INTRODUÇÃO
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é definido como déficit persistente na comunicação e na interação em diversos contextos associados aos padrões de comportamentos e interesses restritos e repetitivos (American Psychiatric Association, 2014), sendo reconhecido como um dos transtornos do neurodesenvolvimento de alta prevalência na infância e adolescência (Rotta, Ohlweiler & Riesgo, 2016). Nos Estados Unidos da América, a prevalência do TEA atualmente é de 1:54 crianças (Baio et al., 2018). No Brasil, as pesquisas epidemiológicas que possibilitem afirmar a prevalência do TEA na população ainda são escassas, porém, com base em estimativas internacionais, é possível inferir que até 1,5 milhão de brasileiros tenham TEA (Paula, Fombone, Gadia, Tuchman & Rosanoff, 2011). Os principais sintomas do transtorno estão relacionados à área social, implicando desafios na comunicação e interação social (American Psychiatric Association, 2014). Além dessas alterações comportamentais, é documentado na literatura a existência de déficits motores no autismo, principalmente, na marcha, na destreza manual, na função vestibular, no equilíbrio, no controle postural, na imitação e na coordenação interpessoal (Zampella, Wang, Haley, Hutchinson & Marchena, 2021).
Fournier, Hass, Naik, Lodha e Cauraugh (2010) realizaram uma metanálise com 51 estudos acerca das dificuldades motoras no autismo e demonstraram déficits de coordenação motora substanciais, nos movimentos de braços, na marcha e na estabilidade postural em pessoas com TEA, independente da faixa etária. Há indícios que as alterações na motricidade do transtorno estejam envolvidas com processos neurobiológicos. Pesquisas com neuroimagem identificaram anomalias significativas em estruturas que controlam o comportamento motor, relacionados a volumes totais do cérebro, cerebelo, núcleo caudado e tronco cerebral (Rotta et al., 2016; Dadalko & Travers, 2018). Ruggeri, Dancel, Johnson e Sargent (2020) revisaram 34 estudos concluindo que intervenções como ginástica, futebol, equitação, natação e aulas de educação física têm contribuído com a melhoria das habilidades motoras, porém, cada tipo de intervenção influencia de forma diferente no desempenho motor de crianças com TEA.
É possível encontrar, ainda, estudos relacionando o TEA com um menor desempenho das funções cognitivas (Hilton et al., 2014; Rotta et al., 2016), dentre elas a memória, a atenção e as funções executivas, todavia, os resultados apresentados são inconsistentes e a origem dessas dificuldades não estão bem definidas (Magnuson, Iarocci, Doesburg & Moreno, 2019). Um dos processos cognitivos que compõe a atenção — o tempo de reação (TR) —, ainda é pouco estudado na população com TEA. O TR indica a velocidade e o êxito da tomada de decisão, além de representar o intervalo de tempo entre a apresentação do estímulo e o início da resposta do indivíduo (Schmidt & Wrisberg, 2001). Uma velocidade de processamento mais lenta no TEA é supostamente causada por uma interrupção primária dos sistemas do lobo frontal, que pode ser associada a mutações em germinativas (Busch et al., 2019). Porém, Ferraro (2016) aponta evidências de que o TR simples não está diminuindo no TEA em comparação com grupos controles, no entanto, Magnuson et al. (2019) apontam a possibilidade de um aumento da variabilidade do TR intrassujeito em pessoas com TEA. Esses achados demonstram a heterogeneidade presente nos sintomas cognitivos no autismo, requerendo maior número de pesquisas relacionadas ao TR nessa população.
Diante do exposto, torna-se importante desenvolver estudos que busquem estimular o desempenho motor e os processos cognitivos em pessoas com TEA, contribuindo para a aquisição de habilidades necessárias e para adquirir maior autonomia e independência no seu dia a dia. Considerando que a instrução visual é mais eficaz em relação à instrução verbal para crianças com TEA (Ruggeri et al., 2020) e que a proposta de intervenção com exergames — conhecidos como videogames com ferramentas que fornecem imagens tridimensionais e rastreiam os movimentos executados pelo corpo (Ghobadi, Ghadiri, Yaali & Movahedi, 2019), demandando do praticante uma mistura de processos cognitivos e motores —, é uma tecnologia apontada como um potencial método para aprimorar habilidade motoras e cognitivas (Jiménez-Muñoz et al., 2021), é possível presumir que os exergames podem ser mais uma ferramenta para estimular as potencialidades das crianças com TEA. Outras vantagens das intervenções com exergames para crianças com TEA são a motivação e o interesse desse público por tecnologias (Lima Antão et al., 2018; Milajerdi et al., 2021), além de estimular habilidades de resolução de problemas para o empoderamento cognitivo em crianças com ou sem deficiência (Lima Antão et al., 2020).
Nesse contexto, o presente estudo teve por objetivo verificar o efeito do exergames no desempenho motor e no tempo de reação de uma criança (6 anos) com TEA, trabalhando com duas hipóteses, a saber: um programa de exergames em crianças com TEA pode estimular as habilidades motoras e o tempo de reação; e oito sessões são suficientes para estimular os fundamentos motores e o tempo de reação.
MÉTODO
Para uma melhor compreensão dos processos aplicados neste estudo, realizado em cinco etapas, a Figura 1 apresenta uma trajetória resumida dos períodos de desenvolvimento da pesquisa.
Amostra
Inicialmente, toda criança com idade entre 5 a 11 anos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) — diagnosticada previamente por um médico e com base no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM 5) —, era elegível para participar deste estudo. Contudo, crianças com TEA associado a algum tipo de deficiência visual ou deficiência motora foram excluídas do estudo.
Após a divulgação do estudo em dois centros de atendimentos especializados para pessoas com deficiência e nas mídias sociais, oito responsáveis por crianças com TEA entraram em contato com os pesquisadores. Feito o contato inicial, realizou-se uma conversa a fim de apresentar os procedimentos da pesquisa, seus objetivos detalhados e colher a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) autorizando a participação voluntária da criança no estudo, conforme determina a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Em julho de 2015, o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) envolvendo seres humanos da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Minas Gerais, Brasil, (Parecer nº 1.135.228) sob o protocolo nº 45307715.3.0000.5153.
Uma criança desistiu de participar do estudo após as avaliações iniciais. As outras sete crianças estavam participando de diferentes etapas da pesquisa, mas, devido à Pandemia causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), foi necessário interromper a coleta de dados. Por esse motivo, somente uma criança concluiu todas as etapas do estudo.
A criança tinha idade de seis anos e seis meses (80 meses), era do sexo masculino e foi diagnósticado com TEA nível I no ano de 2019. Durante o período da pesquisa, o participante frequentou a escola regular, o centro educacional especializado nos períodos matutino e vespertino, respectivamente, bem como as aulas de Jiu Jitsu duas vezes na semana com duração de 60 minutos (aluno já praticava esse esporte há quatro meses).
Instrumentos
Desempenho motor
O desempenho motor foi avaliado utilizando a Escala de Desenvolvimento Motor (EDM) proposta por Rosa Neto (2015). Essa escala é baseada nos elementos da motricidade humana, indicada para crianças em idade escolar e àquelas com dificuldades de aprendizagem, alterações neurológicas, mentais, sensoriais, por exemplo. O instrumento permite analisar a Idade motora (IM), o Quociente motor (QM), o perfil motor e calcular a relação idade positiva/negativa. As áreas avaliadas incluem: motricidade fina e global, equilíbrio, esquema corporal/rapidez, organização espacial, linguagem/organização temporal e lateralidade. Cada área motora é formada por um conjunto de 10 níveis organizados por ordem crescente de dificuldade. Ao final é obtida uma classificação baseada no cálculo do quociente motor geral (QMG), utilizando a razão entre a IM/idade cronológica, multiplicada por 100 (Rosa Neto, 2015). A classificação é atribuída de acordo com a modalidade de ensino em que a criança está matriculada — Infantil, Fundamental ou Educação Especial. Considerando que o participante está matriculado no Ensino Fundamental, utilizou-se a classificação para essa modalidade, QMG (< 69 muito inferior; 79 a 70 inferior; 89 a 80 normal baixo; 109 a 90 normal médio; 119 a 110 normal alto; 129 a 120 superior; > 130 muito superior). A EDM tem demonstrado boa confiabilidade pelo Alpha de Cronbach (r= 0,889) (Rosa Neto, Santos, Xavier & Amaro, 2010) em populações sem o diagnóstico de TEA. Gusman et al. (2020) aplicaram a EDM em crianças brasileiras com TEA, com idade entre 6 e 8 anos e observou-se um coeficiente de correlação intraclasse acima de 0.60 para as variáveis analisadas pelo instrumento, exceto para motricidade fina e motricidade global, demonstrando uma confiabilidade satisfatória do instrumento para essa população.
A EDM é aplicada a partir da observação direta do desempenho do avaliado, sendo a ordem de execução dos testes com início pelas tarefas de motricidade fina, seguido pela motricidade global, equilíbrio, esquema corporal/rapidez, organização espacial, linguagem/organização temporal e lateralidade, como sugerido por Rosa Neto (2015). Quando o participante realizou a tarefa motora com êxito referente à área avaliada, atribuiu-se 1 ponto e prosseguiu para a próxima tarefa. Porém, se não atingido o desempenho esperado, recebe 0 ponto, finaliza as tarefas da área motora em questão e segue para a próxima área motora. Nas tarefas que solicitavam a prática com ambos os membros direito e esquerdo e a criança executou bem apenas com um dos membros, a pontuação atribuída foi de 0.5 e prosseguiu para o próximo nível da área motora. Neste estudo, optou-se iniciar a aplicação da EDM pelo nível 2, pois não há uma rigidez indicada pelo autor. Justifica-se iniciar no segundo nível em razão do participante e o pesquisador não se conhecerem, sendo esse um fator que poderia interferir no desempenho do avaliado, além de evitar um possível sentimento de fracasso desestimulando a criança a continuar a realizar as próximas tarefas. Associado a esses motivos, algumas crianças com TEA possuem dificuldades em lidar com situações de insucesso nas atividades realizadas.
Atenção seletiva visual
A atenção seletiva visual foi avaliada pelo teste de Reação Simples e de Escolha RT/S1, disponível no sistema computadorizado Mental Test and Training System (MTTS) (Hackford, Kilgallen, & Hao, 2009). O RT/S1 permite avaliar o tempo de reação das respostas simples (Schuhfried, 2011) com durabilidade total de aproximadamente sete minutos e o seu resultado é expresso em milésimos de segundo.
A tarefa a ser executada pelo avaliado é simples e consiste em apertar uma tecla de reação no painel de resposta universal, o mais rápido possível, quando aparecer um círculo amarelo (estímulo relevante) no monitor; a duração do estímulo é de um segundo. Ressalta-se que antes de iniciar o teste o avaliado foi treinado, e que o próprio equipamento simula as condições do treino para que o participante entenda a tarefa a ser executada. Após esse momento, o teste foi iniciado com 28 estímulos em duas séries contínuas de 14 intervalos aleatórios.
Esse teste possibilita analisar as variáveis do tempo de reação (TRcog) e do tempo motor (TRmot), sendo que ambos são processados em milésimos de segundos. Segundo Prieler (2005), o RT/S1 pode ser aplicado sem restrições a grupos de indivíduos sem deficiências motoras e sem déficits significativos a nível de visão, tendo apresentado alta confiabilidade pelo Alpha de Cronbach (TRcog r= 0,961; TRmot r= 0,983). Apesar de o teste não estar validado para a população brasileira, alguns estudos já o utilizaram com crianças (Noce et al. 2012) ou em pacientes hipertensos e diabéticos (Teixeira et al. 2017).
Procedimentos
O estudo foi conduzido no Centro Universitário Governador Ozanam Coelho em parceria com a Universidade Federal de Viçosa. Primeiramente, realizou-se a avaliação inicial com a aplicação dos testes em dois dias: no primeiro, teste RT/S1; e no segundo, a EDM. Esse processo foi adotado para não sobrecarregar o participante. Antes disso foram coletadas, junto aos responsáveis pela criança com TEA, informações sobre o comportamento, a prática de atividade física e o uso de medicamentos, além de reforçar a importância de relatar quaisquer alterações ao pesquisador durante o estudo.
Em seguida, durante oito semanas, a criança frequentou um encontro semanal para aproximação entre o participante e o pesquisador, juntamente com dois estudantes de graduação em Educação Física, com a finalidade de conhecer suas potencialidades e dificuldades. Essa etapa foi nomeada como monitoramento e foi um momento que envolveu brincadeiras com duração entre 35 a 40 minutos. Após essas oito semanas, avaliou-se novamente para averiguar se havia alguma mudança nas variáveis devido a relação estabelecida entre o participante e o pesquisador.
A fim de controlar a possível influência da interação entre participante e pesquisador, durante mais oito semanas, foi repetida a etapa de monitoramento com as mesmas atividades e as mesmas avaliações ao final dessa segunda etapa.
Ao final das duas etapas de monitoramento, durante oito semanas foi realizado o programa de intervenção com os exergames. Assim, a criança frequentou o local de coleta de dados duas vezes na semana, sendo uma para a sessão de monitoramento e a outra para as sessões de exergames, com duração entre 35 a 40 minutos. Ao término desse processo as avaliações motora e cognitiva foram repetidas.
As sessões de monitoramento compostas pelas brincadeiras, foram organizadas com atividades pedagógicas que envolviam memória, estimulação visual, contos de história e imaginação, sentimentos e emoções, estimulação cinestésica, vestibular e auditiva. Foi estabelecida uma padronização de sessão, subdivida em três momentos:
Inicial: acolhimento da criança; momento de chegada do participante ao local da coleta de dados e interação com os instrutores, apresentando as atividades da sessão;
Desenvolvimento: a prática das atividades;
Avaliação: conversa com a criança sobre o seu desempenho nas atividades e um momento de autoavaliação sobre o seu comportamento naquela sessão.
Para a autoavaliação foi elaborado um quadro visual, fixado em uma parede no local de coleta de dados, onde a criança selecionava o desenho de um smile sorrindo (verde), neutro (amarela) ou triste (vermelho) e colava no quadro na frente do seu nome. Cada figura correspondia aos seguintes comportamentos:
seguiu as regras e participou das atividades sem comportamentos indesejados;
realizou as atividades, mas teve dificuldade em seguir regras e/ou apresentou comportamentos indesejados;
não realizou as atividades e/ou apresentou dificuldades em seguir as regras e/ou comportamentos indesejados, respectivamente. Todos os procedimentos do estudo encontram-se resumidos na Figura 2.
Intervenção com exergames
As sessões de exergames foram realizadas usando o Xbox Kinect (Microsoft®, Redmond, WA), um videogame com o sensor Kinect que permite detectar a ação do indivíduo durante o jogo. As pessoas, ao jogarem, conseguem interagir com o console através de seus movimentos corporais, pois o dispositivo captura os movimentos realizados e os projeta em uma realidade virtual por meio de câmeras integradas, sendo possível visualizá-los em uma televisão ou em uma parede branca. Essa é uma forma de praticar atividade física de forma lúdica, principalmente para crianças.
O programa de exergames foi composto por uma sessão semanal, durante oito semanas, com duração de 35 a 40 minutos. Foram selecionados os jogos “Kinect Adventures; Kinect Sports 1 and 2; Disneylandia Adventures”; Dance Central 3 (Microsoft®, Redmond, WA) e “Rayman Raving Rabbids” (Ubisoft, Montreal, Canadá). Nos jogos há a opção de jogar individualmente ou em dupla, assim, foram intercaladas sessões em que o participante jogava contra o computador e outras contra um dos instrutores.
Para exemplificar a essência dos jogos, destaca-se o Kinect Adventures, que possui cinco subjogos, quais sejam:
a “Bolha espacial” simula um local com zero gravidade com bolhas a serem estouradas pelo jogador, o avatar é projetado voando, porém, para voar, a pessoa deve se manter saltando e se deslocar para frente, para trás e pelas laterais em direção as bolhas;
no “Cume dos reflexos” o indivíduo fica em cima de uma plataforma que se desloca e aparecem vários obstáculos a serem desviados com saltos, esquivos para direita e esquerda, agachamentos;
“Corredeiras” simula um lugar com água e o indivíduo fica sobre uma boia flutuante em direção das corredeiras, os obstáculos como rampas para subir e desvios de barcos, que exigem deslocamento lateral e saltos;
no “Salão de Ricochetes” a pessoa deve acertar as bolas em direção das caixas que estão fixadas na parede, estimulando movimentos com os braços, pernas e cabeça;
“Vazamentos” simula um local de aquário em que os peixes batem no vidro em diversos locais e o indivíduo, exigindo movimentos de agachamento e deslocamentos em várias direções, deve tapar o vazamento o mais rápido possível.
Os jogos possuem níveis diferentes de dificuldades e o participante iniciou sempre no nível mais fácil progredindo o nível de dificuldade de acordo com a sua aptidão. O desempenho de todas as sessões da criança foi registrado pelo computador e transcrito para a ficha de avaliação. Todas as sessões foram ministradas individualmente por dois pesquisadores devidamente treinados. Na primeira sessão do exergames, o instrutor ensinou ao participante como desempenhar os movimentos, por meio de dicas verbais e feedback cinestésico; nas demais sessões, as orientações foram oferecidas somente quando necessárias. Em cada sessão os instrutores realizavam anotações sobre o desempenho motor (como foi a execução do movimento realizado, a coordenação motora, o equilíbrio, o esquema corporal) e o comportamento (se apresentou resistência na atividade, a manifestação das emoções, presença de movimentos repetitivos) da criança em uma ficha previamente elaborada. Essa etapa seguiu o mesmo padrão de sessões adotado na etapa de monitoramento.
Com o propósito de controlar possíveis influências nas variáveis do estudo, o pesquisador perguntava aos responsáveis, em todas as sessões, se a criança havia sido inserida em alguma atividade diferente daquelas relatadas no início do estudo.
Análise estatística
Os dados coletados foram analisados pelo Método JT proposto por Jacobson e Truax (1991), para avaliar a confiabilidade das mudanças (IMC) pré e pós-intervenção de exergames, além da significância clínica (SC) dessas alterações. Esse método é indicado para pesquisas com sujeitos únicos ou com amostras reduzidas e representa uma alternativa para estudos sem um delineamento com grupo controle (Aguiar, Aguiar & Del Prette, 2009). O IMC determina se houve mudanças confiáveis em detrimento da intervenção ou se as mudanças ocorreram por artefatos de medida (Villa, Aguiar & Del Prette, 2012), enquanto a SC relaciona-se com a validade externa dos resultados, verificando se os impactos gerados pela intervenção tiveram efeito no cotidiano do participante, havendo uma generalização dos comportamentos para outros ambientes (Aguiar et al., 2009).
A confiabilidade do IMC foi calculada por meio de duas fórmulas. A primeira corresponde ao erro-padrão da diferença (EPdif), obtido pela Equação 1:
Em que:
DP1= desvio-padrão pré-intervenção (do grupo ou do indivíduo).
r= índice de confiabilidade do instrumento de medida.
O DP1 foi calculado com os dados obtidos na primeira aplicação das oito crianças. Posteriormente, calculou o IMC com base na Equação 2:
Em que:
pós= escores pós-intervenção.
pré= escores pré-intervenção.
Considera-se mudanças positivas, alterações superiores a 1,96 e mudanças negativas, alterações inferiores à -1,96 (Aguiar et al., 2009). É possível verificar essas variações graficamente por meio de uma linha diagonal central contínua, que separa as diferenças positivas (pós> pré) e abaixo às negativas (pós< pré). Ainda há duas linhas tracejadas que delimitam uma área de incerteza, sendo que os resultados localizados nessa zona representam ausência de mudança. Essas linhas são traçadas de acordo com fórmulas matemáticas baseadas na variabilidade dos resultados (desvio-padrão, erro-padrão, confiabilidade do instrumento).
O cálculo do ponto de corte para SC foi baseado no critério A e é utilizado quando não há dados da população normativa, podendo estimar média e desvio-padrão de acordo com uma amostra disfuncional. A fórmula adotada para o cálculo de SC das variáveis QMG, IMG, quociente motor e idade motora individuais foi a Equação 3:
Em que:
Médiadisfunc= média da população disfuncional.
DPdisfunc= desvio-padrão da população disfuncional.
Como as variáveis TRcog e TRmot são indicadores negativos aplicou-se a Equação 4:
Para detectar se houve uma SC, analisa-se os quadrantes formados pelo cruzamento da linha vertical com a horizontal e pode-se afirmar que houve uma mudança clinicamente significativa, quando os participantes estão localizados no quadrante acima das linhas horizontais e à esquerda das linhas verticais.
Além do Método JT, foram calculados o tamanho de efeito (TE) pelo d de Cohen para verificar a magnitude do resultado pré e pós o programa de exergames, o erro padrão de medida (SEM) e a diferença mínima detectável (DMD), com o propósito de melhorar a análise das alterações promovidas pela intervenção. Para o cálculo do TE aplicou-se a Equação 5:
Em que:
x 2= média pré-intervenção.
x 1= média pós-intervenção.
DP1= desvio-padrão pré-intervenção do grupo.
Os valores de efeito foram baseados na proposta de Cohen, sendo classificados como “pequeno” (< 0,2), “médio” (0,2 a 0,8) e “grande” (> 0,8) (Lindenau & Guimarães, 2012).
O cálculo do SEM foi necessário para obter a DMD, sendo determinado pela Equação 6:
Em que:
r= índice de confiabilidade do instrumento.
Em seguida, verificou-se a DMD com nível de confiança de 95%, baseado na Equação 7:
Todos os cálculos foram realizados no programa Excel Microsoft® versão 2007.
RESULTADOS
O participante foi uma criança de seis anos e seis meses (80 meses), do sexo masculino, diagnosticado com TEA nível I, cujo responsável apresentou laudo emitido pelo psiquiatra com o diagnóstico. O participante fazia uso de meio comprimido de Ritalina (metilfenidato), de segunda a sexta-feira, antes de ir para a aula no ensino regular. Dentre as principais atividades e brincadeiras que gosta de fazer, relatou o pique-esconde, o carrinho, tocar piano e assistir desenho. A criança possuía conhecimentos básicos de videogame, pois jogava todos os sábados em sua casa, porém, não tinha experiência com os exergames.
Após comparar os resultados obtidos nas avaliações, observa-se nas Figuras 3A e 3B uma mudança positiva confiável (MPC) nas variáveis Quociente Motor Geral (QMG) e Idade Motora Geral (IMG) entre pré (QMG= 87,5/IMG= 70) e pós (QMG= 102,32/IMG= 88) intervenção com exergames, enquanto nas etapas 1 (QMG= 87,2/IMG= 72) e 2 (QMG= 86/IMG= 72) não houve alterações confiáveis, atribuindo, assim, uma ausência de mudança (AM).
Além disso, o QMG obtido pelo participante na etapa 1, está localizado à direita da linha tracejada vertical e entre as linhas tracejadas horizontais, o que significa um bom desempenho motor antes do início da intervenção. Na etapa 2 é mantido o escore dessa variável, que teve o seu desempenho motor potencializado a partir do programa de exergames, contudo, não se pode afirmar que houve uma mudança clínica significativa, pois o escores não se encontram no quadrante superior esquerdo. Em relação à IMG, os escores atingidos nas etapas 1 e 2 estão localizados no quadrante inferior esquerdo, implicando em uma amostra com déficits motores.
Ao analisar as avaliações pré e pós de interveção com exergames, as áreas motoras equilíbrio e esquema corporal/rapidez, obtiveram uma MPC no QM e na IM (Tabela 1).
Variáveis | Quociente motor | Idade Motora (meses) | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Av1 | Av2 | Av3 | Av4 | Av1 | Av2 | Av3 | Av4 | |
Motricidade Fina | 75 | 73,17 | 71 | 83,72 | 60 | 60 | 60 | 72 |
Motricidade Global | 127,5 | 124,39 | 121 | 118,64 | 102 | 102 | 102 | 102 |
Equilíbrio | 52,5 | 80,48* | 64 | 104,65* | 42 | 66 | 54 | 90* |
Esquema Corporal/Rapidez | 75 | 73,17 | 100 | 111,62 | 60 | 60 | 84 | 96* |
Organização Espacial | 45 | 43,9 | 43 | 41,86 | 36 | 36 | 36 | 36 |
Linguagem/Organização Temporal | 135 | 131,7 | 114 | 153,48 | 120 | 108 | 96 | 132 |
Av1: avaliação inicial; Av2: avaliação da etapa 1; Av3: avaliação da etapa 2; Av4: avaliação final; *mudança positiva confiável (índice de mudança confiávael> 1,96).
Identificou-se uma MPC no QM equilíbrio após as oito sessões iniciais de monitoramento, e ainda foi possível observar escores altos nas avaliações pré e pós-intervenção na área motora Linguagem/Organização Temporal. As demais variáveis examinadas não tiveram alterações significativas, embora seja possível observar pontuações maiores nos scores pós-intervenção na motricidade fina, linguagem/organização temporal.
A evolução do perfil motor e da relação idade positiva/negativa do participante, pode ser observada na Figura 4. Nota-se que houve um aumento no QMG e na IMG após o programa de exergames em detrimento da MPC, refletindo, assim, uma alteração na classificação do perfil motor de acordo com a EDM.
Av1: avaliação inicial; Av2: avaliação da etapa 1; Av3: avaliação 3 da etapa 2; Av4: avaliação final; QMG: quociente motor geral; IMG: idade motora geral; Idade +/-: relação da idade cronológica e idade motora geral; *mudança positiva confiável (índice de mudança confiávael> 1,96).
O participante manteve-se no perfil normal baixo nas avaliações 1, 2 e 3, entretanto, na avaliação 4 (após o término do programa de exergames) o perfil motor do participante passou a ser normal médio.
Nas variáveis tempo de reação (TRcog) e tempo motor (TRmot), não foram identificadas nenhuma mudança confiável após o programa de exergames (Figuras 5A e 5B), pois os escores estão localizados dentro do intervalo de confiança diagonal.
As alterações observadas entre as avaliações podem ser atribuídas a erro de medida e não em função da intervenção realizada. Outrossim, permite inferir que um programa com oito sessões não foi o suficiente para estimular positivamente o tempo de reação do participante.
Em relação ao TE, observa-se que embora não tenha sido detectada uma MPC na motricidade fina e organização temporal, foram encontrados um efeito forte e médio, respectivamente. Contudo, as DMD encontradas demonstram que as alterações presentes não atingiram os valores mínimos, sendo atribuídas a erro de medidas. O mesmo acontece com as medidas do TRcog e do TRmot (Tabela 2).
Variáveis | Tamanho do Efeito | SEM | DMD | ||
---|---|---|---|---|---|
Etp 1 | Etp 2 | Exerg | |||
QMG | 0,02 | -0,13 | 1,34 | 8,69 | 10,13 |
QM1 | -0,17 | -0,33 | 0,81 | 3,58 | 9,93 |
QM2 | -0,10 | -0,19 | -0,28 | 10,27 | 28,47 |
QM3 | 1,54 | 0,66 | 2,95 | 5,87 | 16,29 |
QM4 | -0,15 | 2,14 | 3,14 | 3,88 | 10,75 |
QM5 | -0,04 | -0,08 | -0,12 | 8,19 | 22,71 |
QM6 | -0,10 | -0,68 | 0,6 | 10,04 | 27,85 |
IMG (m) | 0,10 | 0,10 | 0,95 | 6,27 | 17,52 |
IM1 (m) | 0 | 0 | 0,94 | 4,23 | 11,74 |
IM2 (m) | 0 | 0 | 0 | 10,79 | 29,91 |
IM3 (m) | 0,87 | 0,43 | 1,74 | 9,15 | 25,37 |
IM4 (m) | 0 | 0,82 | 1,24 | 9,65 | 26,77 |
IM5 (m) | 0 | 0 | 0 | 8,80 | 24,41 |
IM6 (m) | -0,44 | -0,88 | 0,44 | 9,06 | 25,12 |
TRcog (ms) | 0,19 | 0,05 | 0,16 | 49,80 | 118,33 |
TRmot (ms) | 0,2 | 0,08 | 0,19 | 18,20 | 43,25 |
Etp1: etapa 1; Etp2: etapa 2; SEM: erro padrão de medida; DMD: diferença mínima detectável; QMG: quociente motor geral; QM: quociente motor; IMG: idade motora geral; IM: idade motora; 1: motricidade fina; 2: motricidade grossa; 3: equilíbrio; 4: esquema corporal/rapidez; 5: organização espacial; 6: organização temporal; TRcog: tempo de reação; TRmot: tempo motor; m: meses; ms: milésimos de segundos.
Já o equilíbrio e o esquema corporal obtiveram uma MPC com TE consideráveis na última fase do estudo. O QMG e a IMG apresentaram um efeito forte em ambas variáveis após a prática do exergames, sendo os escores finais maiores que a DMD. Ressalta-se que os resultados indicam um efeito positivo dos exergames no QMG e na IMG após oito sessões com duração entre 35 e 40 minutos, contribuindo com uma melhora no desempenho motor do participante.
DISCUSSÃO
O objetivo do presente estudo foi avaliar o efeito do exergames no desenvolvimento motor e no tempo de reação em uma criança com TEA. Os principais resultados observados foram:
MPC nas variáveis QMG e IMG, sendo o tamanho de efeito forte, mas sem significância clínica;
o QMG inicial indicou alto escores motores, todavia, o participante apresentou déficits motores;
MPC no esquema corporal/rapidez e no equilíbrio após a prática de exergames, com tamanho de efeito forte;
alteração no perfil motor para normal médio ao final das sessões;
MPC na variável equilíbrio na etapa 1 de monitoramento;
o programa de exergames não surtiu efeito no tempo de reação.
O efeito do uso de exergames no desempenho motor em crianças com TEA é controverso no meio acadêmico. Estudos realizados previamente — que avaliaram o impacto do videogame ativo na motricidade dessa população — apresentaram uma variabilidade de resultados. Milajerdi et al. (2021), ao investigarem o efeito de um jogo de tennis com o uso do Kinect nas habilidades motoras de 20 crianças iranianas com TEA (8,15± 1,50 anos), não encontraram melhoras nas variáveis analisadas pela Bateria de Avaliação de Movimento para Crianças (MABC-2) (destreza manual e equilíbrio) após 24 sessões. Resultado semelhante foi obtido no estudo de Edwards, Jeffrey, May, Rinehart e Barnett (2017) ao aplicarem seis sessões com jogos de exergames (Kinect Sports) em 11 crianças australianas com TEA (idade entre 6 e 10 anos), não sendo detectadas melhorias nas habilidades de controle de objetos avaliadas pelo Teste de Desenvolvimento Motor Grosso-3 (TGMD-3).
Todavia, Ghobadi et al. (2019) observaram uma melhora no equilíbrio estático e dinâmico em oito crianças iranianas com TEA (8,60± 2,53 anos), após 16 sessões com o Xbox 360 (Kinect Sports 1). Já no estudo de Vukicevic, Dordevic, Glumbic, Bogdanovic & Jovicic (2019), as cinco crianças sérvias com TEA (10,60± 1,52 anos) apresentaram melhora nas habilidades motoras grossa e fina após cinco sessões com o jogo Kinect Frutas (desenvolvido para o próprio estudo e específico para pessoas com TEA). Esses achados comprovam a incerteza dos efeitos dos exergames no desempenho motor de crianças com TEA, embora este estudo assinale para um resultado positivo da prática de jogos com uso do Kinect, refletindo uma alteração no QMG e na IMG do participante. Porém, nota-se o uso de diferentes testes para avaliar o efeito do exergames no desenvolvimento motor nos estudos evidenciados, fato que fortalece ainda mais as dificuldades em delimitar os impactos dessa prática de atividade física na população com TEA, uma vez que diferentes instrumentos de coleta de dados refletem variáveis distintas do desempenho motor. Outro fator que pode explicar a inconsistência dos resultados, se refere à pequena diversidade de jogos utilizados nos estudos — considerando que a maioria utilizou somente um tipo de jogo, explorando uma ou duas variáveis da motricidade —, limitando a experiência motora da criança e, consequentemente, não contribuindo com uma melhora significativa nas habilidades motoras avaliadas.
Em relação ao QMG e a IMG apresentados pelo participante neste trabalho, destaca-se que a IMG nas fases 1 e 2 confirmaram achados de pesquisas que apoiam os déficits motores na população com TEA comprovados em estudos de revisão sistemática (Ruggeri et al., 2020; Zampella et al., 2021). Fournier et al. (2010) evidenciam alterações significativas e generalizadas no desempenho motor no TEA relacionadas às áreas corticais e subcorticais, incluindo o córtex motor, os gânglios da base e a disfunção cerebelar, contribuindo com os déficits no planejamento motor, na integração sensório-motora e na execução motora. Ainda enfatizam a existência de um alto grau de heterogeneidade no desempenho motor dentro do espectro, assim como nos demais sintomas. O QMG, curiosamente, apresentou escores altos na pré-avaliação, mas, ainda assim, manteve o participante dentro do grupo com alterações motoras. Contudo, ao comparar as Figuras 2A e 2B, identificou-se os escores altos pré-intervenção e Significância Clínica calculados pelo método JT superiores na IMG devido ao desvio-padrão pré-intervenção também ser maior nessa variável, justificando, assim, a diferença existente e apontando a possível heterogeneidade no desempenho motor relatada por Fournier et al. (2010), que podem ser reflexos das alterações no cortéx motor, favorecendo que não haja um padrão motor consistente para uma mesma tarefa.
Em termos das áreas motoras avaliadas pela EDM, o presente estudo revelou MPC no equilíbrio e no esquema corporal após o programa com exergames. A escolha dos jogos a serem ministrados pode ter contribuido com a melhora do equilíbrio, tendo em vista que a maioria deles exigia um equilíbrio dinâmico, principalmente o Kinect Adventures. Pesquisas com o foco em estimular as habilidades motoras em crianças com TEA, têm sido aplicadas com diferentes propostas de intervenção. Recentemente, a revisão de literatura elaborada por Ruggeri et al. (2020), demonstrou que programas de dança, futebol, trampolim, Tai Chi Chuan, ginástica e atividades de habilidades motoras fundamentais contribuem para uma melhora do equilíbrio em crianças com TEA. Porém, nessa revisão não foram encontrados estudos que analisassem o esquema corporal, tendo as pesquisas se concentrado em estudar variáveis relacionadas à coordenação motora dessa população. Russo et al. (2018) realizaram um estudo em 20 crianças com TEA (5,5± 2,04 anos) e detectaram um déficit no esquema corporal, associando tal dificuldade à incapacidade das crianças com TEA em usar elementos corporais do outro como uma fonte de informação para a construção do seu próprio esquema corporal. No presente estudo, houve uma melhora detectável no esquema corporal que pode ser atribuída à duas hipóteses: a primeira, seria uma maior facilidade de a criança incorporar o autoconhecimento das próprias partes do corpo por meio da projeção do avatar; e a segunda, relacionada ao próprio instrumento de avaliação.
Segundo Fonseca (2008), a noção do corpo (esquema corporal) envolve um plano neurofuncional com integração neurológicas posturais e de programação motora que interage com o ambiente e os objetos, sendo necessário o seu bom desenvolvimento para realizar uma ação. Refere-se à qualidade da assimilação motora relacionada à informação sensorial resultante do movimento e participa na planificação motora, contribuindo para as percepções e aprendizagem do indivíduo. Essa área motora é de extrema importância para crianças com TEA, pois trata-se de um transtorno complexo com presença de vários sintomas para além das manifestações sociais e de comportamento repetitivo, podendo ser observadas dificuldades no contato facial e visual, na imitação, na coordenação motora, na atenção visual (Rotta et al., 2016) e no processamento sensorial (Posar & Visconti, 2018). Considerando esses obstáculos enfrentados por crianças com TEA, constata-se a importância de programas que estimulem o esquema corporal dessas crianças para reduzir os sintomas supracitados.
Nesse sentido, identificou-se a pesquisa de Rodrigues e Vidal (2021), na qual os autores aplicaram 20 sessões de atividades de boxes Chinês em uma criança brasileira com TEA (6 anos) para desenvolver habilidades psicomotoras. Os resultados apresentaram mudanças nos escores gerais da EDM após o programa (QMG (86-91)/IMG (62-66), sendo as áreas motoras: esquema corporal (60-72) e organização temporal (60-72) com maiores pontuações no teste pós-intervenção. Contudo, é necessário ponderar esses dados, pois, a análise do tipo descritiva adotada pelos pesquisadores, não permite conclusões de melhorias em detrimento a intervenção.
Outro fator a ser explorado refere-se às provas motoras estabelecidas na EDM para avaliar o esquema corporal, composta por duas etapas. A primeira, consiste em imitar 20 gestos motores que envolvem posições das mãos e dos braços e, a partir da relação entre a idade cronológica da criança e a quantidade de acertos na prova, é estabelecido o nível em que a criança se encontra, sendo possível atingir do nível 2 ao 5. Se a criança atinge esse último nível, prossegue para a etapa referente à agilidade, exigindo mais coordenação motora fina e atenção do que elementos que compõem o esquema corporal em si. A tarefa consiste em preencher uma folha quadriculada com traços únicos em cada quadrado durante um minuto, sendo imputado o nível motor a partir da quantidade de números de traços realizados corretamente pela criança. O avaliado pode atingir do nível 6 ao nível máximo 11. Desse modo, a melhora no esquema corporal não necessariamente irá refletir uma evolução nos processos do reconhecimento corporal e sua relação interna e externa com o ambiente. Essa reflexão também deve ser aplicada aos resultados encontrados neste estudo, uma vez que o participante atingiu o nível 5 nas duas primeiras avaliações, que equivale à pontuação máxima na primeira tarefa. Na avaliação da etapa 2 de monitoramento, o participante aumentou o seu nível, porém, não foi detectado uma mudança em detrimento à intervenção, mas sim, à erros de medidas. Já na aplicação do teste após o programa de exergames, a criança atingiu o nível 8, sendo observado uma MPC atribuída à intervenção com jogos de videogame ativo; no entanto, questiona-se a origem dessa melhora e se ela realmente reflete uma evolução no esquema corporal, pois a partir do nível 6 utiliza-se apenas uma única tarefa de rapidez, qual seja, preencher os quadradinhos com um risco único o mais rápido possível.
Neste estudo foi observada uma MPC na área motora equilíbrio após a etapa de monitoramento 1, etapa planejada para ser linha de base para a intervenção com exergames e estabelecer um vínculo entre pesquisador e participante. Os encontros semanais parecem ter influenciado o desempenho nas tarefas de equilíbrio da EDM, em razão de uma maior confiança e afinidade, acredita-se que o participante pode ter se sentido mais seguro para realizar as tarefas. Tal achado reforça a importância de pesquisas com intervenção cogitarem um delineamento em que considerem possíveis influências da relação estabelecida entre o avaliador e o participante, pois, durante a fase de monitoramento, não foram aplicadas atividades que incentivassem o desenvolvimento do equilíbrio. Ruggeri et al. (2020) chamam a atenção para as pesquisas realizadas na área do autismo, que em sua grande maioria apresentam um nível de evidência fraco atribuído a problemas metodológicos.
O programa de exergames não contribuiu com melhorias no tempo de reação neste estudo, uma possível explicação pode ser atribuída ao teste utilizado para avaliar essa variável, tendo em vista que a tarefa parecia ser monótona, exigia muita concentração e não apresentava nenhum atrativo para prender a atenção do participante. Tais fatos, associado às condições já apresentadas de déficits inerentes ao transtorno nas funções cognitivas, podem ter contribuído para esse resultado. Porém, há evidências de que o ambiente virtual interativo favorece o desempenho de crianças com TEA nos testes de tempo de reação. Lima Antão et al. (2020) demonstraram que após a prática do jogo MoviLetrando, por crianças brasileiras com TEA (11± 5 anos), houve uma redução no tempo de reação avaliado pelo Tempo de Reação Total. No estudo de Hilton et al. (2014), foram aplicadas 30 sessões do exergame fitness Makoto arena em oito crianças norte-americanas com TEA (idade entre 6,41 e 13,9) e identificaram uma melhora na velocidade de reação dos participantes, com um tamanho de efeito grande (d= 1,8). Acredita-se não ter sido detectadas alterações significativas no tempo de reação do participante por dois motivos: primeiramente, pelo baixo número de sessões aplicadas, além de uma possível maior variabilidade no tempo de reação de crianças com TEA quando comparada às crianças com desenvolvimento típico que pode ser atribuída às variabilidades neurais existentes e a base fisiológica no transtorno (Magnuson et al., 2019).
Fang, Aiken, Fang e Pan (2019) e Ruggeri et al. (2020), apontam a existência de poucos estudos que verificaram o efeito do exergame no tempo de reação e no desenvolvimento motor de pessoas com TEA, sendo os resultados inconsistentes em relação à contribuição do videogame ativo no desempenho motor. Mas, parece haver uma associação entre a prática dos exergames e consequente melhora nos processos cognitivos e nas valências físicas de crianças com TEA. Além disso, os exergames têm demonstrado favorecer o aumento de nível de atividade física (Jozkowski, Lichtenwalmner, & Cermak, 2016; Golden & Getchell, 2017) e diminuir comportamentos repetitivos nessa população (Lima et al., 2020). Dessa forma, o exergaming pode ser um complemento atraente e eficaz às intervenções aplicadas às crianças com TEA. Observa-se, por meio dos resultados das revisões apresentadas, que os desfechos encontrados em pesquisas com o uso de exergames necessitam ainda de maiores investigações sobre o seu efeito nos processos cognitivos e motores.
No que se refere às análises de dados aplicadas nos estudos encontrados, a maioria utilizou a estatística inferencial, contudo, a população com TEA apresenta uma diversidade de sintomas — mesmo aquelas com um conjunto de sintomas semelhantes — podendo, assim, o grupo conter uma heterogeneidade, além de na maioria das pesquisas de intervenção, o n amostral ser inferior à 20 indivíduos. Às vezes, a estatística aplicada não favorece uma real interpretação da evolução do participante. Villa et al. (2012) enfatizam a necessidade de as pesquisas de intervenção analisarem a confiabilidade das mudanças e, ao mesmo tempo, investigarem as variabilidades individuais, principalmente em uma população heterogênea, com o intuito de identificar com maior precisão os resultados para o indivíduo participante.
O presente estudo apresenta limitações em seu desenvolvimento, a saber:
a participação de um único sujeito é uma limitação do estudo, pois não permite a generalização dos dados para a população, embora essa seja uma limitação presente na maioria das pesquisas realizadas no autismo;
o não registro da intensidade da atividade física durante a prática de exergames impossibilitou a interpretação sobre uma possível influência da intensidade, uma vez que tem sido associada à magnitude do efeito, em alguns casos;
o uso da EDM para avaliar o desempenho motor, embora o instrumento apresente uma boa confiabilidade e é aplicado em pesquisas com TEA, pode não ter sido o suficiente para identificar as reais alterações no desempenho motor do participante;
a ausência do acompanhamento de um programa de exercício tradicional em conjunto com o exergames, poderia clarear se os efeitos motores e cognitivos acontecem com forças semelhantes em ambos os tipos de intervenção.
Nesse sentido, novas pesquisas devem ser conduzidas em um grupo maior para replicar e estender as descobertas, para explicar como os componentes do exergames influencian nos processos cognitivos e motores a médio e longo prazo. Sugere-se, ainda, a aplicação de pesquisas que objetivam avaliar a variabilidade no tempo de reação intrassujeito em crianças com TEA, com intuito de elucidar os mecanismos que o envolvem e, consequentemente, proporcionar planejamentos de intervenções capazes de estimular o tempo de reação adequadamente nessa população.
CONCLUSÕES
Identificou-se uma mudança positiva confiável nos índices gerais do desempenho motor da criança com TEA após a intervenção de oito semanas de exergames, com um tamanho de efeito forte. As maiores influências foram nas áreas motoras: equilíbrio e esquema corporal/rapidez. Não foi observada nenhuma alteração no tempo de reação após o programa aplicado. Sendo assim, pode-se concluir que oito sessões de exergames promoveram alterações efetivas no desempenho motor da criança com TEA, mas não no tempo de reação. Frente aos resultados, entende-se pertinente sugerir algumas aplicações práticas dos exergames no contexto profissional e familiar. No contexto profissional, os exergames poderão ser utilizadados para estimular as habilidades motoras de crianças com autismo dentro do contexto clínico ou educacional, ofertando uma forma diferenciada das terapias convencionais. Já no contexto familiar, os pais ou responsáveis, quando possível, adquirir um aparelho similar para realizar o estímulo em casa. Contudo, ressalta-se a importância de obter orientações de profissionais da área sobre a quantidade de estímulo a ser oferecido à criança, bem como quais os jogos a serem empregados.