Não sabemos como a guerra na Ucrânia vai terminar. Tendo em conta o tempo necessário para a revisão e publicação de textos em revistas académicas, até pode ser que haja já alguma iniciativa de paz em curso ou alguma mudança importante na linha da frente quando a edição deste número estiver terminada. O que podemos desde já concluir deste conjunto de textos - submetidos em janeiro de 2025 - é que, na Ucrânia, nem a guerra, nem a paz são fáceis. Também é claro que o seu impacto vai bem para lá das fronteiras desta região, tão relevante do ponto de vista geoestratégico, e por isso frequentemente disputada entre a Rússia e as potências da Europa Central ao longo dos séculos.
Em fevereiro de 2022 houve quem tivesse previsto com grande confiança no espaço público que era mera propaganda sequer equacionar a possibilidade de que a Rússia pudesse levar a cabo uma invasão da Ucrânia desta magnitude. Essas certezas foram desfeitas pela brutal invasão russa, a partir de 24 de fevereiro de 2022, visando anexar território ucraniano e acabar com uma Ucrânia independente na sua política interna e externa. Um de nós deixou claro, semanas antes, em janeiro de 2022, que, tendo em conta os dados então disponíveis, essa invasão russa era uma possibilidade real que devia ser levada a sério:
«Vai haver uma guerra na Ucrânia? Não sabemos […] mas é bem possível, tendo em conta que a Rússia colocou mais de 120 000 militares na fronteira com a Ucrânia. E, como referiu o chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell, as tropas russas não estão lá, no pico do inverno, para “fazer um pic-nic”. Mais, não poderão ficar por lá indefinidamente. É certo que Moscovo nega a intenção de invadir a Ucrânia, mas que dissesse o contrário é que seria de espantar. O que também é certo é que o Kremlin apresentou uma longa lista de exigências, e sabe que muitas delas seriam impossíveis de aceitar. Mais, Putin deixou claro que não considera a Ucrânia um verdadeiro país, e que se não obtiver satisfação, pode tomar medidas “militares”. Ignorar esta ameaça seria irresponsável»1.
Três anos depois seria irresponsável e incompreensível não haver um esforço mais sistemático de reflexão sobre as implicações da guerra mais intensa no continente europeu desde 1945 para o campo das Relações Internacionais. Em particular, importa refletir sobre o seu impacto nos estudos de segurança e defesa, bem como na política global e regional, no futuro do continente europeu e até nas prioridades estratégicas de Portugal.
A guerra de conquista russa contra a Ucrânia representará certamente um marco na história contemporânea. As suas implicações em diferentes dimensões das relações internacionais e da segurança global são o tema central que une os diferentes textos deste dossiê. Claro que vários dos autores que acederam em colaborar neste esforço de reflexão insistem - e bem - que as conclusões a tirar, relativamente a um conflito em curso quando estes textos foram escritos, terão de ser preliminares, e eventualmente sujeitas a revisão em função da evolução futura da guerra ou de novos dados que sobre ela venham a estar disponíveis. Mas adiar reflexões aprofundadas sobre diferentes dimensões deste conflito não seria uma opção séria para uma disciplina que se deseja relevante e, por isso, procura ir além das torres de marfim do meio académico.
É natural, também, que os diferentes textos não coincidam inteiramente nas suas conclusões. Não nos cabe a nós, nem é intenção deste texto, fixá-las aqui antecipada e detalhadamente, mas sim aos autores que convidámos para livremente refletirem sobre este conflito a partir das suas diferentes áreas de trabalho e investigação, bem como aos respetivos leitores. Destacaríamos, muito brevemente, dos textos que irão ler, que nos parece que eles deixam claro que este conflito reformulou e ameaçou alianças, aprofundou divisões globais e colocou em questão a ordem global vigente, como deixam claro os artigos de Carlos Gaspar sobre o final da era da Pax Americana, o de Sónia Sénica sobre o eixo de conveniência entre a China e a Rússia, e o de Pedro Seabra sobre as linhas de tensão no Sul Global. As implicações no campo da segurança internacional serão exploradas por Harry Williams e André Barrinha, que se focam na aparente ausência da dimensão de ciberguerra, bem como por Bruno Cardoso Reis, que olha para esta guerra de conquista como desafiando alguns, mas não todos os padrões e tipologias dos conflitos armados prevalecentes desde a Segunda Guerra Mundial.
Muito fica ainda por esclarecer. Mas é evidente nestes textos a relevância da Guerra da Ucrânia, nomeadamente por ter contribuído para tornar a política global mais perigosa do que em qualquer outra época desde o final da Guerra Fria. Se o seu desfecho vier a consagrar o regresso da guerra de conquista por grandes potências ela poderá representar um ponto de viragem particularmente perigoso para pequenas e médias potências como Portugal e potenciar a maior frequência e intensidade de guerras no futuro. O seu curso e resultado final será especialmente importante para a ordem regional na Europa, o que a torna ainda mais relevante para Portugal. No entanto, esta guerra poderá também influenciar profundamente as relações entre as grandes potências, o prestígio global de democracias pluralistas e ditaduras autocráticas, a formação de blocos nos diversos continentes e algumas normas centrais da ordem internacional liberal desde 1945. Esperamos que este dossiê contribua para uma indispensável discussão mais aprofundada das implicações de uma guerra tão relevante para o futuro das Relações Internacionais.














