INTRODUÇÃO
O exercício físico (EF), a atividade física (AF) e o desporto são conceitos que, por vezes, são confundidos, misturados ou usados de forma incorreta. O conceito de AF pode ser descrito como: “qualquer movimento voluntário produzido pelo músculo-esquelético e que resulta num aumento do metabolismo basal” (Caspersen et al., 1985) e, segundo a Organização Mundial da Saúde (2020), a sua prática regular pode prevenir e ajudar a controlar doenças metabólicas e cardiovasculares, tendo um papel fundamental na saúde mental e qualidade de vida (QV). Por sua vez, o EF contempla um planeamento sistemático de AF, com uma estrutura e repetição definidas, tendo em vista manter ou melhorar uma ou mais componentes da aptidão física, nomeadamente, a força, a capacidade cardiorrespiratória, o equilíbrio e a flexibilidade (Caspersen et al., 1985). Outro conceito importante a ter em consideração é o desporto. Segundo a Carta Europeia do Desporto (Ministério da Educação, 1992), nomeadamente no Artigo 2º: “Entende-se por Desporto todas as formas de atividade física que, através de uma participação organizada ou não, têm por objetivo a expressão ou o melhoramento da condição física e psíquica, o desenvolvimento das relações melhoramento da condição física e psíquica, o desenvolvimento das relações sociais ou a obtenção de resultados na competição a todos os níveis.”
O desporto é um direito transversal a todos os indivíduos, conforme o Artigo 2.º da Lei n.º 5/2007 - Diário da República n.º 11/2007, Série I de 2007-01-16 – Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto e a Constituição da República Portuguesa, na 7.ª revisão constitucional (2005), através do Artigo 79.º e constitui um fator indispensável na formação do indivíduo e no desenvolvimento da sociedade.
O desporto e a educação estão interligados, na medida em que assentam os seus valores na educação, convívio, amizade, confiança, solidariedade e autonomia, objetivando o desenvolvimento da personalidade e da cidadania, sendo, por isso, o desporto útil à sociedade (Marques, 2001). Para Sarmento (2020), o desporto, mais do que um espetáculo, é uma prática social e educativa, promovendo o desenvolvimento orgânico da aptidão física e da saúde (composição corporal, higiene, entre outros), permitindo um entendimento do valor do corpo (superação e limites) e, por outro lado transmitindo os valores da cooperação, trabalho em grupo e respeito pelo outro. Através do desporto, podemos também trabalhar e desenvolver as competências de vida, nomeadamente intelectuais, cognitivas, motoras e físicas (Gomes & Resende, 2020).
A população com Dificuldade Intelectual e Desenvolvimental (DID) é caracterizada por um défice de funcionamento intelectual e adaptativo nos domínios conceptual, social e prático. De igual modo, é identificada com os níveis: leve, moderado, grave e profundo, de acordo com o seu quociente de inteligência e desenvolve-se antes dos 18 anos na perspetiva da American Psychiatric Association (2013) ou dos 22 no modelo teórico de Schalock et al. (2021). De referir que a nomenclatura DID, veio substituir os termos anteriormente utilizados “deficiência mental” e “atraso mental”, na convicção que é um termo menos ofensivo para os indivíduos e foi proposto pela American Association on Intellectual and Developmental Disabilities (AAIDD) (Schalock et al., 2021). Apesar de existirem várias subpopulações com DID, com as suas características heterogéneas, a maioria da literatura apenas se foca nos indivíduos com e sem Síndrome de Down.
Em Portugal, segundo os Censos 2001 (INE, 2002), o número de pessoas com deficiência era de 636.059 pessoas, numa população com um total de 10.3 milhões de habitantes, ou seja, 6.13% da população tinha algum tipo de deficiência. A partir dos Censos 2011 (INE, 2012), existiu uma alteração metodológica ao nível da recolha de dados sobre a deficiência, passando a privilegiar-se a funcionalidade/incapacidade/dificuldade como resultado da interação do indivíduo no contexto. As questões de avaliação com base no diagnósticos, foram alteradas e passaram a retratar as limitações ou o grau de dificuldade dos indivíduos, face a situações reais do dia a dia (ver, ouvir, andar, memória, concentração, tomar banho/vestir-se sozinho e compreender/fazer-se entender) (INE, 2011). Apesar de se integrarem os indivíduos com DID nos dados da população em geral, em Portugal, este facto impossibilita a sua quantificação, ao certo. Contudo, segundo os dados dos Censos 2011 (INE, 2012), 17.79% da população com 5 ou mais anos e 49.51% da população com 65 ou mais anos declaram ter dificuldade em realizar pelo menos uma das 6 atividades diárias referidas anteriormente.
Segundo o instituto Instituto Português do Desporto Juventude (2016) as seguintes características podem estar presentes num indivíduo com DID: baixa inteligência, défice de comportamentos adaptativos, nomeadamente no que diz respeito aos cuidados pessoais (hábitos à mesa, locomoção, higiene e vestuário), capacidades de comunicação, como a linguagem falada, escrita, atividade numérica e desenvolvimento de conceitos temporais e sociais, bem como de ocupação (atividades domésticas, recreativas, comportamento em sala de aula, sexualidade, agilidade, destreza, concentração, responsabilidade, capacidade de cumprir ordens e inserção num grupo).
Desde a década de 90 do século passado, a palavra inclusão tem estado na vanguarda e tem sido associada à pessoa com deficiência. Em Portugal, vários passos têm sido dados para uma verdadeira inclusão das pessoas com deficiência na sociedade, nomeadamente com a apresentação da Estratégias Nacional para a Inclusão das Pessoas com Deficiência 2021-2025 (ENIPD 2021-2025), sendo um objetivo estratégico, na medida em que se pretende valorizar todos os cidadãos e cidadãs, potenciando-as e capacitando-as. Contudo, aparentando ser uma palavra efetuosa, a palavra inclusão acarreta um preconceito carregado de exclusão. Para incluir, significa que algo foi planeado sem pensar uma determinada dimensão ou incluir quem está excluído. Daí, surgiu o conceito integrar, no qual o indivíduo com deficiência deve ser integrado nas aulas de educação física, no ginásio, na sociedade em geral. De igual modo o estigma e o preconceito ainda são frequentes para com esta população (Reis et al., 2019), o que pode estar relacionado com a exclusão da sua participação em atividades na sociedade e despreocupação com as suas vontades, objetivos e QV, que foi evidente durante longos anos.
Através de uma reflexão da informação extraída pela revisão narrativa de literatura, sintetizada e estruturada em torno dos temas/termos: 1) EF; 2) DID; 3) técnico de EF, o presente estudo tem como objetivo examinar as evidências científicas que suportam a importância do EF e ao papel do técnico de EF como promotor da aptidão física e o seu impacto no desempenho das atividades de vida diária e, por conseguinte, da QV de indivíduos com DID.
METODOLOGIA
As revisões narrativas são abordagens válidas para conhecimento geral, englobando informação ampla sobre um tema específico, de forma coesa e organizada, apesar de não serem utilizadas descrições metodológicas detalhadas e restritivas das revisões sistemáticas (Bettany-Saltikov, 2010).
Em termos metodológicos, foi utilizada uma pesquisa bibliográfica nas bases de dados: Pubmed (título e resumo), Web of Science (título, resumo e palavras-chave), Scopus (título, resumo e palavras-chave) e SPORTDiscus (título, resumo e palavras-chave). A pesquisa foi atualizada até ao dia 18 de março de 2022 e foram utilizadss os seguinte termos de pesquisa nas diferentes bases de dados: (“intellectual disability” OR “intellectual disabilities” OR “mental retardation” OR “down syndrome”) AND (“fitness professional” OR “exercise professional” OR “fitness instructor” OR “exercise instructor” OR “personal trainer” OR “physical education teacher” OR “professional development”).
Desenvolvimento
A presente revisão narrativa examina as evidências científicas que relacionam o EF e o papel do técnico de EF à promoção aptidão física, desempenho das atividades de vida diária e, por conseguinte, da QV de indivíduos com DID. Tendo em consideração a abrangência de informação recolhida, a secção de desenvolvimento foi dividida em quatro partes: i) EF e DID; ii) técnico de EF e DID; iii) aspetos físicos, fisiológicos, psicológicos, sociais e emocionais inerentes à DID; iv) Técnico de EF como promotor da QV de indivíduos com DID.
Exercício físico e dificuldade intelectual e desenvolvimental
Na Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência (Lei n.º 38/2004, de 18 de Agosto) a prática desportiva apresenta contributos para o desenvolvimento da capacidade de integração social de pessoas com deficiência, e determina que a política do desporto crie condições para a participação dessas mesmas pessoas (artigo 38.º), nomeadamente a criação/construção de estruturas adequadas, que, segundo a Constituição da República Portuguesa, na 7.ª revisão constitucional (2005) e a Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (Artigo da 2º Lei n.º 5/2007 - Diário da República n.º 11/2007, Série I de 2007-01-16), é um direito de todos e um fator indispensável na formação da pessoa e no desenvolvimento da sociedade.
A prática de AF, EF e/ou desporto tem sido amplamente aceite como um método eficaz e não dispendioso para promover a aptidão física. Como benefício adjacente, a redução do risco do aparecimento de doenças metabólicas e cardiovasculares e, conseguinte, a promoção da saúde mental e QV, torna a sua prática regular imprescindível (ACSM, 2017; World Health Organization, 2020).
Apesar de serem escassos os estudos de intervenção ao nível do EF, na DID, existem indicadores de que a prática de AF, EF e/ou desporto tenham impacto nas variáveis referidas anteriormente (Bartlo & Klein, 2011; Jacinto et al., 2021a; Jacinto, et al., 2021b).
Com o aumento da esperança de vida destes indivíduos, causas de morbilidade e mortalidade, devido a doenças cardiovasculares e outras complicações como a obesidade e sedentarismo, também aumentaram comparativamente à população sem esta patologia (Janicki et al., 1999). Apesar dos benefícios do EF, os estilos de vida sedentários são uma realidade nesta população (Dairo et al., 2016), fazendo com que não atendam às recomendações para a prática de AF (World Health Organization, 2020). Esta baixa adesão aos estilos de vida ativos está diretamente relacionada com uma baixa aptidão física e consequentes baixos níveis de todas as capacidades físicas (Chow et al., 2018), o que os coloca mais suscetíveis de desenvolver doenças crónicas (de Winter et al., 2012). Como mencionado anteriormente, estes fatores levam a um grande dispêndio em gastos com a saúde (afetando o poder socioeconómico do seio familiar e do país) (Robertson et al., 2000), aumentando também a taxa de mortalidade (Glover et al., 2017) nos indivíduos com DID.
Algumas características associadas à DID afetam a adoção de estilos de vida ativos e comprometem o sucesso na realização das tarefas diárias, como problemas fisiológicos, de saúde, ou outro tipo de deficiência associado (multideficiência) (van Schijndel-Speet et al., 2014). Existem ainda outros tipos de barreiras que comprometem/dificultam/impedem a prática regular de EF/AF, nomeadamente fatores familiares, sociais, arquitetónicos e financeiros (van Schijndel-Speet et al., 2014). No estudo de Jacinto et al. (2021c) é também mencionada especificamente a barreira da falta de técnicos especialistas em AF adaptadas.
É uma necessidade clara de mercado os técnicos de EF com competências técnicas para desempenhar funções no âmbito da intervenção profissional no contexto da AF adaptada (modalidades coletivas; fitness; Instituições Particulares de Solidariedade Social).
Técnico de exercício físico e dificuldade intelectual e desenvolvimental
Em Portugal, tendo em consideração o Decreto-Lei n.º 39/2012 de 28 de agosto, o técnico de EF é a figura responsável para orientação e condução do exercício de AF e desportivas (antigo PROCEAFD), devendo este profissional ser titular de uma licenciatura na área do desporto e da educação física, bem como a presença assídua em ações de formação contínuas e creditadas.
O técnico de EF desempenha um papel ativo na promoção da saúde pública (Melton et al., 2008) e é visto como um elemento chave na “luta” contra a obesidade (Florin et al., 2012). Por sua vez, a prática regular de EF é visto como uma forma de promover a saúde e longevidade (Sallis, 2009) e têm como missão o combate à obesidade e à inatividade física, a educação para a cidadania, para os valores da sociedade, solidariedade, transparência, respeito e igualdade (Rodrigues, 2020).
Vários são os estudos que se têm debruçado sobre a formação de técnicos de EF, treinadores e professores (Rodrigues, 2020), contudo, para intervir na área da deficiência, nomeadamente na DID atendendo ao seu perfil de funcionamento, é necessário formação específica (Rimmer et al., 2017), para além da formação base na área das ciências do desporto, que lhe fornece um conjunto de competências básicas que lhe confere o estatuto profissional. Sem essa formação específica, os resultados podem não ser os desejados, aumentando a taxa de abandono, lesões e diminuindo a eficácia e o sucesso de programa de intervenção (Obrusnikova et al., 2021). Pretende-se, com base nessa formação especializada, transmitir conhecimentos e competências essenciais e determinar os níveis mínimos de competência para exercer funções nesta área particular (Sarmento et al., 2000).
Conscientes de um contexto de atividade profissional muito vasto e diversificado, tendo em conta as suas especificidades e atuações ao nível profissional (clubes, ginásios, associações desportivas, federações, coletividades, sistema educativo, entre outros), este fato poderá conduzir a dificuldades no desenvolvimento curricular (Rodrigues, 2020). Neste contexto, as Unidades Curriculares ou os planos de estudos com foco na temática da AF adaptada deverão constar nos ciclos de estudos, dos diversos cursos do ensino superior, nas áreas das ciências do desporto e devem incidir nas competências, pedagogia e experiência relacionadas com a pessoa com deficiência (Obrusnikova et al., 2021), sustentadas no conhecimento técnico e científico, resultado da investigação validada e testada (Rodrigues, 2020).
Esta necessidade de abordar as questões da AF adaptada são evidentes e têm demonstrado ser eficazes para o sucesso do técnico de EF na execução das suas funções, bem como do desempenho do aluno (Koh, 2021). Contudo, os cursos de ensino superior ainda carecem de formação a este nível e os técnicos de EF/professores, por vezes, demonstram atitudes menos positivas fase à deficiência (Hersman & Hodge, 2010). Tendo em consideração que Portugal possui 36 licenciaturas nas áreas das ciências do desporto, existe alguma incerteza acerca do ensino dos futuros profissionais que intervenham com a população com deficiência, reconhecendo que alguns aspetos necessitam de ser objeto de reflexão: i) volume de abordagem às questões da atividade física adaptada; ii) quais os modelos de formação utilizados e se a abordagem é direcionada ao formando e formador e às suas competências e à necessidade do mercado; iii) quais os processos pedagógicos utilizados; iv) quais as competências que devem ser adquiridas; v) qual o volume prático e de contato com a população; vi) e se a formação inicial (licenciatura) será suficiente para um sucesso no desenrolar das funções.
Não é só uma necessidade dos técnicos de EF, é também transversal aos professores de educação física. Com a escolaridade obrigatória até aos 18 anos, houve um crescente aumento de alunos com DID nas escolas (Rodrigues & Nogueira, 2010), aumentando a probabilidade do contato com um indivíduos com necessidades educativas especiais e deficiência nas aulas. Caso os professores não possuam uma formação específica na área, a inclusão de alunos com deficiência nas suas aulas de educação física também não será realizada de forma plena.
Ao contrário de outras profissões relacionadas com a saúde, os técnicos de EF não são obrigados, por lei, a terem esta licença para exercerem a sua profissão (Melton et al., 2008). Assim, qualquer local/instituição/organização onde se desenvolva e dinamize AF adaptadas, não são obrigados a contratarem um técnico com competências específicas para a intervenção (Melton et al., 2008).
A realização de cursos de formação para os profissionais, não apenas ao nível da formação inicial, mas também da formação contínua e específica, com a integração de conteúdos programáticos nos seus planos de estudo englobando as dimensões do EF para os indivíduos com DID, bem como a caracterização dos aspetos físicos, fisiológicos, psicológicos, sociais e emocionais inerentes à DID, é fundamental para o sucesso no desenrolar das funções, no âmbito da intervenção profissional, no contexto da atividade física adaptada. Este acréscimo de conhecimento e competências, permite a atualização das competências técnicas alusivas ao EF, o desenvolvimento e progressão profissional do técnico de EF, bem como uma visão mais holística e detalhada do indivíduo, contribuindo para uma ajustada programação, estruturação, execução e acompanhamento das diversas sessões de programas de EF, promovendo o bem-estar e QV de indivíduos com DID (Jacinto, 2020).
O técnico de EF deverá focar-se no desempenho do praticante com DID, orientada para os seus objetivos. Segundo o Quadro Europeu para as qualificações (Parlamento Europeu e do Conselho, 2008), um técnico de EF deverá ser portador de conhecimentos profundos na áreas das ciências do desporto, capaz de realizar uma reflexão crítica às teorias e princípios. Deverá ser revelador de mestria e inovação para dar resposta a problemas complexos e imprevisíveis e ainda deverá adotar uma postura responsável no processo de desenvolvimento profissional individual e coletivo, capaz de gerir as tomadas de decisões.
A título de exemplo, o American College of Sports Medicine (ACSM, 2017) desenvolveu um certificado para técnicos de EF que intervenham com população com deficiência – the Certified Inclusive Fitness Trainer (CIFT), contudo, mais importante que o certificado é o conjunto de competências/capacidades e o perfil do futuro técnico de EF que irá intervir com a população com DID. Em Portugal, começam a surgir mais opções de formação nesta área, resultado de uma constante busca de aquisição de competências e conhecimentos por parte dos técnicos de EF, cientes da importância da sua função na promoção da QV na população com deficiência, incluindo a DID, bem como uma procura de ferramentas e estratégias que auxiliam nas dificuldades no desenrolar da sua intervenção (Direção-Geral do Ensino Superior, 2022). Uma maior valorização da profissão e da necessidade clara desta formação específica, por parte das entidades empregadoras, aumentava a qualidade das intervenções realizadas, promovendo a sua saúde e longevidade, diminuindo os gastos com a saúde (Robertson et al., 2000) e a taxa mortalidade e morbilidade (Glover et al., 2017), resultando de uma maior QV dos indivíduos.
Aspetos físicos, fisiológicos, psicológicos, sociais e emocionais inerentes à dificuldade intelectual e desenvolvimental
Apenas técnicos que tenham competências adequadas, capazes de garantir a integridade física e humana de qualidade, resultado de uma formação de qualidade, garantida com o ensino superior e formações complementares, devem prescrever EF para indivíduos com DID (ACSM, 2017).
Entre muitas funções e competências do técnico de EF, destaca-se a capacidade de diagnóstico do movimento e das capacidades físicas. No âmbito da avaliação da aptidão física, o técnico de EF terá que possuir competências para dominar as recomendações da American College of Sports Medicine (2017) (Tabela 1), especificamente as do capítulo destinado a esta população.
Tabela 1. Avaliação da condição física na dificuldade intelectual e desenvolvimental.
DID | Realizar | Evitar |
---|---|---|
Aptidão Cardiorrespiratória | Protocolos com velocidades de marcha individualizados em passadeira; Schwinn Airdyne (ergómetro) de braços e pernas com níveis de 25W; 20 min de corrida (“vai e vem”); Teste da milha de Brockport (Winnick & Short, 2014). | Protocolos de corrida em passadeira; Cicloergómetro; Ergómetro de braços; Corrida de 1-1,5 milhas. |
Força Muscular e Resistência | Teste de 1RM usando máquinas de musculação; Testes isocinéticos; Contração isométrica voluntária máxima. | Teste de 1RM usando pesos livres; Flexões; Elevações. |
Composição Corporal | IMC; Perímetro da cintura; DXA; Pregas adiposas; Pletismografia por deslocamento de Ar. | |
Flexibilidade | Senta e alcança; Goniometria. |
Fonte: ACSM (2017).
Ao mesmo tempo, terá que ser conhecedor das recomendações para a prescrição de EF, controlo do treino e da performance dos praticantes (ACSM, 2017) (Tabela 2).
Tabela 2. Recomendações para a prática de EF para adultos com dificuldade intelectual e desenvolvimental.
DID | Aeróbio/Cardiorrespiratório | Força Muscular | Flexibilidade |
---|---|---|---|
Intensidade | 40%–80% VO2Res | Começar com 12 repetições a 15-20RM durante 1-2 semanas; progredir para 8-12RM (75%-80% de 1RM) | Pelo menos 2-3 vezes por semana. |
Duração | 30-60 min/dia. Recomendado a realização de períodos mais curtos (10-15min) durante o dia | 2-3 séries com intervalos de 1-2 min entre séries | 2 a 4 alongamentos, 10 a 30 segundos cada. |
Frequência | 30-60 min/dia. Recomendado a realização de períodos mais curtos (10-15min) durante o dia | 2-3 dias/sem | 2 a 4 alongamentos, 10 a 30 segundos cada. |
Tipo | Marcha é a principal atividade recomendada especialmente no início do programa, sendo aconselhado a progressão para a corrida; Natação e ergómetro de braços ou pernas |
Usar máquinas destinadas aos 6-8 principais grupos musculares; supervisionar o programa nos primeiros 3 meses | Alongamentos estáticos |
Fonte: ACSM (2017).
Antes da realização das avaliações físicas ou da execução dos exercícios, em termos sequenciais, é necessária uma familiarização como os métodos e/ou procedimentos, para que o indivíduo compreenda e execute a tarefa com sucesso. Uma demonstração por parte do técnico de EF também é importante para uma melhor execução do movimento (ACSM, 2017).
Também é importante ter em consideração a heterogeneidade da população e a consciência da estrutura e planeamento da sessão de forma individual e adaptada a cada sujeito. Ser adaptada não denota uma desvalorização, ausência de importância sociológica ou desportiva. Pelo contrário, objetiva respeitar as limitações/dificuldades individuais, adaptando a atividade/tarefa, possibilitando a excelência desportiva através da realização plena e potencia benefícios fisiológicos, psicológicos e sociais ao praticante (Instituto Português do Desporto Juventude, 2016).
De acordo com o American College of Sports Medicine (2017) os programas de exercícios prescritos e aplicados ao indivíduo com DID devem incidir nas seguintes capacidades físicas: aeróbia, força, resistência muscular e flexibilidade.
O controlo da intensidade de treino terá que ser realizado com apoio a métodos específicos (exemplo: método 3 repetições máximas) ou equipamentos tecnológicos (cardiofrequêncimetros), uma vez que a maioria dos indivíduos com DID tem dificuldades na perceção da intensidade e não têm capacidade para associar uma escala ao esforço percebido e dar uma resposta (ACSM, 2017).
Ao nível fisiológico, o cuidado especial a ter em consideração prende-se essencialmente com os indivíduos com DID e Síndrome de Down, uma vez que, muitas vezes estão associados a uma doença cardíaca congénita e à instabilidade atlantoaxial, apresentando um movimento excessivo entre as articulações das primeiras vértebras cervicais (C1 e C2), causado pela frouxidão ligamentar (ACSM, 2017). É então necessário um especial cuidado na prescrição de exercício que envolvam cargas e impacto, e evitar prescrever exercícios que envolvam saltos, mergulhos, cabecear uma bola, desportos de contato e exercícios de hiperextensão e hiperflexão do pescoço (ACSM, 2017). De igual modo, para os exercícios a prescrever é importante ter em consideração a amplitude e velocidade de movimentos, evitando o descolamento de algumas articulações ou outras lesões, devido a uma hipotonia generalizada, que influencia o sistema musculoesquelético e ligamentar do indivíduo (Morris et al., 1982). Alterações do sistema nervoso simpático e parassimpático podem afetar a frequência cardíaca, pressão arterial, capacidade cardiorrespiratória, capacidade de trabalho e o débito cardíaco (Morrison et al., 1996), sendo necessário uma monotorização e um acompanhamento constante.
A toma de medicamentos, recorrente em indivíduos com DID, prescritos para estabilizar ou melhorar o humor, estado mental ou comportamental, podem causar um aumento do peso corporal, alterações no perfil lipídico ou da glicémia, que, para além de aumentar o apetite, aumenta a sensação de fadiga (Mangurian et al., 2016). Esta medicação pode influenciar ainda o equilíbrio, a capacidade neuromuscular e aeróbica (Perez-Cruzado et al., 2018), resultado da interação entre medicamentos e os recetores neurais de dopamina, serotonina e histamina. Em muitas situações, a toma de medicamentos diminuiu a motivação e a adesão a atividades físicas (Cox & Virués-Ortega, 2016), pelo que o encorajamento e o reforço positivo terá que ser constante.
O Instituto Português do Desporto Juventude (2016) também fornece um conjunto de recomendações ao profissional que intervenha junto desta população que deverá ter em consideração. Entre elas salientam-se: i) não ter receio de colocar questões; ii) check up médico antes de iniciar a prática; iii) planificar atividades e movimentos adaptados aos condicionamentos físicos, cognitivos e relacionados com a idade; iv) conheça os níveis de aprendizagem/cognitivos, socioafetivos, físicos/motores: v) histórico de prática; vi) não sobrecarregar o praticante com informações e/ou instruções; vii) garantir o foco do atleta, mantendo o contato visual; viii) consciência de que o plano inicial poderá ter que ser alterado; ix) garantir a segurança do praticante, estabelecendo uma relação de confiança mútua; x) sabendo que estes indivíduos poderão levar mais tempo a entender as informações e instrução, deveram ser questionados com frequência se entenderam; xi) repetições, estruturas e rotinas são úteis.
Por outro lado, o técnico de EF terá que adotar uma postura repleta de autodeterminação e autoconfiança em todas as tarefas e situações específicas, sendo que estes níveis vão sendo fomentados com o acumular de sucessivas experiências (Bandura, 1986). De igual modo, deverá adotar estratégias (processo de avaliação e acompanhamento da sessão) instrucionais, motivacionais, denominadas como reforços como por exemplo palavras, expressões corporais e faciais, proximidade (física e tocar), objetos (materiais, prémios, brinquedos), privilégios e atividades (Sprinthall & Sprinthall, 1993), objetivando a manutenção da motivação para o exercício de indivíduos com DID. O feedback ou as instruções dadas deverão ser o mais personalizado possível e, se possível, recorrer ainda a reforços positivos.
De forma a manter a motivação dos indivíduos e a manutenção nos programas de EF, embora respeitando a periodização e os objetivos definidos, deve-se contemplar a variação dos exercícios evitando causar aborrecimento e desinteresse dos praticantes, atuando com facilitador no processo de ensino-aprendizagem. Recomenda-se a utilização de uma metodologia e/ou uma periodização flexível, sendo ajustada ao longo do desenrolar das sessões de treino e do próprio programa de EF (Jacinto, 2020).
Tão importante como as estratégias a implementar, é o investimento que o técnico de EF terá que realizar para adquirir uma relação para com o indivíduo com DID (Bains & Turnbull, 2020). Para Jacinto (2020), partindo de uma metodologia participante-observador, o técnico de EF terá que ser mais do que o “professor de educação física” ou o personal trainer. Esta relação terá que estar assente na base da amizade, respeito mútuo e confiança, levando a que o indivíduo com DID confie no profissional e nas tarefas que lhe propõe, aceitando-as e encarando-as com maior motivação e agrado. A fomentação e aprimoramento da relação técnico de EF–aluno, facilitará o caminho trilhado, o alcance dos objetivos propostos, bem como o sucesso do programa de EF. O técnico de EF terá que conhecer bem o indivíduo com DID e a interação entre ambos deverá ser constante. De igual modo, o técnico de EF deverá ter a oportunidade de observá-lo em diferentes contextos da vida, sendo conhecedor das experiências e circunstância de vida e sendo, para este, uma pessoa de referência (Simões et al., 2017). Nos momentos de maior resistência, se essa relação não se encontrar bem consistente e existir um completo conhecimento do técnico de EF acerca do indivíduo com DID, dificilmente conseguirá cumprir com sucesso o plano de treino prescrito para a sessão ou os objetivos previamente definidos (Jacinto, 2020).
Para que indivíduos com DID alterem os seus comportamentos menos desejáveis, nomeadamente os sedentários e a inatividade física, constata-se a necessidade de os sensibilizar, bem como aos pais/familiares/tutores, profissionais que trabalham junto destes e instituições/organizações que fornecem apoios, educando-as e capacitando-as com conhecimentos e práticas saudáveis e ativas, que irão contribuir para uma vida com saúde e plena na participação social. A título de exemplo, a realização de campanhas de sensibilização (exemplo: comunicação social, palestras, entre outras formas) assente no pressuposto que o EF, para pessoas com deficiência, acrescenta valor à vida, que lhes proporcionam melhor capacidade relacional, mais competência, mais autonomia e melhor aptidão física, bem como uma postura com mais autodeterminação e, consequentemente, QV, auxiliando na prevenção de doenças típicas nesta população. De destacar que os pais/famílias/tutores devem promover a adoção de estilos de vida mais ativos, logo na infância, desde que a condição clínica o permita, de modo que o gosto e prática de AF se mantenham ao longo da vida, promovendo a sua QV e evitando os comportamentos sedentários desta população (Jacinto, 2020).
Técnico de exercício físico como promotor da qualidade de vida de indivíduos com dificuldade intelectual e desenvolvimental
Considerando a definição da Organização Mundial da Saúde, em que a QV “não é apenas a ausência de doença ou enfermidade, mas um estado de completo bem-estar físico, mental e social dos indivíduos” (World Health Organization, 1946), o EF, à imagem da população em geral, pode demonstrar ser um método eficaz e não dispendioso de promover a QV de indivíduos com DID (Jacinto et al., 2021b; Pestana et al., 2018).
Para Schalock et al. (2002), a QV de um indivíduo com DID é um conjunto de vários fatores que englobam o seu bem-estar e a sua perceção sobre o seu posicionamento social, tendo em conta valores socioculturais, necessidades, expectativas e preferências individuais. Estes autores apresentaram um modelo concetual de QV para a população em foco, que, entre vários fatores a podem influenciar, nomeadamente o bem-estar (Tabela 3).
Tabela 3. Modelo conceptual de qualidade de vida.
Fator | Domínio | Indicadores |
---|---|---|
Independência | Desenvolvimento Pessoal | Atividades da vida diária, Comportamento adaptativo |
Autodeterminação | Escolhas, decisões e objetivos pessoais | |
Participação Social | Relações interpessoais | Atividades sociais e amizades |
Inclusão Social | Inclusão social/envolvimento na comunidade | |
Direito | Humanos e legais | |
Bem-estar | Emocional | Proteção e segurança e ausência de stress |
Físico | Saúde, nutrição, desporto, recreação e lazer | |
Material | Emprego e estatuto económico |
Fonte: Schalock et al. (2002).
Se ainda existiam dúvidas sobre o impacto do EF na QV de indivíduos com DID, Pérez-Cruzado & Cuesta-Vargas (2016) demonstram que a intervenção com uma duração de 8 semanas e uma periodicidade de 2 horas semanais tem impacto positivo na QV dos participantes, quando avaliados pela escala World Health Organization Quality of Life Scale - Disabilities Module (WHOQOL-DIS). Também Bartlo e Klein (2011) através de uma revisão sistemática de literatura, revelam evidências moderadas a fortes que o EF afeta positivamente a QV dos praticantes com DID. Contudo, devido à escassez de estudo experimentais existentes, é difícil definir a metodologia de treino mais eficaz para promover tal variável.
Segundo o Instituto Português do Desporto Juventude (2016), para além do desenvolvimento das capacidades motoras e físicas, esta prática desportiva tem impacto na autoestima, empregabilidade, capacidade cognitiva e de socialização.
Nesta população, o Índice Massa Corporal e adiposidade abdominal (perímetro da cintura) são marcadores importantes associados a doenças metabólicas e a QV (Kobo et al., 2019). O treino combinado já demonstrou melhorias nestas variáveis (Ayaso-Maneiro et al., 2014), assim como o treino aeróbio (Boer et al., 2014), e o treino de força (Jacinto et al., 2021b). De igual modo, têm impacto noutras variáveis antropométrica, da aptidão física, capacidade cognitiva e perfil lipídico, hemodinâmico e metabólico.
De igual modo, o estudo de Raulino et al. (2014) destaca a importância que o treino de força exerce no desempenho das atividades de vida diária (como por exemplo levantar/sentar, locomoção, entre outros). Ao realizar um estudo experimental de 12 semanas, com uma frequência semanal de 2 vezes, prescrevendo 8 exercício de força, com incidência nos principais grupos musculares (2-3 séries, entre 60% a 90% de 1 RM), o autor concluiu existir uma melhoria do desempenho das atividades de vida diárias, avaliadas pelo Protocolo Andreotti e Okuma (1999).
Por sua vez, a QV também poderá ser afetada por alguma perturbação ao nível da saúde mental. No entanto, já existem estudos que verificaram o impacto significativo e positivo do EF na saúde mental da população em foco, nomeadamente nos sintomas de ansiedade (Jacinto et al., 2021a).
Apesar de ser um método válido que engloba informações amplas, de forma coesa e organizada (Bettany-Saltikov, 2010), o recurso à metodologia de revisão narrativa é a principal limitação do estudo, sabendo que existem outro tipo de revisões com maior rigor e reprodutibilidade. Contudo, a importância da temática e as conclusões são o ponto forte do estudo. De igual modo, futuros estudos devem utilizar uma metodologia experimental para aferir a relação entre a variáveis estudadas.
CONCLUSÃO
A presente revisão narrativa refere um conjunto de fatores e benefícios que justifica o EF estar na base da QV de um indivíduo com DID, devendo ser praticado de forma regular e prescrito por um técnico de EF devidamente credenciado para o efeito. O técnico de EF tem o dever de realizar uma correta avaliação, prescrição adaptada e individualizada, bem como uma implementação e acompanhamento de forma eficaz, sendo que as suas funções e ações devem ser sustentadas pelos conhecimentos teóricos e práticos adquiridos através de uma formação base e complementar, bem como na evidência científica.
Tendo por base uma equipa multidisciplinar, com ligação aos cuidados primários e secundários de saúde, as estratégias de intervenção utilizadas nesta população necessitam de uma atualização, com a integração do EF no seu dia a dia, revelando ser um aspeto fulcral para a manutenção e aumento da aptidão física e da capacidade funcional e a consequente melhoria da QV. Contudo, a falta de técnicos de EF com formação em AF adaptada não deve continuar a ser uma barreira à prática de AF pela população com DID, destacando a necessidade desta reflexão quanto às opções de formação de futuros profissionais, nesta área em específico, assim como a intervenção metodológica ou didática dos conteúdos abordados e que serviço/profissional instituições/organizações que apoiam esta população querem oferecer.