INTRODUÇÃO
A imagem corporal tem sido caracterizada por crenças, sentimentos, percepções e comportamentos que as pessoas apresentam em relação ao seu próprio corpo (Grogan, 2017). Pesquisas na área tem direcionado o foco principalmente a aspectos relacionados à aparência física, com menor ênfase na funcionalidade corporal (Alleva et al., 2017). A funcionalidade corporal pode ser entendida como todas as coisas que o corpo pode ou é capaz de fazer, englobando funções relacionadas a (a) capacidades físicas (e. g., flexibilidade), (b) processos internos (e. g., digestão adequada de alimentos), (c) comunicação com outras pessoas (e. g., linguagem corporal), (d) autocuidado (e. g., tomar banho), (e) sentidos e percepções corporais (e. g., sentir-se fisicamente relaxado) e (f) habilidades pessoais (e. g., cantar) (Alleva et al., 2015). De fato, autores têm destacado que a ausência de estudos buscando investigar a apreciação da funcionalidade tem sido uma limitação nos estudos em imagem corporal (Alleva et al., 2017; Cash & Smolak, 2011).
Não obstante, a apreciação da funcionalidade corporal já tem sido estabelecida como um aspecto central da imagem corporal positiva (Halliwell, 2015). Por sua vez, uma avaliação positiva da imagem corporal (até o momento avaliada principalmente por meio do domínio da apreciação corporal) tem sido relacionada a uma menor presença de sinais/sintomas de desordens alimentares (Amaral et al., 2019; Avalos et al., 2005; Tylka & Van Diest, 2013), vergonha e vigilância corporal (Avalos et al., 2005; Tylka & Van Diest, 2013), preocupação corporal (Avalos et al., 2005; Wasylkiw et al., 2012), internalização da aparência ideal (Tylka & Van Diest, 2013), insatisfação corporal (Amaral et al., 2019; Avalos et al., 2005; Junqueira et al., 2019; Swami et al., 2015), drive for muscularity (Benford & Swami, 2014; Swami et al., 2016), ansiedade físico-social (Alcaraz-Ibáñez et al., 2017; Sicilia et al., 2020), ansiedade (Winter et al., 2019) e depressão (Gillen, 2015; Sicilia et al., 2020; Winter et al., 2019); bem como tem apresentado uma associação positiva com a alimentação intuitiva (Avalos & Tylka, 2006; Tylka & Van Diest, 2013), comer atento (Webb et al., 2018), felicidade subjetiva (Swami et al., 2019a; Swami et al., 2015), satisfação com a vida (Alcaraz-Ibáñez et al., 2017; Junqueira et al., 2019; Swami et al., 2019a; Tylka & Van Diest, 2013), otimismo (Avalos et al., 2005; Dalley & Vidal, 2013), autoestima (Amaral et al., 2019; Avalos et al., 2005; Gillen, 2015; Junqueira et al., 2019; Swami et al., 2016; Swami et al., 2008; Tylka & Van Diest, 2013; Wasylkiw et al., 2012), estima corporal (Avalos et al., 2005; Swami et al., 2008) e autocompaixão (Siegel et al., 2020; Wasylkiw et al., 2012).
Até recentemente, autores que visavam avaliar os principais aspectos da apreciação da funcionalidade corporal não contavam com um instrumento ou escala específica. Rompendo com essa limitação e avançando nos estudos na área, Alleva et al. (2017) desenvolveram a Functionality Appreciation Scale (FAS) para uma amostra de mulheres e homens americanos (Estados Unidos da América [EUA]). A FAS é uma escala destinada a avaliar a apreciação da funcionalidade que, segundo conceitualização dos autores, envolve valorizar, respeitar e honrar o corpo pelo que ele é capaz de fazer e ir além da mera percepção ou consciência da funcionalidade corporal (Alleva et al., 2017).
Por meio da Análise Fatorial Exploratória (AFE), seguida da Análise Fatorial Confirmatória (AFC), os autores identificaram uma estrutura unidimensional para a FAS, com apenas 7 itens (Alleva et al., 2017). Adicionalmente, os autores encontraram indícios de validade convergente, através de uma associação positiva da FAS com a apreciação corporal, satisfação com a condição física, gratidão, satisfação com a vida, enfrentamento proativo, autobondade, atenção plena, humanidade comum, autoestima, conceitualização ampla da beleza e flexibilidade da imagem corporal. Foi identificada também uma associação negativa com a avaliação da aparência, auto-objetificação e sintomas de ansiedade e depressão. Em relação à validade de critério, Alleva et al. (2017) destacaram que a apreciação da funcionalidade corporal mostrou-se significativamente relacionada ao comer intuitivo. Ademais, a FAS apresentou adequada consistência interna, alcançando os valores de 0.86 e 0.89 pelo alfa de Cronbach (α) em diferentes amostras e adequada confiabilidade teste-reteste, após intervalo de 3 semanas, com um coeficiente de correlação intraclasse de 0.81 para amostra feminina e 0.74 para amostra masculina. A estrutura unifatorial da FAS, além de indícios de validade convergente, incremental e consistência interna foram replicados em dois estudos posteriores de adaptação/validação da escala (Swami et al., 2019b; Linardon et al., 2020).
Instrumentos que tenham como foco central a apreciação da funcionalidade corporal têm o potencial de permitir uma cobertura mais abrangente da construção positiva da imagem corporal, rompendo com o foco nas qualidades estéticas para se concentrar nas cognições e sentimentos em relação às capacidades corporais, ou seja, no que o corpo pode ou é capaz de fazer (Alleva et al., 2017). De fato, percebe-se uma crescente utilização da FAS no contexto internacional, com diversas populações (Alleva et al., 2020; Soulliard et al., 2019; Soulliard & Vander Wal, 2019; Todd et al., 2019a; 2019b; Todd & Swami, 2020). Nesse sentido, programas de intervenção preventiva que discutem aspectos relacionados à funcionalidade corporal têm sido desenvolvidos para a população brasileira (Almeida et al., 2020; Amaral et al., 2019; Hudson, 2018) e poderiam se beneficiar de uma medida com adequados indicadores psicométricos para avaliar o construto.
Contudo, até o momento, o uso da FAS tem sido limitado a participantes dos EUA (Alleva et al., 2017), Malásia (Swami et al., 2019b) e de nacionalidade não determinada falantes da língua inglesa (Linardon et al., 2020), e não está claro se as propriedades psicométricas do instrumento serão mantidas em outras populações, como é o caso do Brasil. Além da avaliação das propriedades psicométricas da FAS em um novo idioma, a disponibilidade de uma versão em português (Brasil) da medida tem o potencial de contribuir para o desenvolvimento de estudos transculturais em imagem corporal (Swami & Barron, 2019). Portanto, os objetivos do presente estudo foram: (a) realizar a adaptação transcultural e análise de equivalências (semântica, idiomática, conceitual e cultural) da FAS para a língua portuguesa (Brasil); (b) confirmar a estrutura fatorial da FAS quando aplicada à população brasileira, bem como avaliar indícios de validade convergente e a consistência interna da nova medida.
MÉTODO
Trata-se de um estudo quantitativo com corte transversal (Thomas et al., 2012). Destaca-se que foram seguidas as diretrizes teóricas e metodológicas para adaptação transcultural (Beaton et al., 2000), análise de equivalências (Herdman et al., 1998) e propriedades psicométricas (Swami & Barron, 2019) de instrumentos de medida em imagem corporal.
Participantes
A amostra foi composta por jovens estudantes universitários de ambos os sexos matriculados no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), campus Governador Valadares - MG. Os alunos tinham idade entre 18 e 35 anos e concordaram com a participação voluntária, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Destaca-se que os participantes foram informados do anonimato e confidencialidade das respostas.
Com relação ao cálculo amostral para a realização das análises estatísticas, utilizou-se como base a proposta de Hair Jr. et al., (2009), pela qual recomendam a utilização de, no mínimo, 5 sujeitos por parâmetro do modelo a ser estimado. No presente estudo utilizou-se para o cálculo a FAS, escala composta por 14 parâmetros (7 itens e 7 erros associados, com uma estrutura unidimensional). Assim, o tamanho mínimo da amostra estimado foi de 70 participantes.
Instrumentos
Questionário sociodemográfico
O questionário sociodemográfico incluiu perguntas diretas para coletar informações pessoais dos participantes, tais como: sexo, idade, raça/etnia, estatura e peso corporal. Os dois últimos foram utilizados para o cálculo do Índice de Massa Corporal (IMC) dos participantes (OMS, 1995).
Escala de Apreciação da Funcionalidade
A escala de apreciação da funcionalidade (Functionality Appreciation Scale - FAS) tem o objetivo de avaliar os principais aspectos relacionados à apreciação da funcionalidade corporal. A escala possui 7 itens, respondidos em uma escala do tipo Likert de 5 pontos (1 = Discordo totalmente a 5 = Concordo totalmente) (Alleva et al., 2017). Quanto maior a pontuação do indivíduo, que pode variar de 7 a 35 pontos, maior seria o nível de apreciação da funcionalidade corporal.
O desenvolvimento da presente adaptação seguiu os preceitos metodológicos sugeridos por Beaton et al. (2000) para adaptação transcultural, seguindo as etapas de tradução, síntese de tradução, retrotradução, comitê de peritos e pré-teste.
Após concedida permissão de uma das autoras da FAS para a tradução e adaptação transcultural do instrumento, foi dado início à etapa de tradução, que foi realizada por dois tradutores bilíngues, sendo um nativo da língua portuguesa com fluência na língua inglesa, e o outro nativo da língua inglesa com fluência na língua portuguesa. Os tradutores trabalharam de maneira independente para a tradução da escala. As traduções foram, então, comparadas pelos autores do presente estudo, gerando a denominada “síntese de tradução”. Em seguida foi feita a retrotradução, que é um processo de tradução do instrumento de volta para a língua original (inglês) por outros dois tradutores bilíngues de maneira independente.
Um comitê de especialistas composto por dez pesquisadores então se reuniu de forma on-line para propor a versão em língua portuguesa da FAS, elaborando a versão pré-teste do novo instrumento. Todas as versões (FAS original, traduções, versão síntese de tradução, retrotraduções e versão sugerida) foram agrupadas e analisadas item a item. Algumas alterações foram realizadas. Uma nova versão foi sintetizada e enviada por e-mail a 11 professores especialistas para a análise das equivalências do novo instrumento. A análise da opinião dos especialistas demonstrou índice de concordância acima de 80% para todos os itens da escala.
Depois de realizadas as alterações pertinentes, a versão do instrumento foi considerada finalizada para a realização do pré-teste, que foi aplicado em uma pequena amostra de 29 jovens universitários de ambos os sexos, sendo 11 mulheres e 18 homens (média de idade = 21.6; DP = 2.6). A análise do instrumento pela população alvo se destina a estimar o índice de compreensão da versão culturalmente adaptada, verificando possíveis dúvidas relativas aos itens do instrumento. A análise dos resultados do pré-teste apontou que 90% dos participantes demonstraram compreensão satisfatória geral dos itens. Os valores por item variaram entre 93% e 100%. Nenhum participante fez sugestões de modificação para os itens. Dessa forma, a versão pré-teste foi considerada adequada para a etapa de análise das propriedades psicométricas da FAS, sendo aplicada em uma amostra maior de participantes.
Escala de Apreciação do Corpo
A Escala de Apreciação do Corpo-2 (Body Appreciation Scale - BAS-2) é considerada uma medida de imagem corporal positiva, que avalia a apreciação corporal (Tylka & Wood-Barcalow, 2015). Foi desenvolvida por Tylka e Wood-Barcalow (2015), a partir de uma revisão da primeira versão, desenvolvida por Avalos et al. (2005). Foi adaptada para a população brasileira por Junqueira et al. (2019), mantendo a estrutura unidimensional original e apresentando consistência interna (pelo ômega de McDonald [ω]) de 0.91 para a amostra feminina e 0.86 para a amostra masculina, ambos considerados adequados. Apresentou ainda um adequado coeficiente de correlação intraclasse de 0.81 na análise da confiabilidade teste-reteste. A BAS-2 é composta por 10 itens, respondidos em uma escala Likert de 5 pontos (1 = Nunca a 5 = Sempre). O escore total varia de 10 a 50 pontos, e pontuações mais elevadas indicam uma maior apreciação do corpo. No presente estudo, a BAS-2 demonstrou adequada consistência interna, avaliada pelo alfa de Cronbach (α = 0.94).
Escala de Autocompaixão
A Escala de Autocompaixão (Self-Compassion Scale - SCS) tem por objetivo medir os níveis de autocompaixão, sendo desenvolvida por Neff (2003) e adaptada para o Brasil por Souza e Hutz (2016). Manteve-se, na versão brasileira, a estrutura em seis fatores da versão original, a saber, Autobondade, Humanidade Comum, Mindfulness, Superidentificação, Isolamento e Autojulgamento (Souza & Hutz, 2016). O escore total da medida apresentou, na ocasião, adequada consistência interna (α = 0.92). A SCS é composta por 26 itens, que são respondidos em uma escala Likert de 5 pontos (1 = Quase nunca a 5 = Quase sempre). A pontuação final é obtida pela média, que pode variar de 1 a 5 pontos. Uma pontuação entre 1 e 2,5 indicaria um nível baixo de autocompaixão; entre 2,5 e 3,5 indicaria um nível moderado; e entre 3,5 e 5,0 indicaria um alto nível de autocompaixão (Neff, 2003). No presente estudo, a consistência interna da medida se mostrou adequada (α = 0.93).
Escala de Autoestima
A Escala de Autoestima de Rosenberg (Rosenberg Self-Esteem Scale - RSES) é uma escala destinada a avaliar a autoestima global. A escala foi proposta por Rosenberg (1965) e adaptada para a população brasileira por Hutz e Zanon (2011), mantendo a estrutura unidimensional do estudo original e apresentando adequada consistência interna (α = 0.90). A RSES é uma escala composta por 10 itens respondidos em uma escala do tipo Likert de 4 pontos (1 = Discordo totalmente a 4 = Concordo totalmente). A pontuação total pode variar de 10 a 40 pontos. Escores elevados indicariam uma maior autoestima. Na presente amostra, a consistência interna da RSES foi adequada (α = 0.89).
Inventário de Ansiedade Traço-Estado
O Inventário de Ansiedade Traço-Estado (State-Trait Anxiety Inventory - STAI), objetiva avaliar a ansiedade ora como um estado ora como um traço. Foi proposto por Spielberger et al., (1970) e adaptado para o Brasil em uma versão curta por Fioravanti-Bastos et al., (2001). É subdividido em duas escalas: Ansiedade-Estado (STAI-S) e Ansiedade-Traço (STAI-T) (Spielberger et al., 1970). Na população brasileira, a medida apresentou consistência interna (α) de 0.75 na STAI-S e de 0.73 na STAI-T (Fioravanti-Bastos et al., 2001), ambos os valores considerados adequados. O STAI (short-form) possui 12 itens, sendo 6 itens em cada escala. É respondido em uma escala Likert de 4 pontos (1 = Absolutamente não a 4 = Muitíssimo no STAI-S; e 1 = Quase nunca a 4 = Quase sempre no STAI-T). A pontuação final varia de 12 a 48 pontos, e pontuações elevadas indicariam níveis mais elevados de ansiedade. No presente estudo, a consistência interna (α) do STAI mostrou-se adequada (0.89), assim como cada subscala (STAI-S: 0.86 e STAI-T: 0.80).
Inventário de Depressão
O Inventário de Depressão Beck-II (Beck Depression Inventory - BDI-II) objetiva avaliar a intensidade de sintomatologia depressiva. Foi proposto por Beck et al., (1996), como uma adaptação da primeira versão do BDI (Beck et al., 1961). O BDI-II foi adaptado para o Brasil por Finger (2008), demonstrando uma estrutura de 3 fatores (Cognitivo-emocional, Comportamental [somático] e Sensações de perda), apresentando adequada consistência interna (α = 0.89) e também adequada confiabilidade teste-reteste, com um índice de estabilidade temporal (pelo índice de correlação intraclasse) de 0.73. O inventário é composto por 21 itens, tendo cada um 4 alternativas de resposta, que representam o aumento em intensidade da gravidade de determinado comportamento. O escore final varia de 0 a 63 pontos, tendo a seguinte interpretação: escores de até 13 pontos indicariam um nível mínimo de sintomatologia depressiva; entre 14 e 19 pontos indicariam um nível leve; entre 20 a 28 pontos, nível moderado; e a partir de 29 pontos, nível grave (Gorenstein et al., 2011). No presente estudo, a consistência interna do BDI-II mostrou-se adequada (α = 0.94).
Procedimentos
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora (número de parecer: 3.627.114), assim como seguiu todas as diretrizes da Declaração de Helsinque (1964) e da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. O diretor-geral do IFMG foi contatado e autorizou a realização da pesquisa com os estudantes da referida instituição.
Os alunos dos cursos superiores do IFMG foram recrutados por e-mail, recebendo um link para preencher os instrumentos do estudo de forma on-line via plataforma digital Google Forms (https://docs.google.com/forms/u/0/). Tal ferramenta pode facilitar o recrutamento dos participantes e a coleta de dados on-line de maneira confiável.
Em um primeiro momento, os participantes assinaram o TCLE em um formato eletrônico, a seguir responderam os instrumentos de coleta de dados. Destaca-se que não foi oferecida recompensa financeira para a participação na pesquisa. A tabulação dos dados foi realizada de maneira automática.
Análise de dados
A análise estatística foi conduzida no software SPSS (IBM, versão 21.0), acrescido do pacote AMOS (IBM, versão 21.0). Realizou-se teste de normalidade univariada dos dados por meio do teste de Kolmogorov-Smirnov (p > 0.05), assim como por meio dos coeficientes de assimetria (Sk < 3) e curtose (Ku < 8). A normalidade multivariada foi investigada por meio do coeficiente de Mardia (< 5). Nenhuma violação da normalidade foi identificada.
Posteriormente, uma Análise Fatorial Confirmatória (AFC) foi conduzida, a fim de confirmar a estrutura unidimensional do instrumento para população de jovens adultos brasileiros. Assim como sugerido por Tabachnick e Fidell (2013), o método estimador adotado foi o de Máxima Verossimilhança. O ajustamento do modelo foi avaliado pelo Qui-quadrado (χ2), Qui-quadrado dividido pelos graus de liberdade (χ2/gl) e por múltiplos índices de ajustamento: Goodness of Fit Index (GFI), Normalized Fit Index (NFI), Standardized Root Mean Square Residual (SRMR), Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA) e Comparative Fit Index (CFI) (Hu & Bentler, 1999). Os seguintes valores são considerados adequados: χ2 quanto menor melhor (p > 0.05); χ2/gl ≤ 3; GFI e NFI ≥ 0.95; SRMR < 0.08; RMSEA < 0.08 (90% CI; p > 0.05); e CFI ≥ 0.95 (Hu & Bentler, 1999). Os ajustamentos do modelo, quando teoricamente plausíveis, foram realizados através dos índices de modificação de Lagrange, quando superiores a 11 (Kline, 2016).
Estudos têm identificado a associação entre a apreciação da funcionalidade corporal e apreciação corporal (Alleva et al., 2017; Soulliard et al., 2019; Soulliard & Vander Wal, 2019; Swami et al., 2019b; Todd et al., 2019a; 2019b), autocompaixão (Alleva et al., 2017), autoestima (Alleva et al., 2017; Swami et al., 2019b), sintomas ansiosos (Alleva et al., 2017) e depressivos (Alleva et al., 2017; Linardon et al., 2020). Desse modo, para avaliar indícios de validade convergente, os escores da FAS foram correlacionados (Correlação produto-momento de Pearson [r]) aos escores de BAS-2, SCS, RSES, STAI e BDI-II. Correlações acima de 0.10, 0.30 e 0.50 foram consideradas fracas, moderadas e fortes, respectivamente (Cohen, 1988). Assim, espera-se uma correlação significante e positiva entre os escores da FAS e a BAS-2, SCS e RSES, bem como uma correlação significante e negativa com o STAI e BDI-II.
A confiabilidade do novo instrumento e das demais medidas utilizadas foi testada através do cálculo da consistência interna (alfa de Cronbach [α]). Vale ressaltar que, para este parâmetro, valores acima de 0.70 foram considerados adequados (Christmann & Van Aelst, 2006).
RESULTADOS
Participaram do estudo 157 indivíduos, sendo 84 do sexo masculino (53.5%) e 73 do sexo feminino (46.5%). A idade dos indivíduos apresentou média de 23.41 (DP = 4.21). Em relação à raça/etnia, 52.87% se declararam pardos, 35.67% brancos e 11.46% negros. O IMC médio foi de 24.28 (DP = 4.78).
Não foi identificada a ocorrência de dados ausentes, assim como outliers (D 2). A AFC demonstrou um adequado ajustamento do modelo, confirmando a estrutura unifatorial da FAS (Figura 1). Todos os 7 itens apresentaram carga fatorial superior a 0.50, estando de acordo com a recomendação de Kline (2016). Não obstante, adequados índices de ajustamento foram encontrados: χ² (14) = 27.697, p = 0.016; χ²/df = 1.978; GFI = 0.951; NFI = 0.955; SRMR = 0.033; RMSEA = 0.079 (90% IC 0.034-0.122); e CFI = 0.977.
Na presente amostra, a FAS (i.e., apreciação da funcionalidade corporal) apresentou correlação significante e positiva com a BAS-2 (apreciação corporal), SCS (autocompaixão) e RSES (autoestima); demonstrou ainda, uma associação significante e negativa com o STAI (ansiedade) e o BDI-II (depressão) (Tabela 1). Ademais, a consistência interna da FAS para a amostra obtida foi adequada (α = 0.90).
Var | M | DP | FAS | BAS-2 | SCS | RSES | STAI | BDI-II | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
FAS | 7-35 | 28.9 | 5.6 | 1 | |||||
BAS-2 | 10-50 | 35.5 | 9.2 | .773* | 1 | ||||
SCS | 1-5 | 2.9 | 0.8 | .561* | .696* | 1 | |||
RSES | 10-40 | 29.0 | 6.9 | .567* | .731* | .757* | 1 | ||
STAI | 12-48 | 30.3 | 8.4 | -.526* | -.610* | -.725* | -.647* | 1 | |
BDI-II | 0-63 | 16.5 | 12.7 | -.569* | -.666* | -.755* | -.710* | .758* | 1 |
Nota: Var = Variação; M = Média; DP = Desvio Padrão; FAS = Functionality Appreciation Scale; BAS-2 = Body Appreciation Scale-2; SCS = Self-Compassion Scale; RSES = Rosenberg Self-Esteem Scale; STAI = State-Trait Anxiety Inventory; BDI-II = Beck Depression Inventory-II; *p < 0.0001.
DISCUSSÃO
Até recentemente, a disponibilidade de instrumentos destinados à avaliação da imagem corporal positiva negligenciava a apreciação da funcionalidade corporal, restringindo-se ao âmbito da aparência (Alleva et al., 2017). Nesse sentido, autores criaram um instrumento específico para avaliar esse construto, a FAS, que demonstrou adequadas propriedades psicométricas para a língua inglesa (i.e., EUA [Alleva et al., 2017] e Austrália [Linardon et al., 2020]) e o idioma malaio (i.e., Malásia [Swami et al., 2019b]). Sabe-se que a avaliação das propriedades psicométricas de um instrumento, isto é, indícios de validade e confiabilidade, são pilares fundamentais para o método científico e são essenciais para a avaliação correta da imagem corporal, bem como para estratégias de avaliação clínica e epidemiológica. No entanto, as propriedades psicométricas da FAS não haviam sido testadas previamente em amostras latino-americanas, o que procuramos retificar no presente estudo. Nossos resultados sugerem que a FAS é uma escala psicometricamente robusta. Por exemplo, em relação à dimensionalidade dos escores da FAS, confirmou-se uma estrutura unifatorial idêntica aos estudos anteriores (Alleva et al., 2017; Linardon et al., 2020; Swami et al., 2019b). Nossos resultados apoiam a afirmação de Alleva et al. (2017), de que a avaliação da funcionalidade é uma construção unidimensional. Ademais, a escala apresentou adequada validade convergente e consistência interna.
O primeiro objetivo desse artigo foi descrever o processo de adaptação transcultural e análise de equivalências da FAS (Alleva et al., 2017) para o português (Brasil). Seguindo as diretrizes propostas por Beaton et al. (2000) e Herdman et al. (1998), o instrumento se mostrou de fácil tradução e adaptação para jovens brasileiros de ambos os sexos. A descrição das etapas de adaptação transcultural e análise de equivalências são sugeridas por Swami e Barron (2019), pois permite compreender quais as principais diferenças encontradas em relação às peculiaridades de cada contexto cultural sob análise, no caso, a cultura brasileira.
Posteriormente, atendendo ao segundo objetivo, buscou-se avaliar as propriedades psicométricas do instrumento recém-adaptado. Realizou-se então a avaliação da estrutura fatorial da FAS, que confirmou as expectativas de que se mostraria uma estrutura unifatorial, ou seja, todos os 7 itens convergem para a avaliação de um único fator latente, a apreciação da funcionalidade corporal (Alleva et al., 2017).
Para obter indícios de validade convergente, os escores da FAS foram correlacionados a construtos associados, como apreciação corporal, autocompaixão, autoestima, sintomas de ansiedade e depressão. Estudos têm identificado que, assim como a apreciação da funcionalidade corporal, a apreciação corporal e a autoestima são variáveis que contribuem para uma compreensão mais abrangente da imagem corporal positiva (e.g., Guest et al., 2019; O’Dea, 2012; Swami et al., 2020). De fato, estudos anteriores de validação da FAS identificaram uma correlação alta e significante entre essas variáveis (Alleva et al., 2017; Swami et al., 2019b). No presente estudo, essa relação também foi observada. Adicionalmente, Alleva et al. (2017) também encontraram uma correlação significante entre apreciação da funcionalidade corporal e autocompaixão. Nossos resultados corroboram esses achados ao apresentar uma correlação alta e significante entre a FAS e a SCS.
Como hipotetizado, os escores da FAS apresentaram uma correlação negativa e significante com os sintomas ansiosos e depressivos. Esses resultados foram similares aos encontrados no estudo original da medida (Alleva et al., 2017). Gillen (2015) e Winter et al. (2019) encontraram associações semelhantes entre a apreciação corporal e medidas de ansiedade e depressão. Como a apreciação corporal e a apreciação da funcionalidade corporal se mostram altamente relacionadas, tais resultados (ambas associadas de forma inversa e significante com ansiedade e depressão) eram esperados no presente estudo.
A consistência da FAS no presente estudo se mostrou adequada, assim como os demais instrumentos utilizados, o que corrobora a robustez das demais análises realizadas a partir deles. Ainda em relação à consistência interna, nossos resultados são consistentes com estudos anteriores que identificaram valores adequados para amostras de universitários de ambos os sexos (α ≥ 0.70) (e. g., Gillen, 2015; Soulliard et al., 2019).
Embora nossos resultados sejam promissores e demonstrem que a FAS é um instrumento psicometricamente robusto, nosso estudo não está livre de algumas limitações. Primeiro, nós utilizamos instrumentos de autorrelato, que podem não ser a melhor abordagem para avaliar algumas questões, devido ao potencial de apresentarem um alto viés de desejabilidade social pelos respondentes (Morgado et al., 2017). Contudo, essa estratégia tem sido utilizada em diversos estudos nacionais e internacionais, a exemplo dos próprios estudos de validação anteriores da FAS (Alleva et al., 2017; Linardon et al., 2020; Swami et al., 2019b) e muitos dos demais estudos citados neste trabalho. Além disso, adotamos estratégias específicas para reduzir esse problema, como a confidencialidade das respostas.
Segundo, não foi avaliada a confiabilidade teste-reteste da FAS, o que pode ser alvo de trabalhos futuros. Contudo, como supracitado, a escala apresenta indícios iniciais de confiabilidade, por meio da consistência interna, e de validade de construto, por meio da validade convergente.
Terceiro, tal como apontado em Swami et al. (2019), uma outra limitação se refere ao fato de adaptar-se para uma população diferente - no caso brasileira - um instrumento originalmente desenvolvido para falantes da língua inglesa; assim, é possível que aspectos culturais importantes relacionados à funcionalidade corporal, que seriam específicos da população brasileira, deixem de ser contemplados. Ressalta-se, no entanto, que tal constatação não fere o objetivo principal do instrumento, de tentar avaliar a apreciação da funcionalidade corporal de modo generalista. Instrumentos adicionais, que abarquem a avaliação de especificidades culturais, são uma possibilidade para suprir essa lacuna.
CONCLUSÃO
A FAS foi traduzida e adaptada para o português (Brasil), bem como apresentou adequada validade fatorial, convergente e consistência interna para jovens adultos brasileiros de ambos os sexos. Para o melhor do nosso conhecimento, nenhuma pesquisa avaliou de forma abrangente as propriedades psicométricas da FAS em países latino-americanos, como é o caso do Brasil. Esperamos que a disponibilidade dessa medida permita a investigação mais sistemática da apreciação da funcionalidade corporal em jovens universitários brasileiros.
A disponibilidade da versão brasileira da FAS poderá ser útil, assim, para uso em ambientes de pesquisa, clínicos e epidemiológicos. Estudos futuros podem fornecer indícios de validade adicionais, incluindo a ampliação do uso para outras populações, com características sociodemográficas diversas.