portugal junto das delegações soviética e portuguesa. Nestas conversas, a diplomacia britânica pautou-se por três pontos: pressionar de forma moderada os governantes portugueses para que abandonassem a intenção de instaurar uma ditadura de esquerda no país; oferecer-lhes ajuda económica através da CEE com a condição de que fosse implantada uma democracia pluralista em Portugal; e, finalmente, evitar a interferência soviética nos assuntos internos portugueses a favor dos comunistas53.
No final da conferência em Helsínquia, Wilson e os líderes dos partidos socialistas e social-democratas europeus dirigiram-se a Estocolmo com o objetivo de coordenar esforços para promover uma democracia de estilo ocidental em Portugal. Neste encontro, foi manifestada preocupação com a influência crescente dos partidos comunistas na Europa do Sul, e a consequente ameaça à estabilidade internacional e ao predomínio social-democrata na esquerda euro-ocidental. No contexto da Guerra Fria, o apelo eleitoral das opções eurocomunistas e os efeitos da crise económica de 1973 tornavam urgente uma atuação concertada por parte dos socialistas europeus54. Estes criaram o Comité de Amizade e Solidariedade com a Democracia em Portugal, cujos objetivos se centraram em ajudar o PS e os sectores moderados do MFA como antídoto face à pujança comunista e da extrema-esquerda. As sessões de trabalho começaram no mês seguinte numa reunião realizada em Londres com o beneplácito do Governo trabalhista britânico.
A radicalização política e social sentida em Portugal durante o verão de 1975 dificultou a estratégia de ambiguidade calculada adotada pela diplomacia britânica. A forte polarização tornou cada vez mais difícil a posição possibilista do Governo de Wilson, que teve de mover-se num difícil exercício de equilibrismo até ao início de setembro. Nessa altura, a demissão do general Vasco Gonçalves e a dissolução do V Governo Provisório significaram uma mudança substancial no guião da política portuguesa. O novo primeiro-ministro, o almirante Pinheiro de Azevedo, colocou forças centristas e socialistas moderadas à frente da revolução. No início de outubro, o ministro Callaghan congratulava-se pelo facto de a nomeação do VI Governo Provisório marcar a «primeira mudança de rumo significativa face à tendência anterior de domínio dos comunistas e de outros da extrema-esquerda»55. O ministro dos Negócios Estrangeiros britânico deu as boas-vindas ao novo governo, que oferecia «uma firme esperança de que Portugal alcance um período de maior estabilidade»56. Não obstante, o Governo moderado apenas conseguiu consolidar o seu poder e autoridade depois do golpe militar da extrema-esquerda de 25 de novembro de 1975, cujo fracasso, segundo o FCO, «parece ter sido uma vitória decisiva para as forças da moderação, da ordem pública e da resistência ao comunismo»57. Abria-se assim o caminho decisivo para o estabelecimento de um sistema democrático e pluralista em Portugal.
Conclusões
A derrocada da ditadura portuguesa abriu novas expetativas de mudança política e colonial que convergiam com os interesses externos da Grã-Bretanha na Europa do Sul e na África Austral. Esta convergência permitiu ao Governo de Harold Wilson levar a cabo uma política coerente em relação a Portugal, na qual a defesa do socialismo internacionalista e democrático se alinhava com a salvaguarda dos interesses estratégicos nacionais58. Isso significa que, ao contrário de outros casos na Guerra Fria59, o Governo trabalhista pôde combinar as suas prioridades geopolíticas e a luta contra o comunismo com a promoção da democracia e do socialismo em liberdade. Assim, depois da queda do regime autoritário, a diplomacia britânica procurou fomentar uma transição pacífica para uma democracia parlamentar e uma dissolução rápida e controlada do império português em África. O principal aliado britânico para atingir estes objetivos foi o PS, ainda que o Governo de Wilson tenha igualmente estendido o seu apoio a outras forças moderadas e cultivado relações construtivas com os governantes portugueses, incluindo os sectores menos radicais do MFA.
Durante o período estudado, Portugal passou de protagonista da última revolução socialista no Ocidente a agente de uma transição política bem-sucedida para um sistema democrático de orientação liberal. O Governo britânico contribuiu para este processo, propiciando uma saída estável da crise política aguda em Portugal e fomentando a ancoragem deste país à comunidade ocidental. A diplomacia britânica desempenhou um papel importante na contenção política e social em Portugal, que ajudou a impedir o triunfo do comunismo e permitiu um desfecho da revolução moderado e pluralista. No entanto, a intervenção diplomática britânica em Portugal foi significativamente dificultada por problemas económicos a nível interno, que reduziram a sua capacidade de influência no contexto da nova etapa de consolidação democrática e integração europeia.
Tradução: João Reis Nunes
Fontes primárias
UNITED KINGDOM NATIONAL ARCHIVES (UKNA) - British Council (BW) 52 /26, 52-33; Cabinet and its committees (CAB) 128/56/6; Foreign and Commonwealth Office (fco) 9/2035, 9/2046, 9/2047, 9/2059, 9/2072, 9/2073, 9/2075, 9/2078, 9/2269, 9/2274, 9/2276, 9/2285, 9/2288, 9/2293, 9/2305, 9/2322, 95/1721, 160/175/26.