INTRODUÇÃO
As ações de tempo movimento nos esportes de combate tem sido objeto de investigações cientificas, com fins de desenvolvimento de protocolos de análise para o judô (Miarka, Hayashida, Julio, Calmet, & Franchini, 2011), taekwondo (Barrientos, 2020) e artes marciais mistas (Miarka, Brito, & Amtmann, 2017). Alguns destes estudos investigaram quais são as ações técnico-táticas que podem predizer melhores resultados nos combates (Barreto et al., 2019), gerar vantagem competitiva (Brito, Miarka, Durana, & Fukuda, 2017; Miarka et al., 2017) ou criar estratégia de passagem (Miarka, Carvalho, Pérez, Aedo-Muñoz, & Brito, 2020). Tais resultados representam um avanço para estes esportes de combate, visto que treinadores e atletas podem realizar a preparação contextualizada para a competição (Brito et al., 2017; Miarka et al., 2020). De acordo com Miarka et al. (2011), a notação manual, assim como as análises qualitativas usadas tradicionalmente, não trazem grande detalhamento de dados, limitando a aquisição de conhecimento decorrente da análise. Diferentemente, as análises eletrônicas e quantitativas conseguem predizer por exemplo, a interferência do fator casa no resultado das lutas (Brito et al., 2017). As análises notacionais computadorizadas através de softwares foram desenvolvidas, tendo como finalidade a realização de análises técnico-tática em esportes de combate (Miarka, Branco, Vecchio, Camey, & Franchini, 2015).
Apesar dos avanços obtidos pelo uso deste software, no melhor de nosso conhecimento não existem protocolos válidos para análise de lutas de boxe no Frami®. O boxe é um esporte de combate onde a vitória é obtida pela aplicação de ações técnico-táticas, onde o principal objetivo é executar golpes efetivos e ao mesmo tempo defender-se não permitindo ser golpeado (Vargas, Valero, Díaz, & Torres, 2015). Toala Medina (2016) ressaltam que as demandas atuais do esporte exigem melhor nível de preparação dos atletas. Neste sentido, a padronização técnico-tática é a base fundamental do domínio esportivo do boxeador, assim, aquele que melhor se adaptar ao oponente e fizer prevalecer os padrões de movimentos mais eficazes, tendem a ser os vencedores. Portanto, identificar os padrões ofensivos e defensivos realizados pelo adversário representam uma importante vantagem competitiva (Tshibangu, 2021).
Em nossa revisão, encontramos somente um protocolo validado e publicado por Thomson, Lamb, and Nicholas (2013) para o software Dartfish®, onde as ações foram divididas em três grupos, ataque, defesa e fintas. Porém, o protocolo já publicado não contempla todas as ações técnico-táticas desenvolvidas. Acreditamos que um protocolo mais completo pode auxiliar treinadores e atleta expandindo as ações e obtendo maiores detalhes na análise notacional do comportamento desempenhado pelo boxeador, seja este no ataque ou defesa. Ademais, o software Frami® apresenta outra importante vantagem para a análise no boxe, pois este desacelera a velocidade do vídeo em até 8 vezes, permitindo assim, que detalhes técnicos, principalmente das categorias mais velozes, possam ser analisados.
O conhecimento gerado a partir de tais análises permitirá o aprofundamento em futuras pesquisas na modalidade, assim como os anteriormente publicados em outros esportes de combate. Além do aspecto científico e educacional, treinadores e analisadores técnicos poderão compreender melhor as ações dos atletas e de seus oponentes, estabelecendo mudanças na preparação técnico tática, e também físicas, elaborando novas propostas estratégicas e táticas para o rendimento de seus atletas seja em nível amador ou olímpico. Tendo em vista que esse tipo de conhecimento corrobora com a esfera competitiva e pedagógica do Boxe, esse estudo teve por objetivo desenvolver e validar um protocolo tempo-movimento especifico, utilizando o software Frami®. Pretende-se com este novo protocolo propiciar a abordagem mais abrangente das ações técnico táticas, facilitando a identificação e compreensão das fases do combate.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo onde especialistas em Boxe desenvolveram e validaram. Um protocolo no qual treinadores e atletas podem analisar combates oficiais na modalidade.
Amostra
A amostra do presente estudo foi baseada no estudo de Vargas Barrientos et al. (2021). Foram selecionados 12 combates de boxe masculino [Superpesado (> 91 kg)= 2; Pesado (> 81 a ≤ 91 kg)= 2; Médio (> 69 a ≤ 75 kg)= 2; Médio-ligeiro (> 60 a ≤ 64 kg)= 2; Mosca (> 49 a ≤ 52 kg)= 4] realizados nas Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016. Para melhor qualidade na obtenção dos dados, os rounds foram analisados separadamente, pois trata-se de um esporte de combate onde as ações são, em grande parte, executadas com a máxima velocidade. Os vídeos foram obtidos no canal virtual do Comitê Olímpico Internacional na plataforma do YouTube. Adotaram-se como critérios de inclusão: 1) ser uma luta completa (3 rounds); 2) definida por pontos; 3) apresentar visão completa do ringue e do placar durante todo o tempo de combate, 4) apresentar qualidade do vídeo mínima de 720 pixels.
Construção do protocolo de análise de tempo-movimento
A partir das compreensões sobre técnicas do boxe inglês apresentadas por de Blower (2012) foram definidos grupos de ações e estabelecidos os padrões de início e fim de cada ação. Os grupos de ações foram divididos em 5 fases: a) ataque, b) defesa, c) deslocamento, d) clinch e; e) pausa. As ações foram registradas a partir do comando gestual do árbitro para iniciar o combate. A Tabela 1 apresenta a ação, descrição e o gesto observado pelo avaliador para apontar o começo e fim de determinado movimento. Após a definição dos elementos que compõem as fases da luta, foram introduzidos os comandos no Software Frami®.
A Figura 1 apresenta o organograma das ações e suas subdivisões.
Ação técnico-tática | Descrição | Início | Término |
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Ataque | Gesto de ofensividade contra o oponente, podendo ser um soco ou uma finta. | Quando o atleta inicia a extensão do braço. | Quando o atleta finaliza a extensão do braço. |
Defesa | Gesto defensivo, podendo ser uma esquiva, pendulo, defesa em guarda, etc. | Quando o atleta realiza um movimento para evitar o ataque do oponente. | Após a absorção do golpe ou ao final do movimento identificado como defensivo |
Deslocamento | Gesto de movimentação sendo este aproximando ou afastando. | Quando inicia uma tarefa de movimentação do atleta no ringue. | Quando o atleta finaliza a passada, podendo ela ser simples e rápida ou prolongada. |
Clinch | Imobilização dos braços do oponente inviabilizando as ações deste. | A partir da imobilização completa dos braços do adversário. | Quando há intervenção do arbitro para o reinicio do combate. |
Pausa | Momento no qual o combate se encontra parado, por falta (punição), reinício do combate ou até mesmo uma parada inespecífica. | Quando o combate for identificado parado. | A partir do sinal das mãos do árbitro, gesto identificado como reinício do combate. |
Validação intra e inter-experts
A análise dos vídeos foi realizada por dois especialistas com mais de 5 anos de prática de combate em nível nacional, discentes do curso de bacharelado em Educação Física. Os avaliadores realizaram um treinamento prévio de 12 horas para a familiarização de como manusear o software, teclas de atalho e procedimento de análise das fases da luta. Os escores de confiabilidade foram obtidos após a reanálise do mesmo vídeo após 24 horas. A objetividade foi obtida pela comparação da análise do mesmo vídeo entre os dois avaliadores, que não tiveram comunicação sobre seus resultados, aumentando a confiança na veracidade das análises (Miarka et al., 2011). A Figura 2 apresenta o organograma experimental para análise dos dados.
Análise estatística
A análise estatística foi realizada no software SPSS (22.0; SPSS, Inc., Chicago, IL, EUA). As comparações de teste e reteste foram feitas usando o Coeficiente de Correlação Intraclasse (CCI), ambos considerando um nível de significância de p≤ 0.05 (Atkinson & Nevill, 1998). Para classificar os níveis de concordância entre as análises inter e intra-avaliador, utilizou-se a distribuição proposta por (Koo & Li, 2016) para CCI (< 0.5 fraca; 0.5–0.75 moderada; 0.76–0.9 bom; > 0.91 excelente).
RESULTADOS
A Tabela 2 mostram os dados de confiabilidade e objetividade alcançados pelos dois avaliadores. Houve reprodutibilidade classificada como “excelente” para todas as variáveis (CCI≥ 0,94) para ambos os avaliadores. Houve objetividade classificada como “excelente” (CCI≥ 0,98) em todas os conjuntos de ações entre as análises dos avaliadores.
Fase da luta | Avaliador 1 | Avaliador 2 | Avaliador 1 vs. Avaliador 2 | |||||||
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Teste(s) | Reteste(s) | CCI (95%) | Classificação | Teste (s) | Reteste (s) | CCI (95%) | Classificação | Objetividade (95%) | Classificação | |
Deslocamento | 117.6± 17.2 | 118.4± 16.8 | 0.99 | Excelente | 118.2± 17.0 | 118.1± 17.5 | 0.97 | Excelente | 0.99 | Excelente |
Ataque | 20.3± 7.4 | 19.6± 7.6 | 0.98 | Excelente | 20.1± 7.7 | 19.99± 6.8 | 0.96 | Excelente | 0.98 | Excelente |
Defesa | 10.8± 5.2 | 10.5± 5.0 | 0.97 | Excelente | 11.0± 5.6 | 10.9± 5.1 | 0.94 | Excelente | 0.98 | Excelente |
Clinch | 10.2± 11.2 | 10.3± 11.3 | 0.99 | Excelente | 10.1± 11.6 | 9.6± 11.1 | 0.96 | Excelente | 0.99 | Excelente |
Pausa | 36.8± 42.0 | 37.0± 42.0 | 1 | Excelente | 36.3± 41.8 | 36.9± 41.8 | 0.99 | Excelente | 0.99 | Excelente |
Tempo total | 195.7± 40.7 | 195.9± 40.9 | 1 | Excelente | 195.74.0± 40.7 | 195.55.0± 40.5 | 1 | Excelente | 1 | Excelente |
CCI: coeficiente de correlação intraclasse.
DISCUSSÃO
As análises de tempo-movimento podem direcionar adequadamente a preparação técnico-tática de boxeadores, assim como tem sido feito no judô (Miarka et al., 2015) e artes marciais mistas (Miarka, Vecchio, Camey, & Amtmann, 2016), podendo predizer quais as ações mais eficientes, direcionamento e efetividade dos golpes deferidos e comparações entre as ações de vencedores e perdedores (Ashker, 2011). O presente estudo teve por objetivo propor e validar um protocolo para análise técnico-tática em combates de boxe, através da análise de lutas de boxe olímpico. Os principais resultados do presente estudo indicaram que as ações listadas em nosso protocolo, tiveram a confiabilidade e validade classificadas como excelentes. Similar aos nossos resultados, Miarka et al. (2015) ao validar um protocolo para o judô, também obtiveram a classificação quase perfeita. Diferentemente do judô, um protocolo desenvolvido para esportes de percussão como o boxe e o Taekwondo apresentam determinadas particularidades que podem dificultar a análise, dentre eles a velocidade do combate (Vargas Barrientos et al., 2021). Neste sentido, destaca-se a dificuldade encontrada por Thomson et al. (2013) na análise das fintas e a frequência destas pelo tempo de ação durante combates de boxe. Porém, diferente do estudo acima citado, nosso protocolo foi desenvolvido para o Frami®, que permite reduzir a velocidade do vídeo em até 8x, o que torna esta ferramenta adequada para obter maior assimilação das ações utilizadas pelo atleta. Portanto, o presente protocolo, ao ser utilizado em futuras análise, proporcionará maior confiabilidade durante a análise do combate, em especial, das fintas.
O protocolo desenvolvido e validado no presente estudo foi criado a partir de outro previamente publicado (Thomson et al., 2013). Porém, entendeu-se que seriam necessários ajustes, pois algumas ações desenvolvidas pelos atletas eram negligenciadas, para o presente protocolo houve maior agrupamento de ações (Figura 1) como o clinch, pausa e deslocamento. Entende-se que, quanto maior a capacidade do protocolo em diferenciar as fases do combate, maior será o conjunto de informações a ser obtida na análise. Nesta linha, protocolos previamente publicados para as Artes Marciais Mistas, indicaram que é possível diferenciar as ações na luta em pé, no chão, bem como a diferenciação entre as ações de percussão e agarre (Miarka et al., 2016). Protocolos que trazem maior riqueza de análise permitem a elaboração de estratégias de pacing, o que pode orientar o comportamento dos lutadores, tornando suas ações durante o treino e combate mais eficientes (Miarka et al., 2020). Por fim, ressaltamos como limitações do presente estudo, a análise de lutas de boxe amador, porém o presente protocolo incorpora os mesmos elementos do boxe profissional, assim, o protocolo aqui desenvolvido e validado pode ser aplicado em futuros estudos para analisar combates de boxe feminino e também de lutadores juvenis e cadetes.
CONCLUSÕES
Tendo em vista nossos objetivos, métodos aplicados e resultados obtidos, pode-se concluir que o protocolo desenvolvido no presente estudo é valido e reprodutível para analisar de combates de boxe.
Aplicações práticas
O presente protocolo pode ser aplicado para o melhor desenvolvimento técnico de lutadores, pois, a análise detalhada dos combates permitirá detectar os pontos fortes e fracos de um boxeador. Esta aplicação pode ser interessante para treinadores que trabalham com atletas em formação, de fato, Vargas et al. (2015) ressaltam que atletas menos experientes são mais focados em ataques, já os mais experientes possuem mais habilidades defensivas. Ademais, uma das vantagens do Frami® é poder desacelerar o vídeo, isso permite ao treinador trabalhar pequenos detalhes que podem levar ao melhor desenvolvimento técnico do lutador durante a aplicação de golpes. Chaabène et al. (2015) ressaltam que diferenças na potência de soco são observadas em boxeadores que possuem maior capacidade de força adicional das pernas e maior grau de rotação do tronco.