INTRODUÇÃO
O atual modelo de Reabilitação estabelece as dimensões de funções e estruturas do corpo, atividades e participação, fatores pessoais e contextuais e centra-se na identificação das barreiras e facilitadores (World Health Organizaton [WHO], 2001). A intervenção psicomotora é um dos apoios reabilitativos oferecidos às pessoas com perturbações do desenvolvimento cujas evidências, ainda escassas, parecem apontar a sua mais-valia com adultos com dificuldades intelectuais e desenvolvimentais (DID). A visão contextualizada da intervenção psicomotora baseia-se na organização hierárquica, relação interdependente e complexificação crescente dos fatores psicomotores (Fonseca, 2010), e foca-se na qualidade da relação da pessoa e o contexto, através da mediação/apoios ajustados, para a funcionalidade e participação social (Santos, 2017). As pessoas com deficiência não devem ser definidas pelo “diagnóstico”.
A DID é caracterizada pela concomitância de limitações cognitivas e adaptativas dois desvios-padrão abaixo da média, expressas nas competências concetuais, práticas e sociais e que se manifesta antes dos 22 anos (Schalock, Luckasson, & Tassé, 2021). A encefalopatia crónica não progressiva da infância ou paralisia cerebral (PC) é uma perturbação no desenvolvimento postural e controlo motor, com distúrbios sensório-percetivos, cognitivos, de comunicação e comportamento cuja severidade depende do tipo, extensão local da lesão (Colver, Fairhurst & Pharoach, 2014), influenciando a qualidade de desempenho motor. As pessoas com DID tendem a apresentar um compromisso cognitivo e sensoriomotor, ao nível do raciocínio e resolução de problemas complexos (Schalock et al., 2021), dadas as dificuldades no processamento da informação e orientação para a tarefa. O desempenho motor é menos preciso, controlado e mais lento, traduzindo-se em dispraxias, necessitando de mais tempo para as tarefas e sua organização (Santos & Morato, 2012).
As alterações tónicas na DID (e.g.: hipotonia) e PC (e.g.: espasticidade), refletem-se no menor controlo postural (Rosenbaum et al., 2007) e equilíbrio estático e dinâmico (Vjuik, Hartman, Scherder, & Visscher, 2010; Winter, 2007), condicionando a qualidade da marcha (mais instável), o desenvolvimento dos esquemas percetivo-cognitivos (Hinchcliffe, 2007) e a exploração do envolvimento (Vrijmoeth, Monbaliu, Lagast, & Prinzie, 2011; Winter, 2007). A maior resistência ao alongamento e fraqueza muscular (Eck et al, 2008) repercutem-se na funcionalidade (Rosenbaum et al., 2007).
As dificuldades na posição unipodal, no equilíbrio em bipedia, apanhar objetos do chão, saltos, são dificuldades das pessoas com DID (Enkelaar, Smulders, Lantman-de Valk, Weerdesteyn, & Geurts, 2013) e das crianças com PC, que tendem a demonstrar limitações mesmo se sentados, com maior desequilíbrio, agravado pelos desvios no controlo cervical, precisando de mais tempo para a aquisição dos marcos motores (Winter, 2007). A dificuldade em distinguir direita/esquerda e a dissociação lateral (Santos, 2014) afetam a lateralização e a simetria bilateral (Vjuik et al., 2010), tendendo-se para a indiferenciação manual por parte das pessoas com DID, com maior lentidão e menor precisão nas tarefas que impliquem uma mão dominante.
As crianças com DID e/ou PC apresentam um desempenho práxico inferior (Carvalho et al., 2017; Wuang, Wang, Huang, & Sy, 2008) na coordenação oculomanual, destreza manual, manipulação e controlo de objetos (Vjuik et al., 2010), apesar de melhores resultados na praxia global (Wuang et al., 2008). As dispraxias traduzem-se em limitações funcionais nas atividades diárias (e.g.: vestir), influenciadas pelo diálogo tónico menos maturo e pela indiferenciação na lateralização, interferindo com as aquisições académicas e funcionais (Rothstein & Beltrame, 2013). Estas dificuldades comprometem o processo ensino-aprendizagem, desde a seleção da informação relevante, até ao seu processamento e resposta funcional e adaptada (Hinchcliffe, 2007).
A estimulação das competências psicomotoras, foco da intervenção psicomotora, visa o comportamento adaptativo e a qualidade de vida (QdV). O comportamento adaptativo envolve o conjunto de competências para desempenhar atividades ao nível do funcionamento independente e responsabilidade social, de acordo com os valores socioculturais e faixa etária (Santos & Morato, 2012). As crianças com DID e PC tendem a ser menos funcionais e autónomas do que os pares típicos, ao nível de necessidades básicas como alimentação, higiene, vestuário, mobilidade que tendem a ser concretizadas por terceiros (Lohaugen et al., 2018; Santos, 2014). Nas crianças com PC as dificuldades na alimentação e deglutição, limitações no controlo respiratório, refluxo gástrico e tendência para a obstipação (Rosenbaum et al., 2007) exigem mais apoios. A atividade económica, números/tempo, atividades domésticas e pré-profissionais e responsabilidade são pouco estimuladas nestes subgrupos (Lohaugen et al., 2018; Santos, 2017), com terceiros a assumi-las baseadas na institucionalização, superproteção, subvalorização das capacidades, menos oportunidades e de menor qualidade (Santos & Gomes, 2016).
As crianças com DID apresentam dificuldades na comunicação verbal - com tendência pela via não-verbal, e nas atividades de conteúdo académico (Santos, 2014). O discurso quando existente é pouco percetível, com frases simples e vocabulário pobre, com restrições no seu transfer para o dia-a-dia e na socialização (Santos & Morato, 2012). A tendência para a passividade, menor iniciativa e comportamentos sociais desajustados é reportada (Santos, 2014). As crianças com PC tendem a limitações ao nível da linguagem expressiva (e.g.: produção de palavras e discurso lentificado), dadas as limitações oromotoras e respiratórias e à falta de estimulação e modelos linguísticos, e para a não-verbal afetada pela descoordenação e rigidez dos movimentos (Sigudardottir & Vik, 2011). Estas dificuldades restringem a regulação comportamental e participação (Lohaugen et al., 2018).
No entanto, há que referir que estas crianças são gentis, afetivas, com sentido de humor, reconhecem regras sociais simples (e.g.: esperar pela sua vez), têm consideração pelos mais próximos, e esforçam-se por agir de acordo com as instruções dadas. Deve ser a própria pessoa a expressar/valorizar o que pretende (Schalock & Verdugo, 2002), de acordo com os valores culturais, objetivos e expectativas próprios (WHOQOL Group, 1994). O atual modelo de QdV na DID envolve oito domínios organizados em três fatores (Schalock & Verdugo, 2002; Simões, Santos, & Biscaia, 2016): desenvolvimento pessoal e autodeterminação (fator independência), relações interpessoais, direitos e inclusão social (fator participação social) e bem-estar emocional, material e físico, autodeterminação (fator bem-estar). Davis et al., (2017) apontam domínios semelhantes de QdV de crianças com PC. Apesar do diagnóstico não estar associado a menor QdV, as pessoas com DID tendem a índices inferiores do que os pares típicos (Simões & Santos, 2018). Os melhores índices de QdV de crianças com dificuldades estão associados a idades mais jovens, melhor comportamento adaptativo, menores comportamentos desajustados, menor stress psicológico parental e maior satisfação com a educação (Ncube, Perry, & Weiss, 2018).
A nível nacional, constata-se a aposta na investigação sobre como a intervenção psicomotora pode atuar como um apoio com adultos com DID (Santos, 2017) e da PC (Pereira & Santos, 2019) ao nível adaptativo (Santos, 2017), QdV (Freitas & Santos, 2018; Simões & Santos, 2018), indiciando melhorias em todas situações, apesar da necessidade da sua validação em outros contextos geográficos e com distintas faixas etárias (Santos, 2017). Em Moçambique é emergente o investimento em programas/serviços para crianças e jovens com deficiência (McKenzie, McConkey, & Adnams, 2013), dadas as elevadas taxas de deficiência juvenil (i.e.: 2,1 milhões, 2 a 6%) associadas à carência e pobreza extrema da população moçambicana (UNICEF, 2014). A funcionalidade é mais valorizada do que o desempenho académico (Zhang, 2001). É na necessidade de aprofundar a investigação para a validação de boas práticas psicomotoras com as mais variadas populações e no desenvolvimento de “estudos transversais” em contextos socioculturais diferentes, que o objetivo deste artigo se prende com a análise do contributo da intervenção psicomotora, como um dos apoios para a melhoria do comportamento adaptativo e dos fatores psicomotores de crianças com DID e/ou PC para uma vida com mais qualidade.
MÉTODO
Este estudo experimental caracteriza-se pela sua abordagem quantitativa e longitudinal, com design pré/pós intervenção com objetivo de comparar a evolução do desempenho dos participantes, em três momentos diferentes, e perceber o eventual contributo da intervenção psicomotora ao nível do comportamento adaptativo, competências psicomotoras e QdV.
Amostra
A amostra, de conveniência, foi constituída por seis participantes moçambicanos, entre os seis e 13 anos, dois do género feminino e quatro do género masculino, com o diagnóstico de PC (n= 2; sem défice cognitivo) e de DID (n= 4) no seu processo clínico, e a frequentar uma instituição, durante o dia, de um dos bairros periféricos da cidade de Maputo (Moçambique), há mais de dois anos. Em situação de institucionalização, nenhum dos participantes frequentava o ensino regular/especial, nem nunca estiveram matriculados em contexto escolar. Apenas duas crianças com PC usufruíam do apoio de Fisioterapia uma a duas vezes por semana, e uma delas utilizava a carrinha escolar, para deslocação até ao Centro. Os restantes participantes iam e vinham de transporte público acompanhadas pelos respetivos cuidadores/familiares. As famílias que participam no estudo são caracterizadas como sendo numerosas (6 a 10/agregado) e de estatuto socioeconómico baixo, sendo a anuidade paga consoante as possibilidades financeiras de cada família.
Instrumentos
A Escala de Comportamento Adaptativo - Versão Portuguesa (ECAP) avalia a capacidade de adaptação da pessoa com (e sem) DID, entre os 6 e os 60 anos, às exigências diárias do contexto (Santos, Morato, & Luckasson, 2014) e está dividida em duas partes: a primeira avalia as competências de independência e funcionalidade em dez domínios: Autonomia, Desenvolvimento Físico, Atividade Económica, Números e Tempo, Desenvolvimento da Linguagem, Atividade Doméstica, Atividade Pré-Profisisonal, Personalidade, Responsabilidade e Socialização, e a segunda parte dedica-se aos desajustamentos: Comportamento Social, Conformidade, Merecedor de Confiança, Comportamento Estereotipado e Hiperativo, Comportamento Sexual, Comportamento Auto-abusivo, Ajustamento Social e Comportamento Interpessoal Perturbado (Santos et al., 2014). Na primeira parte os itens são avaliados ou assinalando o valor que corresponde ao nível de desempenho do avaliado, ou através de respostas dicotómicas Sim/Não (1 e 0 pontos), consoante faz ou não faz a tarefa aplicadas nas situações em que o indivíduo realiza ou não a tarefa, respetivamente (Santos et al., 2014). A análise dos resultados pode ser qualitativa ou quantitativa, por itens, por domínios ou por fatores, e os autores apenas aconselham a análise quantitativa para efeitos de diagnóstico.
As propriedades psicométricas da ECAP foram analisadas e constatou-se a (Santos et al., 2014): validade de conteúdo - todos os itens foram considerados relevantes e representativos; fiabilidade pela análise da consistência interna e da estabilidade temporal (teste-reteste) com valores a variar entre 0,79 (Comportamento Auto-Abusivo) e 0,97 (Autonomia), e .46 (atividade económica) e 0,81 (autonomia), respetivamente; e validade de constructo com os coeficientes de correlação de Pearson a apontarem relações fracas a moderadas entre os domínios da parte I e fracas nos da parte II, e pela análise fatorial exploratória que indiciou a sua multidimensionalidade (Santos et al., 2014).
A Escala Pessoal de Resultados versão crianças e jovens (EPR-CJ) envolve, tal como a original para adultos, a avaliação de medidas objetivas e subjetivas, para a recolha de informação sobre as expetativas e objetivos do indivíduo (Simões, 2018). Esta versão está organizada de acordo com o modelo conceptual de QdV (Schalock & Verdugo, 2002). A EPR-CJ organiza-se em duas partes: uma de autorrelato (questionário pessoal, respondido pela criança/jovem) e outra de observação direta respondida por terceiros (e.g.: familiares, terapeutas, professores) que conhecem a pessoa há pelo menos três meses e em mais do que um contexto. Cada domínio é constituído por seis itens, num total de 48, cotados de acordo com uma escala tipo-Likert com três níveis de resposta entre um e três, cuja soma proporciona a pontuação bruta de cada domínio, que ao serem somadas permite a obtenção dos resultados dos fatores e do índice global (Simões, 2018). No presente estudo apenas foi aplicada a versão dos prestadores de cuidados, dadas as dificuldades na compreensão e capacidade de comunicação dos participantes.
A Bateria Psicomotora (BPM) é um dos instrumentos utilizados pelos psicomotricistas a nível nacional na observação e avaliação do perfil psicomotor intra-individual de crianças entre os quatro e os 12 anos, constituída por um conjunto de tarefas que avaliam os sete fatores: tonicidade, equilibração, lateralização, noção de corpo, estruturação espácio-temporal, praxia global e praxia fina (Fonseca, 2010). De acordo com o autor, cada item é cotado de acordo com a qualidade de desempenho e os seus valores variam entre um (perfil apráxico) e quatro pontos (perfil hiperpráxico). A soma dos resultados obtidos em cada tarefa é associada a um tipo de perfil psicomotor: superior (27-28 pontos), bom (22 a 26 pontos), normal (14 a 21 pontos), dispráxico (9 a 13 pontos), apráxico (7-8 pontos). Apenas este último indicia a existência de dificuldades de aprendizagem (Fonseca, 2010).
Procedimentos
Os procedimentos éticos foram assegurados e de acordo com a Declaração de Helsínquia: contacto inicial com a direção do centro, distribuição do consentimento informado aos prestadores de cuidados dos participantes, com a explicitação dos objetivos e etapas, garantia de confidencialidade e anonimato dos participantes, e a possibilidade de desistência do estudo a qualquer momento.
Após a recolha dos documentos assinados aplicaram-se os instrumentos em local e horário de acordo com os respetivos protocolos e a disponibilidade dos respondentes: a ECAP e a EPR-CJ foram aplicadas sob a forma de entrevista aos prestadores de cuidados e/ou às próprias crianças/jovens, e a BPM diretamente aos avaliados, no Centro. Os resultados da avaliação inicial permitiram o estabelecimento de um programa psicomotor. No final do programa os instrumentos foram re-aplicados, nas mesmas condições anteriores, sendo aplicados ainda uma última vez, um mês após o término do programa, para se analisar a capacidade de retenção das competências. A aplicação de cada instrumento variou entre 60 a 90minutos.
Para o tratamento estatístico utilizou-se o programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 21.0.
Programa de intervenção psicomotora
O Centro onde decorreu o estudo, situa-se em Maputo, a 14 km do centro da cidade, e foi fundado em 1998 para a prestação de cuidados especializados, sendo que em 2002 estende a sua atuação à reabilitação infantil, a cerca de 100 utentes (crianças, jovens e adultos) com DID, dificuldades motoras, outras doenças (e.g.: HIV, subnutrição) e/ou em carência económica (Irmãs Hospitaleiras, 2019). O centro fornece vários serviços como a psicomotricidade em regime de voluntariado (Irmãs Hospitaleiras, 2019).
Inicialmente, foram identificadas as necessidades de apoio e interesses individuais e em seguida definiram-se os objetivos e planificou-se o programa. Os resultados da avaliação baseline permitiram: determinar o perfil psicomotor e adaptativo dos participantes e identificar os objetivos de acordo com as expectativas dos próprios e prestadores de cuidados, idade cronológica e valores socioculturais, para o ajustamento do processo. O momento de avaliação considerou sempre: fontes e componentes diversificadas; sequência e continuidade do processo; estudo da relação-interação com o psicomotricista; interpretação e compreensão do desenvolvimento individual, padrão e nível de gestão de experiências e capacidades funcionais; e identificação de aquisições.
O programa de quatro meses, decorreu nas instalações do centro em contexto de sala e ginásio, com sessões bissemanais de 45 min, individualmente ou a pares, consoante o objetivo específico da sessão; e uma vez em grupo, numa perspetiva de complexificação crescente e transfer para a vida diária. Paralelamente foi elaborado um programa de trabalho com colaboradores e pais, para a partilha de estratégias de intervenção, especificação no tipo de apoios, objetivos (curto e médio prazo) e desenvolvimento de atividades específicas. Os planos de intervenção foram pensados mensalmente com reajustes diários, adaptando-se às vivências dos participantes e do contexto. Para cada sessão foi elaborado um plano de sessão, seguido do respetivo relatório de observações.
O programa teve início no mês de fevereiro com atividades simples e lúdicas e de acordo com as necessidades reais, incidindo nas competências psicomotoras e funcionais. O psicomotricista adaptou-se ao discurso, ao ritmo, vivências dos intervenientes e exigências da realidade moçambicana. Rotinas, instruções curtas e simples com demonstração, apoio individualizado, reforços corretivos e positivos (Santos, 2018), espaço contentor e de confiança, clima lúdico, com recurso à música e/ou material diverso e atrativo, foram algumas das estratégias utilizadas.
ANÁLISE ESTATÍSTICA
O tratamento estatístico iniciou-se com a análise da normalidade da distribuição, cujos valores (p> 0,05) associados ao número reduzido da amostra levou à opção pelas técnicas não paramétricas, e do nível de significância de ≤ 0,05. Os valores da estatística descritiva (médias e desvios-padrão), do teste de Wilcoxon, para a análise comparativa ao longo do tempo, e do tamanho dos efeitos são apresentados: efeito pequeno seria inferior a 0,50, médio entre 0,50 e 0,80 e elevado se superior a 0,80 (Dancey & Reid, 2019).
RESULTADOS
Nas tabelas são apresentados os resultados em cada momento da avaliação e os valores do teste Wilcoxon ao nível do comportamento adaptativo (Tabela 1), competências psicomotoras (Tabela 2) e QdV (Tabela 3).
Domínios parte I ECAP | AvB | AvF | AvB vs. AvF | AvR | AvF vs. AvR |
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M± sd | M± sd | p | M± sd | p | |
Primeira parte | |||||
Autonomia | 64,33± 21,81 | 71,33± 24,65 | 0,03 (r= 0.98) | 69,67± 23,45 | 0,06 |
Desenvolvimento físico | 23,50± 8,69 | 26,17± 9,87 | 0,03 (r= 0,98) | 25,33± 8,89 | 0,13 |
Atividade econômica | 3,0± 2,68 | 3,33± 2,58 | 0,16 | 3,0± 2,68 | 0,16 |
Desenvolvimento linguagem | 19,5± 4,72 | 20,17± 4,75 | 0,10 | 19,83± 4,71 | 0,32 |
Números/tempo | 4,33± 1,21 | 5,0± 0,89 | 0,10 | 4,33± 1,37 | 0,10 |
Atividade doméstica | 9,83± 7,14 | 10,17± 7,31 | 0,15 | 10,33± 7,37 | 0,32 |
Atividade pré-profissional | 4,50± 1,64 | 5,66± 1,97 | 0,04 (r= 0,86) | 4,67± 1,37 | 0,06 |
Personalidade | 8,67± 3,08 | 11,17± 3,43 | 0,03 (r= 0,99) | 10,83± 3,19 | 0,16 |
Responsabilidade | 7,17± 1,47 | 8,0± 1,26 | 0,06 | 7,67± 1,03 | 0,17 |
Socialização | 20,5± 2,74 | 22,0± 2,76 | 0,04 (r= 0,85) | 21,50± 2,35 | 0,08 |
Domínios parte II ECAP | |||||
Comportamento social | 8,33± 5,82 | 6,33± 4,76 | 0,07 | 7,17± 5,64 | 0,10 |
Conformidade | 8,0± 4,86 | 4,83± 2,64 | 0,04 (r= 0,83) | 6,33± 3,83 | 0,06 |
Merece confiança | 5,0± 3,80 | 4,50± 3,62 | 0,08 | 4,50± 3,67 | 1 |
Comportamento estereotipado e hiperativo | 9,83± 4,17 | 9,0± 3,29 | 0,10 | 9,17± 4,40 | 0,71 |
Comportamento sexual | 2,17± 1,94 | 1,50± 1,64 | 0,04 (r= 0,80) | 1,67± 1,97 | 0,66 |
Comportamento auto-abusivo | 5,67± 2,58 | 5,33± 2,25 | 0,16 | 5,67± 2,94 | 0,.32 |
Ajustamento social | 4,83± 3,13 | 4,50± 2,95 | 0,32 | 5,17± 3,97 | 0,18 |
Comportamento interpessoal perturbado | 4,83± 2,23 | 4,33± 1,97 | 0,18 | 5,00± 2,00 | 0,04 (r= 0,80) |
p<0,001; AvB: avaliação baseline; AvF: avaliação final; AvR: avaliação retenção; ECAP: Escala de Comportamento Adaptativo - Versão Portuguesa; M: média; sd: desvio padrão.
BPM | AvB | AvF | AvB vs. AvF | AvR | AvF vs. AvR |
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M± sd | M± sd | p | M± sd | p | |
Tonicidade | 17,33± 5,35 | 18,67± 4,59 | 0,06 | 18,33± 4,46 | 0,32 |
Equilibração | 23,67± 8,52 | 26,0± 9,01 | 0,14 | 25,0± 8,20 | 0,08 |
Lateralização | 10,5± 1,87 | 10,5± 1,87 | 1 | 10,5± 1,87 | 1 |
Noção do corpo | 8,5± 1,76 | 10,17± 1,47 | 0,02 (r= 0,68) | 9,83± 1,6 | 0,16 |
Estruturação espaço-temporal | 10,83± 3,13 | 11,67± 3,87 | 0,10 | 11,00± 2,28 | 0,18 |
Praxia global | 10,83± 3,76 | 11,83± 3,55 | 0,03 (r= 0,90) | 11,50± 3,27 | 0,16 |
Praxia fina | 4,17± 1,47 | 4,67± 1,21 | 0,18 | 4,33± 1,03 | 0,16 |
p<0,001; Av: avaliação inicial; AvF: avaliação final; AvR: avaliação retenção; BPM: bateria psicomotora, M: média; sd: desvio padrão.
Domínios | AvB | AvF | AvB vs. AvF | AvR | AvF vs. AvR |
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M± sd | M± sd | p | M± sd | p | |
Desenvolvimento pessoal | 12,17± 2,32 | 13,50± 1,87 | 0,11 | 13,17± 1,47 | 0,16 |
Auto-determinação | 13,33± 3,27 | 14,50± 1,87 | 0,11 | 14,50± 1,87 | 1 |
Relações interpessoais | 17,83± 0,41 | 17,83± 0,41 | 1 | 17,83± 0,41 | 1 |
Inclusão social | 14,00± 2,76 | 15,17± 2,14 | 0,03 (r= 0,90) | 15,00± 2,28 | 0,32 |
Direitos | 15,00± 2,19 | 15,50± 1,87 | 0,08 | 14,50± 1,38 | 0,06 |
Bem-estar emocional | 17,00± 0,89 | 17,33± 0,82 | 0,16 | 17,17± 0,75 | 0,32 |
Bem-estar físico | 18,83± 1,83 | 19,67± 1,75 | 0,06 | 18,67± 1,75 | 0,01 (r= 0,99) |
Bem-estar material | 11,67± 2,25 | 12,00± 1,79 | 0,16 | 12,00± 1,79 | 1 |
QdV índice global | 119,83± 11,29 | 125,50± 8,50 | 0,03 (r= 0,97) | 122,83± 7,99 | 0,02 (r= 0,99) |
p<0,001; Av: avaliação inicial; AvF: avaliação final; AvR: avaliação retenção; M: média; sd: desvio padrão; QdV: qualidade de vida.
De acordo com os resultados da avaliação adaptativa observa-se, na generalidade, a melhoria dos valores médios nas duas partes da ECAP, nos dois primeiros momentos de avaliação (inicial e final) indicando evoluções (i.e.: aumento das competências e diminuição dos comportamentos desajustados), apesar de não se traduzirem por diferenças significativas entre todos os domínios nos diferentes momentos. Estas diferenças, cujos tamanhos dos efeitos são fortes (r> 0,80), sentem-se nos domínios autonomia, desenvolvimento físico, atividade pré-profissional, personalidade, socialização, conformidade e comportamento sexual. Na avaliação após um mês sem programa, constata-se a tendência a uma ligeira redução dos valores médios, exceção nos domínios de Atividade Doméstica e Merece Confiança, com o último domínio Comportamento Interpessoal Perturbado a apresentar diferenças significativas com indicadores de menor controlo.
Ao nível das competências psicomotoras, os participantes tendem a apresentar um perfil (médio) apráxico ou dispráxico. As únicas diferenças significativas, com efeitos elevados, entre o momento inicial e final de avaliação situam-se nos domínios noção do corpo e praxia global, com efeitos significativos (> 0,68) apesar da tendência para melhores valores após a intervenção que apesar do ligeiro decréscimo na avaliação da retenção, parecem ter ficado adquiridas.
Os valores médios na avaliação da QdV parecem ser expectáveis com os domínios mais cotados: relações interpessoais, bem-estar emocional e bem-estar físico. A intervenção psicomotora parece ter influenciado o domínio da inclusão social, com eventual repercussão no índice global. A avaliação um mês após a intervenção indicia o decréscimo nos domínios direitos e bem-estar físico cujos valores médios inclusive ficaram inferiores aos iniciais.
DISCUSSÃO
Este artigo pretende analisar a influência que um programa de intervenção psicomotora centrado nas competências psicomotoras e adaptativas de crianças e jovens com perturbações do desenvolvimento detém na QdV das mesmas. Este estudo é inovador pois: aborda o tema da QdV ainda pouco explorado ao nível das populações infantis e juvenis com perturbações do desenvolvimento (Ncube et al., 2018), sendo que a maioria dos estudos se centram em adultos (Santos, 2017); pelo seu contexto cultural - Moçambique onde ainda se verifica a escassez de estudos desta natureza e da necessidade de mudar atitudes face à deficiência e à participação social das pessoas com deficiência (McKenzie et al., 2013); contribuir para novas evidências no âmbito da monitorização de programas de intervenção psicomotora (Santos, 2017) e assumir a estratégia multipercetiva envolvendo a família e os colaboradores da instituição do programa.
A funcionalidade (WHO, 2001) e a adaptação (Santos, 2017) constituem o foco da intervenção psicomotora, para a participação social e uma vida com mais qualidade. A avaliação adaptativa apontou diferenças significativas em vários domínios, indiciando melhoria nas competências e diminuição de desajustamentos (Freitas & Santos, 2018). Apesar da inexistência de diferenças significativas, os valores médios apontam para melhorias, parecendo indiciar a pertinência da intervenção psicomotora como apoio institucional, ao nível da autonomia, desenvolvimento físico/psicomotor, atividade pré-profissional, personalidade e socialização, corroborando outros estudos com adultos (Freitas & Santos, 2018; Santos, 2017). Um dos pontos fortes do programa foi centrar-se em atividades com significado funcional para cada família (criança e pais), respeitando os valores socioculturais da região (Zhang, 2001).
A estimulação das competências psicomotoras parece ter conduzido à evolução do desenvolvimento físico e qualidade de desempenho de autonomia, com transfer para a vida diária (Harris, 2006), apesar dos valores médios refletirem perfis inferiores do que os expectáveis para a sua idade cronológica (Lohaugen et al., 2018; Santos & Morato, 2012). Há a realçar a importância do reforço positivo e insistência para a realização das tarefas diárias de forma autónoma (e.g.: utilização da casa de banho, higiene), em paralelo ao apoio e partilha de estratégias aos colaboradores para incentivarem estas práticas, uma vez que, muitas vezes, partia dos próprios o apoio total às crianças/jovens (Rosenbaum et al., 2007; Rothstein & Beltrame, 2013). Ainda atendendo aos aspetos culturais inerentes, o uso de faca-garfo e guardanapo, não é comum, inferindo-se que, embora os participantes não usem estes utensílios, se ensinados e incentivados, poderiam fazê-lo.
Os domínios de cariz académico (atividade económica, números/tempo e desenvolvimento da linguagem) denotam valores inferiores à média (Lohaugen et al., 2018; Santos, 2014; Santos & Morato, 2012), sendo conteúdos desvalorizados (Zhang, 2001) pela idade dos participantes, tendência para serem assumidos pelos adultos e poucas oportunidades (Santos & Gomes, 2016). Alguns itens não foram considerados como relevantes para os intervenientes, dadas as condições socioeconómicas (e.g.: compras) e as expectativas parentais (e.g.: serviços bancários), pelo que a intervenção psicomotora não incidiu sobre os mesmos. A associação do número à quantidade, foram trabalhados em função da utilidade para o dia-a-dia das crianças/jovens e visando a estimulação da orientação temporal, comunicação tendencialmente não verbal (Santos & Morato, 2012) e compreensão verbal (Harris, 2006), dadas as limitações oromotoras, falta de estimulação e de modelos linguísticos de qualidade (Sigudardottir & Vik, 2011). O trabalho incidiu na responsabilização de, em todas as sessões haver um recado a cumprir, calendarizar-se o dia, mês, ano e estação, ilustrar os aniversários de todos, entre outros.
A superproteção também se repercutiu ao nível da atividade pré-profissional (Santos, 2014; Santos & Morato, 2012), e pontualidade dado depender não das crianças/jovens, mas antes da forma de deslocação (transportes públicos vs. carrinha da escola). A separação física da ala das crianças/adolescentes e jovens-adultos e o facto de apenas estes últimos realizarem trabalhos no centro, não permite a oportunidade às crianças e jovens em utilizar instrumentos, ou realizar tarefas diárias como despejar o lixo, etc., apesar de serem capazes de o fazer, traduzindo-se numa menor produtividade (Harris, 2016).
A atividade doméstica é influenciada pelo contexto (domiciliário/familiar ou institucional) com tendência para a desresponsabilização das pessoas com DID e/ou PC (Santos, 2014; Santos & Morato, 2012). A intervenção psicomotora focou-se na limpeza e estima do espaço próprio, com rotinas individuais e grupais, no qual as crianças e jovens com maior autonomia motora foram responsabilizadas por tarefas domésticas (e.g.: pôr e levantar a mesa), o que poderá ter promovido as melhorias de pontualidade, assiduidade e responsabilidade do domínio de atividade pré-profissional.
O domínio da personalidade foi um dos que apresentou diferenças significativas entre os dois primeiros momentos de avaliação. A intervenção psicomotora centrou-se na regulação comportamental através do trabalho em grupo, capacitando as crianças e jovens para pensarem e criarem jogos de acordo com objetivos predelineados, definirem regras e escolherem os materiais, e traduzindo-se num maior interesse, motivação, tomada de iniciativa e atenção nas atividades. Este trabalho teve repercussões significativas e positivas na atividade doméstica e autonomia, mas também na socialização, com a interação entre participantes e com os restantes clientes da instituição, incentivando à cooperação, interação, participação e consciência do outro.
Na segunda parte, os valores médios são próximos do valor otimal (zero pontos), destacando-se, apenas, os domínios comportamento social, conformidade e comportamentos estereotipado/hiperativo com pontuações médias mais elevadas, indicadores de desajustamentos. Os participantes tenderam a apresentar alguns comportamentos agressivos, fraca tolerância à frustração, maior resistência a cumprir instruções, atrasos na atividade e a expor o corpo desnecessariamente. Na avaliação final os únicos domínios com diferenças significativas foram a conformidade, com os participantes conseguirem reconhecer e acatar regras simples (Santos, 2014) importantes na interação e relação com o outro. O comportamento sexual que, com investimento na explicação e dissociação do que é a intimidade e o que se deve expor socialmente, apresentou-se como uma oportunidade de desenvolvimento de competências diárias (e.g.: vestir/despir em público - Santos, 2014), quando o Centro tem espaços para o devido efeito.
No último momento de avaliação, constata-se uma ligeira subida dos valores médios no comportamento interpessoal perturbado, eventualmente decorrentes da não manutenção da exigência e das atividades concretizadas ao longo do ano e que abordavam o ajustamento comportamental (e.g.: reação às críticas, solicitação de atenção). A influência dos valores socioculturais tradicionais e a tendência para a desresponsabilização e paternalização (Santos & Morato, 2012) inferem a necessidade de formação e de mudança de atitudes da comunidade face a este subgrupo populacional (McKenzie et al., 2013; Santos & Gomes, 2016). A duração reduzida do programa não permitiu a intervenção sobre todos os domínios avaliados, o que pode estar na base de inexistência de diferenças significativas.
A avaliação psicomotora apontou para um desempenho psicomotor de menor qualidade, com maiores necessidades de apoio e de mais tempo para a organização e execução das respostas (Harris, 2006). Os menores índices da tonicidade e equilibração, repercutem-se na menor qualidade da marcha e controlo postural (Carvalho et al., 2017; Rosenbaum et al., 2007; Vjuik et al., 2010; Vrijmoeth et al., 2011). A equilibração foi a área menos forte dos participantes, ao nível da imobilidade, equilíbrio estático e dinâmico (Enkelaar et al., 2013). Os dois participantes com PC, contrariamente aos com DID, não tinham capacidade para a marcha (Winter, 2007), apresentando instabilidade e oscilação corporal (Carvalho et al., 2017; Vrijmoethet al., 2011), menor controlo postural (Rosenbaum et al., 2007) e limitações sensoriais (Acharya et al., 2016), com desequilíbrios (Winter, 2007) e constantes reajustes posturais mesmo na posição de sentado, resistência ao alongamento, tendência para a hipertonia (Rosenbaum et al., 2007), com alterações ósseas e músculo-esqueléticas (Acharya et al., 2016).
Na lateralização a maioria dos participantes, à exceção de um, preferiam o lado direito - a nível ocular, auditivo, manual e podal, sem diferenças nos momentos de avaliação. A indiferenciação manual (Carmeli, Bar-Yossef, Ariav, Levy, & Liebermann, 2008) e podal, e as dificuldades de dissociação lateral (Santos, 2014) foram observadas. A noção do corpo e praxia global, contrariando a literatura (Rothstein & Beltrame, 2013; Wuang et al., 2008) foram domínios com diferenças significativas após a intervenção psicomotora, com evolução em todos os itens, especialmente no sentido cinestésico, reconhecimento direita-esquerda e dissociação dos membros superiores. Embora as limitações na dissociação de membros, a melhoria da praxia global refletiu-se na qualidade de desempenho motor (Carvalho et al., 2017; Vrijmoeth et al., 2011) ao nível da marcha, fluidez e harmonia de movimentos, especialmente dos participantes com DID. A estruturação espacial e temporal reflete as dificuldades nos itens de organização (Harris, 2006) e representação topográfica, e após a intervenção os itens de estruturação dinâmica e rítmica evoluíram positivamente.
A praxia fina, que exige os movimentos mais sofisticados (Fonseca, 2010), foi o fator com desempenho inferior de todos os participantes com dificuldades de destreza manual e manipulação/controlo de objetos (Vjuik et al., 2010), mais acentuadas em objetos de dimensões menores e finos, na coordenação dinâmica manual e atividades de velocidade-precisão. Estes resultados podem resultar do compromisso cognitivo e físico (Pereira & Santos, 2019), das menores oportunidades e das atitudes subvalorizadoras (Santos, 2014; Santos & Gomes, 2016). Ao longo da intervenção dedicou-se especial atenção à pega em pinça e escrita, postura tónica (sentado) para uma maior predisposição para a praxia fina. Há a destacar, o melhor desempenho ao nível da praxia global, quando comparada com a praxia fina (Wuang et al., 2008).
Apesar das dificuldades, há que referir as características pessoais das crianças e jovens que permitiram a intervenção, nomeadamente a facilidade de interação com o adulto, disponibilidade para ajudar, gosto inato em ser prestável e agradar, em participar nas atividades mesmo nas mais complexas, e por serem os próprios os primeiros a valorizar as suas conquistas de sessão para sessão, possibilitando criar uma forte envolvência com todos e entre todos, para a positiva progressão do trabalho desenvolvido.
Apesar da relevância do autorrelato, dadas as dificuldades de compreensão e comunicação dos participantes, optou-se pela aplicação da EPR-CJ aos pais, dadas as evidências que apontam para níveis de resposta mais concordantes entre pais e filhos (Santos, 2007). Na avaliação inicial, os domínios com melhores valores médios foram relações interpessoais, bem-estar emocional e bem-estar físico (Davis et al., 2017), e que podem ser explicados por questões culturais e sociais: agregado familiar grande, a comunidade como apoio significativo de entreajuda e, ainda, pelo facto do diagnóstico (tardio ou sem ser bem compreendido) causa menor stress psicológico parental (Ncube et al., 2018), não se tornando uma condicionante para a perceção inferior da QdV.
Na comparação entre os dois primeiros momentos de avaliação, quase todos os domínios apresentaram melhorias, à exceção das relações interpessoais que manteve os valores. Apenas o domínio inclusão social parece deter diferenças (positivas) significativas, que se repercutem no índice global de QdV. O trabalho de partilha e transmissão de informação aos pais para desmistificar o diagnóstico e a possibilidade de transfer das aprendizagens para a vida diária permitiu uma maior abertura também para os outros (comunidade e família), estimulando uma participação mais ativa das crianças e jovens.
Na análise dos resultados um mês após a intervenção psicomotora ter cessado, os valores do bem-estar físico voltam a estar próximos dos iniciais, i.e.: diminuíram sem a intervenção, com diferenças significativas na retenção - e que se refletem no índice geral, parecendo poder inferir-se a importância que uma intervenção desta natureza pode deter na estimulação destas competências. Apesar de inexistência de diferenças significativas nos outros domínios, observa-se uma descida ligeira dos valores de retenção em todos (Freitas & Santos, 2018) que parecem corroborar a eventual eficácia da intervenção psicomotora na melhoria da qualidade da relação entre pessoa e contexto (Santos, 2017).
Apesar da estratégia multipercetiva para a recolha de dados, dadas as dificuldades dos participantes não foi possível obter a informação do próprio, pelo que fica como sugestão para a investigação futura. A amostra reduzida também não permite a generalização dos resultados, pelo que se recomenda a continuação deste tipo de intervenções, quer em estudos com amostras mais representativas e significativas, quer ao nível de estudos de follow-up. É de se referir a influência, não controlada, de variáveis como o nível de severidade, idade, género, medicação e fator institucionalização, entre outros. Outra necessidade será compreender a QdV das famílias e a forma como gere o facto de ter uma criança com deficiência, ao nível da sua sobrecarga, na contextualização política atual moçambicana na disponibilização dos recursos (praticamente inexistentes). A avaliação e monitorização de programas a nível comunitário e social, para a mudança de atitudes face às pessoas com deficiência e para a estimulação das capacidades das mesmas, não as confinando a uma instituição é emergente, pelo que a intervenção em plena comunidade poderá ser outra medida a considerar.
CONCLUSÃO
A pesquisa apresentada é pioneira no âmbito da validação de práticas profissionais psicomotoras mesmo considerando o interesse crescente nos últimos anos, com adultos com DID (Santos, 2017), não só pela idade da população-alvo (crianças e jovens), como pelo contexto cultural e atitudes face ao diagnóstico de deficiência. O processo académico é também afetado, apesar do maior foco na funcionalidade (Zhang, 2001). A utilização de diversos instrumentos permitiu a avaliação multidimensional e o planeamento centrado na criança. O entendimento dos valores socioculturais influencia, a forma de atuação num país como Moçambique. O (pre)conceito é ainda um bloqueio para a inclusão ativa de pessoas com DID na escola, mercado laboral e comunidade, não existindo meios nem incentivo para a sua integração.
Os resultados parecem indiciar a relevância que uma intervenção de cariz psicomotor pode deter, apesar de nem todos os domínios terem apresentado diferenças significativas, eventualmente explicados pelo programa de duração reduzida e pela abrangência dos domínios avaliados, mas deixa o indício da qualidade deste tipo de intervenção. A intervenção psicomotora parece ter conseguido, a partir da divulgação e partilha de informação, despertar pais e colaboradores para os seus direitos, tendo uma voz mais ativa e uma presença mais recorrente e participativa no núcleo dos seus filhos. Os dados parecem indicar a relevância da introdução e do desenvolvimento das competências adaptativas nos programas de intervenção com crianças e jovens com perturbações do desenvolvimento, no alinhamento entre necessidades da criança/jovem e família em plena comunidade e os apoios/serviços a prestar, visando a melhoria dos resultados pessoais do próprio, da sua QdV e a da sua família. Acresce ainda a introdução de indicadores objetivos e a perceção subjetiva da relevância das competências estimuladas por parte das famílias, enfatizando a sua participação no projeto. Finalmente, fornece dados e evidências para a reflexão sobre a provisão de apoios, em contexto institucional moçambicano, mais estruturados e centrados nas pessoas e visando funcionalidade e participação social concreta em detrimento de atividades tendencialmente terapêuticas e assistencialistas.
A amostra reduzida e o programa com duração reduzida limitam a generalização dos resultados, pelo que se recomenda para a prática e investigação estudos semelhantes, mas com amostras mais representativas e por subgrupos (faixa etária, nível de severidade...), de caráter longitudinal e de follow-up desde uma idade mais precoce, avaliação das variáveis indiretas (moderadoras e mediadores), e o desenvolvimento de instrumentos de avaliação validados do ponto de vista cultural ao contexto africano e com a participação direta da criança (autorrelato). A formação de pais é algo a refletir para práticas coadjuvadas com as dos técnicos.