INTRODUÇÃO
O racismo é um assunto candente nas sociedades contemporâneas. O desporto e o futebol, em particular, configuram outra das arenas simbólicas onde a sociabilidade encontra espaços de expressão individual e coletiva. Por isso, nestes ambientes de grande concentração de pessoas e culturas, não é estranha a utilização de grandes desígnios sociais apoiados numa promoção da prática desportiva saudável, mas que extravasa a saúde física. A UEFA e a FIFA, apenas para citar alguns exemplos, desenvolvem frequentemente campanhas nos relvados internacionais onde a expressão “No to Racism” é utilizada e promovida. Estas ações transitam igualmente para o terreno dos meios digitais e dos meios tradicionais de comunicação. A partir desta premissa relativamente elementar, que aponta uma perceção contextual factual, este artigo procura deslocar a atenção para a representação dos média sobre episódios onde a temática do racismo esteve, de algum modo, em destaque, para tentar observar uma parte da realidade que enfatiza este tipo de fenómenos. Com base nas primeiras páginas de jornais nacionais e internacionais, procuraremos refletir sobre a dimensão mediática de alguns episódios futebolísticos, envolvendo jogadores e dirigentes em torno de polémicas alegadamente associadas ao racismo, com o objetivo de compreender de que modo os média se posicionam relativamente a estes fenómenos.
Racismo e desporto: o que entra em campo?
No Dictionnaire des racismes, de l’exclusion et des discriminations (Benbassa, 2010), racismo é entendido por “tout mécanisme essentialisant les différences entre les groupes majoritaires e minoritaires présents dans une société, ainsi qu’entre cette société et les populations étrangères vivant hors ses frontières [qualquer mecanismo que torne essenciais as diferenças entre grupos maioritários e minoritários numa sociedade, e entre essa sociedade e as populações estrangeiras fora das suas fronteiras]” (Benbassa, 2010, p. 569). De acordo com o mesmo dicionário, os comportamentos racistas promovem o ódio identitário e a rejeição do outro, o que inclui todos os outros tipos de discriminação: antissemitismo, misoginia, homofobia, etc. Na definição do historiador Francisco Bethencourt (2015), em Racismos: das cruzadas ao século XX,
O racismo atribui um único conjunto de traços físicos e/ou mentais reais ou imaginários a grupos étnicos específicos, acreditando que essas características são transmitidas de geração em geração. Os grupos étnicos são considerados inferiores ou divergentes da norma representada pelo grupo de referência, justificando assim a discriminação ou segregação (Bethencourt, 2015, p. 27).
Embora a presença de negros em Portugal remonte sobretudo ao século XV, existe ainda assim alguma relutância na aceitação da presença africana (ou afrodescendente) na vida sociocultural portuguesa. É de referir que a relação entre portugueses e africanos se desenvolveu assente na superioridade branca e europeia e na subalternidade (quer pela cor, da classe social, ou outra) e invisibilidade africanas, provocando a sua exclusão social. Isabel Castro Henriques (2019), em A presença africana em Portugal, uma história secular: preconceito, integração, reconhecimento (séculos XV-XX), afirma que “a chegada de muitos homens e mulheres africanos introduzidos em Portugal como escravos, conduz à criação portuguesa de formas de rejeição física e social desses Outros diferentes nos corpos e nos comportamentos” (Henriques, 2019, p. 5). A historiadora refere que,
Se a visibilidade dessa presença é pouco consistente, uma análise atenta e sistemática revela a densidade de uma herança africana silenciosa, frequentemente assinalada para registar fenómenos negativos, na organização do país: no trabalho, na produção, na religião, na magia, na festa, na música, na dança, no corpo, na sexualidade, na língua, na toponímia (Henriques, 2019, p. 9).
A esta herança africana, decorrente de uma sociabilidade assimétrica, associam-se os fenómenos racistas. Os trabalhos apresentados em O estado do racismo em Portugal (2021), organizados por Sílvia Rodriguez Maeso, provam a existência de racismo em Portugal, assim como evidenciam outras edições anteriores, como Racismo em português: o lado esquecido do colonialismo (2016) e Racismo no país de brancos costumes (2018), de Joana Gorjão Henriques, que associa a colonização portuguesa como fonte do racismo contemporâneo em Portugal. De acordo com a jornalista, o racismo colonial português “foi um apagão e um arrastão: apagão da cultura africana, obrigando as populações a despirem-se de toda a sua identidade; e um arrastão1 ideológico, porque contaminou mentalidades de todos os quadrantes e durante séculos, de tal forma que até hoje se verificam os seus efeitos” (Henriques, 2016, p. 15).
No que respeita particularmente à presença do racismo no desporto, relatado ou representado pelos media, a literatura é ainda escassa relativamente ao número de episódios de racismo nos estádios. Em Portugal, não se verifica uma recolha sistemática de larga escala de casos de racismo, em particular no futebol, que permita, para além de os noticiar e denunciar (Neves et al., 2021), analisar as motivações e os contextos para que se possa efetivamente procurar meios eficazes de os combater através da educação, dos meios de comunicação social ou do campo da justiça.
Ainda assim, e a partir da identificação das organizações contra o racismo, do campo legal e de iniciativas de educação contra o racismo no desporto em geral, verifica-se um esforço no combate contra o racismo nos últimos anos, mas pouco se reflete na teorização do fenómeno do racismo em contexto desportivo e sobre a forma como é relatado pelos média. O contributo das obras coletivas Race, Racism and Sports Journalism (Farrington et al., 2012) e Sport, Racism and Social Media (Farrington et al., 2015) afiguram-se como ponto de partida desta reflexão e fundamentais para enquadrar o estudo de caso que nos propomos tratar. Estas refletem sobre a importância do jornalismo desportivo no contexto macro dos meios de comunicação e analisam a forma como o conceito “raça” é construído no mundo digital, dado o “crescente protagonismo social e cultural do jornalismo desportivo e o facto de a reportagem desportiva ter o poder e a capacidade para moldar as opiniões das pessoas sobre questões controversas como “raça”, racismo, etnia, nacionalismo e pertença” (Farrington et al., 2012, tradução nossa).
Achille Mbembe, no ensaio Políticas da inimizade (2017), admite a existência de um “nanorracismo”, entendido como uma “forma narcótica do preconceito em relação à cor expressa nos gestos anódinos do dia-a-dia” (Mbembe, 2017, p. 95). Este nanorracismo “desavergonhado” atua aparentemente de forma inconsciente, refletindo-se
numa brincadeira, numa alusão ou numa insinuação, num lapso, numa anedota, num subentendido e, é preciso dizê-lo, numa maldade voluntária, numa intenção maldosa, num atropelo ou numa provocação deliberada, num desejo obscuro de estigmatizar e, sobretudo, de violentar, ferir e humilhar, contaminar o que não é considerado como sendo dos nossos (Mbembe, 2017, p. 95).
Na Europa, o racismo é um problema social e cultural decorrente, essencialmente, de séculos da ação colonizadora dos impérios europeus e da descolonização no século XX, mas também do impacto das migrações populacionais e, na atualidade, dos novos movimentos circulatórios motivados “pelo comércio ou pelo negócio, pelas guerras, por desastres ecológicos e catástrofes ambientais, e por transferências culturais de toda a ordem” (Mbembe, 2017, p. 26).
O desporto, em particular o futebol, é um dos campos de “transferências culturais” por excelência. A inclusão de “não-semelhantes” (Mbembe, 2017) nas equipas europeias monocromáticas é uma prática que nasce no tempo colonial e que continua no período das pós-independências. O recrutamento de talentos futebolísticos em África não desacelerou com a queda do domínio das colónias, verificando-se, desde a década de 1990, um aumento da migração de jogadores africanos para a Europa, sobretudo com destino a França, Portugal e Bélgica (Darby, 2006; Melo, 2017).
O impacto da admissão e integração de jogadores oriundos das ex-colónias nas equipas nacionais dos países pós-imperiais ecoa nos mais diversos discursos. Para além das atitudes violentas das subculturas constituídas pelos adeptos hooligans ou ultras, nos anos 80-90, as reverberações insultuosas vindas dos adeptos ou público em geral ecoam nos estádios, intensificando-se os insultos dirigidos aos jogadores negros. De acordo com Pedro Almeida (2016, 2018) analisar o desporto permite compreender a realidade social de um país que, no caso de Portugal, servirá para repensar a identidade nacional e assumir a diversidade cultural no território português na totalidade.
Denúncias de racismo: o papel da sociedade civil
A criação de organizações europeias e nacionais, tais como Football Against Racism in Europe (FARE)2, nos finais dos anos 90 do século XX, ou Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (APCVD), criada em Portugal em 2018, e a legislação portuguesa que estabelece o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos (Assembleia da República, 2009, 2019) ou ainda o Plano Nacional contra o Racismo e a discriminação 2021-2025 (PNCRD-2021-2025) (República Portuguesa, 2022) visam intervir nos fenómenos de violência na área desportiva, com especial incidência na dissuasão das manifestações de racismo, xenofobia e de intolerância, apelando para o respeito pela diversidade. O PNCRD 2021-2025 procura, entre outras medidas e ações, “encorajar as organizações de adeptos a adotarem protocolos contendo cláusulas antirracismo”, nomeadamente com a associação GOA (Grupos Organizados de Adeptos), representada por vinte e cinco grupos legalizados. As campanhas de sensibilização e educação dos(as) adeptos(as) revelam-se primordiais no combate aos distúrbios nas bancadas motivados por atitudes racistas ou discriminatórias.
Na Europa existem várias iniciativas de denúncia de comportamentos racistas nas sociabilidades do meio desportivo, em particular nas relações entre jogadores e adeptos (ou público em geral). As denúncias e o combate ao racismo surgem do seio do espaço desportivo, partindo principalmente dos jogadores que experienciaram ou observaram “em campo” atitudes de discriminação ou racialização.
Em França, foi lançado o documentário Je suis pas un singe: le racisme dans le football (2019), realizado por Marc Sauvourel e pelo ex-jogador Olivier Dacourt, que reúne os testemunhos de jogadores de futebol, de diversas equipas europeias, vítimas de gestos, gritos e/ou insultos racistas por parte dos espectadores. Nomes como Samuel Eto’o, Samuel Umititi, Patrick Vieira ou Mario Balotelli expõem episódios marcantes de discriminação pública, assentes na cor da pele. O documentário pretende desconstruir o fenómeno do racismo nos estádios de futebol, mas os realizadores estão cientes que ainda é difícil abolir um fenómeno socialmente enraizado há demasiado tempo. Este contributo fílmico afigura-se tão-só como mais um apelo ao combate contra o racismo, ao que se seguiu o documentário Outraged (Bisset, 2020), promovido pela UEFA (União das Federações Europeias de Futebol).
Em França, a Fondation Lilian Thuram — Éducation contre le racisme, criada pelo ex-jogador de futebol Lilian Thuram em 2008, promoveu a exposição Des Noirs dans les Bleus, consciente da necessidade de trazer para o debate público a questão do racismo representada na equipa francesa. O ensaio La pensée blanche (Thuram, 2020) (Trad. Pensamento branco,Thuram, 2022), de Thuram em torno do racismo, enquanto ideologia e sistema hierárquico das sociedades modernas, é considerado uma “ferramenta pedagógica para a educação contra o racismo no contexto europeu” (Pimenta, 2021, p. 181).
No Reino Unido, a plataforma digital Show Racism the Red Card (SRtRC) (s.d.) é a principal instituição de caridade educacional antirracista, criada em 1996, patrocinada em parte pelo guarda-redes do Newcastle United, Shaka Hislop. Em Portugal, nasce em 2020 a Black Lives Matter in Football – Matosinhos (#Racismout, s.d.), criada na sequência do movimento americano homónimo, em parceria com a associação Plano i, Câmara Municipal de Matosinhos e o movimento português SOS Racismo. Esta iniciativa financiada pela FARE e pela APCVD, anteriormente referenciadas, vem preencher a lacuna existente na investigação estatística com Estudo Nacional sobre o Racismo no Futebol em Portugal: Perceções e vivências (Neves et al., 2021). Este estudo mereceria continuidade com “estudos qualitativos que pudessem aumentar a compreensão sobre os impactos do racismo e da discriminação na saúde das pessoas que os sofrem, bem como no exercício da prática desportiva” (Neves et al., 2021, p. 49). Este projeto tem ainda como media partner o jornal A Bola.
A proliferação de movimentos de luta contra o racismo que atuam nas suas diversas formas já referidas, a saber, livros, documentários, plataformas digitais ou projetos sociais/académicos, as políticas públicas de combate ao racismo, assim como a sensibilização e consciencialização dos jornalistas para o fenómeno encorajam os jogadores a tomarem atitudes de repúdio contra o “nanorracismo desavergonhado” (Mbembe, 2017) que (impunemente) perdura nos estádios de futebol.
A imprensa, ainda que de forma ténue, começa a sensibilizar-se e assume a responsabilidade na mediação de conflitos, a fim de se evitar as narrativas mediáticas parciais à semelhança do fenómeno noticioso do “arrastão de Carcavelos” (Almeida & Varela, 2021), em 2005.
MÉTODO
Este estudo utiliza uma metodologia qualitativa, que se dedica a fornecer “descrições detalhadas de fenômenos complexos, incluindo seus aspectos contextuais, ou focam em análises aprofundadas envolvendo poucos indivíduos. Desse modo, seus resultados não são generalizáveis” (Galvão, Pluye, & Ricarte, 2017, p. 8). Em relação às técnicas de recolha de dados, utilizou-se, por um lado, o estudo de caso, que se traduz “obtenção de um retrato o mais rigoroso possível de uma determinada realidade estudada em profundidade” (Anderson et al., 1994, p. 170), o que sugere, como contrapartida, a impossibilidade de transportar as considerações dele retiradas para o universo do problema ao qual reporta. Por outro, na linha de trabalhos anteriores (Vertoont et al., 2022), julgou-se adequado recorrer à análise textual, que se dedica à criação de unidades de interpretação de um determinado texto escrito, e da análise de textual, “fundamentadas na primeira página de alguns jornais escolhidos para este efeito. Seguindo o entendimento de Bengtsson (2016, p. 8), a análise de conteúdo procura apresentar significados coerentes e realistas dos dados analisados pelos investigadores. Como tal, deve optar por uma análise de ampla estrutura (análise manifesta) ou uma análise simplista da estrutura (latente), para colocar em evidência os elementos textuais, visuais (discursivos) que nele se encontram. Tendo em conta o propósito genérico de ilustrar o debate sobre esta área com elementos que acrescentam perspetivas aos estudos anteriormente sinalizados, este artigo funda-se no segundo nível de análise — a latente. Deste modo, este artigo não está em condições de garantir uma representatividade da amostra e das conclusões retiradas.
Amostra
De seguida, apresentaremos, seguindo uma ordem cronológica de acontecimentos, três situações onde se cruzam as três dimensões protagonistas deste artigo: racismo; desporto, neste caso futebol, e os média. Sublinhamos que cada uma das situações se refere a três contextos distintos entre si, relacionados com jogos oficiais a contar para a Liga Portuguesa de Futebol, a Liga Espanhola de Futebol e ainda uma partida da fase de grupos da Liga dos Campeões. Os três casos reportam-se ao arco temporal de fevereiro de 2020 a abril de 2021. É importante notar que, nesta altura, grande parte dos jogos de futebol foram diretamente afetados pela pandemia associada ao novo coronavírus SARS-CoV-2, responsável pela doença Covid-19, razão pela qual muitas dessas partidas foram disputadas sem público nas bancadas, adiadas ou com fortes restrições no número de espectadores.
A 16 de fevereiro de 2020, num jogo do campeonato de futebol da Liga Portuguesa, realizado em Guimarães, entre o Vitória Sport Clube e o Futebol Clube do Porto, o futebolista maliano Moussa Marega decidiu abandonar o relvado quando faltavam ainda 20 minutos para o final da partida (Lusa, 2022). Gesticulando de forma reprovatória para as bancadas, o jogador queixava-se de alegados insultos que lhe eram dirigidos, por parte de adeptos vitorianos, com base em impropérios tidos como racistas. O jogo haveria de prosseguir, mas no dia seguinte os meios de comunicação social, em Portugal, davam conta do sucedido, como veremos no ponto seguinte.
Três adeptos do Vitória foram condenados a pagar 1.000 euros de multa ao Estado e emitir um pedido de desculpas num “jornal desportivo local”, onde assumiram os atos reportados judicialmente. A justiça desportiva teve um entendimento diferente, uma vez que ilibou o clube minhoto de qualquer responsabilidade, devido à ausência de som nas gravações de videovigilância (DN/Lusa, 2022).
No final desse mesmo ano, a 8 de dezembro, o jogo entre Paris Saint-Germain e Istambul Basaksehir, relativo à fase de grupos da Liga dos Campeões 2020/2021, foi interrompido depois de o quarto árbitro, o romeno Sebastian Coltescu, ser acusado de racismo (UOL, 2020). Aparentemente, o árbitro ter-se-á referido a Pierre Webó, um dos elementos da equipa técnica turca de modo “pejorativo”. Um dos jogadores que estava no banco, o senegalês Demba Ba confrontou o árbitro de forma ostensiva e gerou-se uma confusão entre as duas equipas que determinaria a suspensão do jogo. A partida seria retomada no dia seguinte, com outra equipa de árbitros.
Na sequência da ampla mediatização do caso, num jogo disputado com as bancadas vazias devido à já referida pandemia, a UEFA abriu um processo disciplinar e decidiu “suspender Sebastian Coltescu de exercer qualquer função de árbitro até final da época, ou seja, até 30 de junho de 2021, por comportamento impróprio durante um jogo da UEFA para o qual foi nomeado”, lê-se num comunicado do Comité de Ética e Disciplina da UEFA (DN/Lusa, 2021).
A 4 de abril de 2021, o jogo entre as equipas espanholas Cádiz e Valencia terminaria com a vitória por 2-1 da equipa que jogava em casa, mas do resultado pouco se escreveria. Nesta partida da 29ª jornada da Liga Espanhola, o árbitro David Medié denunciou no relatório que o jogador do Valência Diakhaby afirmou ter sido chamado de “negro de merda” por Juan Cala, do Cádiz, e era essa a razão pela qual o valenciano abandonara o jogo logo aos 20 minutos (Redação do GE, 2021).
Tal como nos casos anteriores, a mediatização do incidente ocuparia as primeiras páginas dos jornais desportivos em Espanha. A Liga Espanhola abriu um processo de averiguações e informou, meses depois, que “Após a análise dos elementos, conclui-se que não se encontrou em nenhum dos suportes disponíveis em LaLiga nenhuma prova de que o jogador Juan Torres Ruiz (Juan Cala) insultou nos termos denunciados Mouctar Diakhaby”. O organismo que tutela a principal competição de futebol em Espanha sublinhou que “Foram analisados os arquivos audiovisuais e digitais disponíveis, os áudios e as imagens do encontro transmitidas e também o que foi difundido nas redes sociais” para além de ter sido “contratada uma empresa especializada que realizou uma leitura labial e um estudo do comportamento dos jogadores Juan Torres Ruiz e Mouctar Diakhaby”. Mesmo assim, o caso foi julgado improcedente, não obstante a mediatização que suscitou (Redação Mais Futebol, 2021).
Instrumentos e procedimentos
Como se referiu anteriormente, este artigo não pretende discutir a presença dos assuntos abordados neste trabalho na generalidade dos órgãos de comunicação social. Em primeiro lugar, por se investir numa abordagem exploratória e, em segundo, pela natureza dos próprios casos, na medida em que a geografia e o contexto cultural das diferentes situações não permitem a realização de uma comparação exata entre os diversos assuntos. Uma das situações apresentadas refere-se, até, a um jogo entre equipas de países diferentes, o que desde logo se levantaria várias reservas sobre a tipologia de amostragem escolhida. Tendo em conta o objetivo de discutir os assuntos retratados neste estudo, definiu-se um conjunto de notícias sobre os assuntos tratados, organizados numa amostra por conveniência, uma vez que se pretende aceder, com relativa facilidade, ao objeto de estudo considerado, na medida em que neste trabalho não se pretende estabelecer generalizações para a população em geral. Na linha de trabalhos anteriores (Meltzer et al., 2012), define-se esta técnica para compreender e validar um determinado ponto de vista suportado com alguns elementos da realidade social.
Na observação que se inicia de seguida, sugere-se dois níveis de investigação:
1. uma análise formal (relacionada com uma abordagem mais concreta ao conteúdo das primeiras páginas, nomeadamente com a caracterização dos jornais analisados, a presença do assunto na primeira página, o número de fotografias que acompanha esse destaque e o texto que ajuda a contextualizar o leitor para o sucedido);
2. uma análise textual e interpretativa sobre as possíveis funções que tanto a imagem fotográfica como o texto desempenham no discurso jornalístico que se destaca na primeira página. Em síntese, orientamos este exercício na base de uma observação mais direta e empiricamente demonstrável para outra de natureza tendencialmente especulativa e interpretativa.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Antes de partimos para a análise, exibimos de seguida as capas que estiveram na base do primeiro caso (Figuras 1 e 2).
A partir do primeiro caso apresentado, seguindo a análise formal descrita anteriormente, a Tabela 1 procura sistematizar um conjunto de informações relevantes.
Jornal | Abrangência geográfica | Tipo | Presença do assunto na primeira página | Fotografias (número) | Texto principal sobre o destaque na notícia |
---|---|---|---|---|---|
Desportivo de Guimarães | Local | Desportivo | Quase a totalidade da página | 1 | Terramoto Marega |
Diário de Notícias | Nacional | Generalista | Quase a totalidade da página | 1 | Racismo e indignação |
Jornal de Notícias | Nacional | Generalista | Quase a totalidade da página | 1 | Marega. Os golos não têm cor |
Correio da Manhã | Nacional | Generalista | Menos de metade da página | 1 | Vergonha. Marega abandona jogo após insultos racistas |
Record | Nacional | Desportivo | Quase a totalidade da página | 5 | Marega 5-0 Racismo |
A Bola | Nacional | Desportivo | Totalidade da página | 1 | Somos Marega |
O Jogo | Nacional | Desportivo | Quase a totalidade da página | 1 | Crime |
Em Portugal, existem poucos jornais desportivos de âmbito local. O Desportivo de Guimarães é um desses exemplos. No entanto, a maior parte dos jornais desta amostra insere-se numa ampla circulação nacional, em que três são generalistas (Diário de Notícias, Jornal de Notícias, Correio da Manhã) e outros três desportivos (Record, A Bola, O Jogo). Apenas A Bola decidiu colocar o caso de Marega como a única notícia do dia, com destaque de primeira página. À exceção do Correio da Manhã, que dedicou menos de metade da capa, os outros diários coincidiram no facto de o assunto merecer quase a totalidade da primeira página. Uma sintonia que também se verificou no número de fotografias que acompanharam o destaque: seis jornais escolheram apenas uma fotografia, ao contrário do jornal Record que optou por cinco imagens, numa espécie de fotograma evolutivo do acontecimento. No que diz respeito ao texto, as palavras Marega, Racismo e Crime são, porventura, as que sublinham o maior impacto na primeira página.
Relativamente ao papel da imagem, as opções dos diferentes jornais não coincidem, do ponto de vista editorial. O jogador maliano aparece nos sete jornais, no entanto com diferentes posturas, o que, em termos semióticos, assume um fator amplamente significativo. A imagem do jogador que pretende sair do relvado, perante a tentativa contrária dos colegas, que o agarram, foi a opção do Desportivo de Guimarães e Diário de Notícias. Estas fotografias sugerem que a decisão do atleta contou com a tentativa — ainda que frustrada — dos companheiros que provavelmente não pretendiam que o conflito escalasse até ao abandono do jogador do campo. A raiva do jogador, quase em plano de protagonismo exclusivo (como no caso do Jornal de Notícias) demonstra eficazmente o plano emocional em que Marega abandonou o relvado, em pleno confronto com os adeptos locais, como no caso de A Bola. Esta opção editorial procura revelar, numa imagem, os dois lados da contenda: os alegados ofensores e o visado pelos supostos comentários insultuosos racistas. Três jornais optaram por posturas mais neutras naquilo que é o papel da imagem. O Record publica a fotografia dos festejos do golo marcado por Marega, muito antes do episódio retratado, O Jogo mostra a pose natural do jogador em pleno jogo, o que em termos informativos e visuais pouco acrescenta à compreensão do assunto, ou o Correio da Manhã que exibe o jogador a sair do relvado, mas que sem a presença do texto, facilmente se poderia depreender que seria apenas uma fotografia habitual quando os jogadores são substituídos no centro do terreno.
Como ficou implícito na análise anterior, a presença do texto é fundamental para uma compreensão mais consistente do episódio. De um modo geral, os jornais definiram, desde logo, a situação como um ato de racismo. Este julgamento, eventualmente precipitado dos acontecimentos, choca com o plano da realidade judicial, que apenas condenou três adeptos. Ao designar o fenómeno como “crime”, “racismo” ou “terramoto”, os jornais manifestaram uma espécie de opinião sobre o acontecimento, o que contraria as regras clássicas do jornalismo que sugere uma maior verificação dos factos antes da sua efetiva publicação. A expressão “Somos Marega”, do jornal A Bola, claramente veiculada a partir de uma reminiscência de grande apoio popular ao sucedido em 2015 com a redação do Charlie Hedbo, em França, com a popularização do slogan “Somos todos Charlie”, denuncia uma forma eficaz, automática e comum de aderir a uma causa que se pretende tornar coletiva, consensual e sólida. Curiosamente, a postura mais cautelosa foi a do Desportivo de Guimarães, que preferiu resumir o sucedido a um “incidente”, embora colocando a tónica numa metáfora hiperbólica de “terramoto”. Neste episódio de julgamento sumário por parte dos jornais, resta apenas a condenação evidente do racismo como fenómeno que deve ficar, segundo essa linha de pensamento, fora dos relvados.
No que se refere ao segundo estudo de caso, exibimos as capas que estiveram na base da análise que se apresenta de seguida (Figuras 3, 4, 5 e 6).
A dimensão internacional da competição justifica a inclusão de mais elementos a esta amostra. Até por isso se percebe a mediatização de uma competição relevante no futebol europeu, como a Liga dos Campeões.
A partir do caso apresentado, a Tabela 2 procura sistematizar as informações sobre a análise formal.
Jornal | Abrangência geográfica | Tipo | Presença do assunto na primeira página | Fotografias (número) | Texto principal sobre o destaque na notícia |
---|---|---|---|---|---|
fotoMaç | Nacional | Desportivo | Metade da página | 3 | Vergonha na Liga dos Grandes |
Sabah | Nacional | Generalista | Menos de metade da página | 2 | Escândalo de racism |
Charente Libre | Nacional | Generalista | Menos de metade da página | 1 | Racismo: cartão vermelho para o árbitro em Paris |
L’Équipe | Nacional | Desportivo | Quase a totalidade da página | 1 | A gota de água |
La Gazzetta dello Sport | Nacional | Desportivo | Menos de metade da página | 1 | “Árbitro racista” |
Tuttosport | Nacional | Desportivo | Menos de metade da página | 1 | 4º árbitro racista. Jogo suspenso |
Corriere dello Sport | Nacional | Desportivo | Menos de metade da página | 1 | Afastado árbitro racista |
AS | Nacional | Desportivo | Quase a totalidade | 1 | Stop ao racismo |
Marca | Nacional | Desportivo | Menos de metade da página | 0 | PSG-Basaksehir suspenso por um comentário racista do 4º árbitro |
Nesta amostra constam nove jornais: dois turcos, um generalista e outro desportivo, o mesmo com os dois jornais franceses abordados; três italianos exclusivamente desportivos, o mesmo com os dois espanhóis retratados. Todos têm circulação nacional nos respetivos países.
Ao contrário do exemplo anterior, a maior parte dos jornais (sete em nove) não coloca o assunto em grande destaque, remetendo-o para menos de metade da página. Essa circunstância dever-se-á ao facto de um dos critérios jornalísticos residir na proximidade (Galtung & Ruge, 1965), entendida aqui num ponto de vista geográfico ou cultural. Embora a competição se dispute numa escala, a nível europeu, normalmente os desenvolvimentos das partidas podem ser mais mediatizados nos países a que dizem respeito os clubes em análise. Relativamente ao número de fotografias, com a exceção dos jornais turcos, em que se apresentou, na primeira página, um conjunto de fotografias ilustrativas do acontecimento, a maior parte optou por colocar apenas uma imagem, muito à semelhança daquilo que se verificou no caso português. A este propósito deve ser sublinhado o jornal espanhol Marca, que noticiou o sucedido apenas com texto, uma opção inédita no conjunto de análises realizadas até ao momento.
Já no que se refere ao texto, as primeiras páginas estabeleceram, por unanimidade, uma condenação ao episódio, designando-o como ato racista e com o quarto-árbitro como principal visado na acusação. O jornal francês utilizou uma expressão idiomática para sublinhar uma eventual saturação perante situações de género — “a gota de água” — o que reforça o combate daquele meio de comunicação a situações daquela índole. Os termos “vergonha”, “escândalo” promovem a espetacularização do sucedido, mas a opção mais frequente — La Gazzetta dello Sport, Tuttosport, Corriere dello Sport — foi a de visar diretamente o árbitro apelidando-o de “racista”.
As fotografias colocadas para ilustrar o acontecimento apresentam opções distintas. Desde logo, com um pormenor curioso. Os protagonistas do caso foram o quarto-árbitro e o elemento da equipa técnica turca, Pierre Webó. No entanto, como se sublinhou na descrição do caso, foi o jogador suplente Demba Ba que confrontou diretamente a equipa de arbitragem e foi até mais efusivo e vocal nessa mesma interação. A verdade é que os jornais preferiram destacar esse momento, o que pode induzir o leitor em erro, uma vez que, tal como sublinham os diversos relatórios sobre o caso, Demba Ba apenas foi um dos instigadores do processo e não o principal visado nos comentários. Foi o caso da La Gazzetta dello Sport, Tuttosport e Corriere dello Sport. Ora, se o jornalismo lida com o rigor e exatidão seria importante acautelar estas situações.
Excluindo este pormenor que se pretende com a correção identificação dos protagonistas, os jornais turcos colocaram a face do quarto-arbitro em destaque, enquanto no Charente Libre, TuttoSport, Corriere dello Sport, As e L’Équipe surge o árbitro principal no meio da polémica. Também neste aspeto, importaria adequar o princípio de rigor jornalístico às imagens apresentadas. Quanto à composição das fotografias, a maior exibe a discussão acalorada entre os árbitros e os jogadores da equipa turca. Nota-se perfeitamente a tendência de ilustrar o caso com o dedo indicador de Ba e Webó junto à face dos juízes da partida, numa postura intimidatória que exige explicações perante o sucedido. No jornal francês Charente Libre os jogadores franceses estão estrategicamente à volta do árbitro principal da partida que enfrenta as alegações de Demba Ba. O uniforme amarelo do árbitro destoa do restante colorido da imagem, entre jogadores parisienses e elementos da equipa turca. A imagem que fica deste caso, do ponto de vista fotográfico, é justamente este pedido de explicações dos turcos perante o árbitro, que haveria de redundar na suspensão da partida e da equipa de arbitragem.
No que se refere ao terceiro estudo de caso, exibimos as capas que estiveram na base da análise que se apresenta de seguida (Figuras 7, 8 e 9).
A partir do caso apresentado, a Tabela 3 procura sistematizar as informações sobre a análise formal.
Jornal | Abrangência geográfica | Tipo | Presença do assunto na primeira página | Fotografias (número) | Texto principal sobre o destaque na notícia |
---|---|---|---|---|---|
Diário de Cádiz | Local | Generalista | Metade da página | 1 | Triunfo com nuvem de poeira |
La Voz de Cádiz | Local | Generalista | Quase a totalidade da página | 1 | Grande triunfo marcado por polémica |
Las Provincias | Local | Generalista | Metade da página | 1 | Valência interrompe um jogo por insultos racistas |
As | Nacional | Desportivo | Menos de metade da página | 1 | “Chamou-me preto de merda” |
Marca | Nacional | Desportivo | Quase a totalidade da página | 1 | Nunca estarás sozinho |
Super Deporte | Nacional | Desportivo | Totalidade da página | 4 | Stop ao Racismo |
Nos seis jornais desta amostra, surge um aparente equilíbrio entre jornais desportivos/generalistas e locais/nacionais: cada um com três exemplos. Os jornais analisados consideraram que o caso deveria merecer amplo destaque na primeira página. Em apenas um desses meios de comunicação — Marca — se remete o episódio a um destaque menos expressivo. Esta coincidência editorial também se expressa nas fotografias utilizadas, neste caso contrariada pelas quatro imagens do jornal Super Deporte. Os restantes apenas usaram uma ilustração. Quanto ao texto que serve de base ao destaque, todos os jornais foram unânimes a condenar o sucedido, apelidando de episódio racista, embora com ligeiras nuances. Os jornais locais, da Figura 9, sublinharam o aspeto sombrio do triunfo da equipa do Cádiz. O jornal Las Provincias incidiu na decisão da equipa valenciana em suspender a partida, mas trata-se de uma formulação pouco apurada, uma vez que o jogo haveria de prosseguir. O título deste jornal não cumpre os critérios de informação rigorosa e precisa que se aplicam ao jornalismo. Já os jornais desportivos, o caso muda de tom. Na verdade, existe uma condenação feroz ao episódio ocorrido, que oscilam entre a censura ao racismo — Super Deporte — e um apoio ao jogador visado — Marca —, enquanto o diário As prefere colocar, numa nota de rodapé mais extensa, a declaração que terá estado na origem do sucedido.
Relativamente à segunda dimensão de análise, que reflete sobre o enquadramento noticioso da fotografia enquanto objeto de discurso igualmente jornalístico, podemos definir três posturas evidenciadas pela amostra estudada: a imagem do jogador a abandonar o relvado, cabisbaixo, acompanhado de um colega de equipa, em que se percebe a frustração de Diakhaby com o sucedido (Las Provincias, La Voz de Cádiz, As e Super Deporte). No caso deste último jornal, a fotogaleria de quatro imagens revela o episódio de acordo com uma determinada ordem cronológica, desde o momento em que o jogador se sentiu ofendido até ao final, em que se sentou no banco de suplentes; o momento de tensão em que o jogador é agarrado por um adversário, justamente depois de se perceber que Diakhaby pretende abandonar o relvado, como sugere o Diario de Cádiz; utilização criativa da imagem como expressão de uma situação socialmente condenável. O jornal Marca concedeu ao jogador o destaque da primeira página, colocando-o no centro do episódio, envolto num foco negro que o rodeia, com a expressão “Não estarás sozinho” que, curiosamente, está em contrassenso com a imagem onde o jogador, visivelmente abatido, está sozinho no banco de suplentes, ou, pelo menos, sem companheiros no raio de proximidade. Este jogo semiótico de “estar sozinho vs. nunca estarás sozinho” confere à primeira página da Marca um interesse exercício de interpretação significativa. Normalmente, as cores que marcam o lettering do jornal, a encarnado, cedem o lugar a uma perspetiva cromática que recupera a imagem do luto, com tons sombrios. O jornal Super Deporte optou por uma utilização de cores expressivas na frase “Stop” — a vermelho, colocando o imaginário rodoviário em evidência — “ao racismo” com uma mão, em sinal de interrupção, pintada a preto e branco, porventura sinalizando dois lados desta questão racial. Parece uma visão algo redutora e gasta sobre o racismo, entre “negros” e “brancos”, numa frase que aparece repetida em tantas campanhas sobre o mesmo assunto.
Nos jornais em que se aborda este episódio, em Espanha, surge uma nota contrastante com o exemplo anterior, em que se visavam dois lados de um caso. Para os jornais espanhóis, o alegado ofensor apenas se identifica, timidamente, com o nome, sem imagem. Contudo, esta constatação não sugere a obrigatoriedade de exposição clara do suposto infrator, sempre que ocorram estas situações. Com efeito, se analisarmos o plano de representação mediática e aquilo que foram as decisões da justiça desportiva, encontramos um fosso enorme de interpretações, que variam entre a condenação jornalística e a ausência de provas factuais por parte das entidades jurídicas e desportivas. Tal como aconteceu no caso português, assiste-se a uma diferença de observação da realidade por parte dos média e de outras entidades oficiais, o que levanta a grande questão deste trabalho sobre os contornos da realidade do racismo de acordo com as diversas lentes que lhe observam e analisam.
CONCLUSÕES
Apesar do enquadramento legal existente, verifica-se que os meios de comunicação se afiguram mais eficazes na ação denunciadora dos racismos no desporto, em particular no futebol. Se é verdade que ainda são necessárias ações contínuas de combate contra o racismo no seio da sociedade civil, também é verdade que os meios de comunicação generalistas e desportivos têm um papel imediato na denúncia moral do racismo no desporto, em particular no futebol. Nos casos analisados e de acordo com a amostra apresentada datada entre 2020 e 2021, a condenação dos fenómenos racistas, assentes na cor da pele e noticiados na primeira página dos periódicos generalistas e desportivos, revela a consciencialização dos jornalistas para o racismo enquanto crime moral e público nas sociedades atuais.
Por um lado, a contratualização do jornalismo como fenómeno social (Ribeiro, 2020), capaz de investigar com a profundidade necessária todos os factos que compõem a realidade, encontra dificuldades na confrontação com os casos aqui estudados e representados. A narrativa jornalística utilizada foi demasiado simplista e as primeiras páginas simbolizam esse facilitismo interpretativo. Para além dos visados, pouco se acrescenta à real perceção do sucedido com a participação de outros dirigentes, responsáveis ou até mesmo testemunhas (jogadores) que pudessem alargar a discussão. Nota-se, por isso, o futebol assume-se como um terreno altamente blindado à comunicação social, sobretudo aos jornalistas. Embora este artigo não procurasse detalhar esse ponto, a verdade é que todos os assuntos retratados perderam rapidamente espaço na agenda mediática nas semanas seguintes.
Por outro, a análise simplista realizada pelos jornalistas contrasta, isso sim, de forma dramática com o plano legal e judicial. No caso Marega, foram condenados alguns adeptos, na situação de Webó os árbitros foram afastados, no entanto, esperava-se um plano de condenação muito mais alargado tendo em conta o nível de alarme despertado pelos média. No fundo, as condenações desportivas foram completamente secundarizadas, no plano mediático e judicial, o que mais uma vez contrasta com o plano de imenso ruído mediático gerado pelos casos. O Código Deontológico do Jornalista (Sindicato dos Jornalistas, 2017), em Portugal, atualizado em 2017, refere, no ponto 8, que “jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado”. Esta regra de ouro — elementar — da atividade jornalística não foi cumprida e a maior parte dos jornais preferiu destacar a ocorrência de um crime, mesmo sem ter efetivamente demonstrado que teria sucedido nesses termos.
A partir da análise destes casos, consideramos que em futuras investigações nesta área deverá ser incluída uma dimensão de observação capaz de identificar a perenidade do caso na agenda mediática. A compreensão destes fenómenos também se estabelece pela longevidade que muitos conseguem ocupar nos assuntos tratados pelos jornalistas.