INTRODUÇÃO
A prática esportiva regular promove efeitos nos sistemas cardiopulmonar, musculoesquelético e endócrino, além de diversos benefícios nos aspectos sociais e psicológicos (Dimitri, Joshi, Jones & Moving Medicine for Children Working Group, 2020; Nunes, Faria, Martinez & Oliveira-Júnior, 2021). Por conseguinte, a iniciação esportiva precoce e a prática regular de atividade física têm sido comuns entre crianças e adolescentes em diversos países (Jayanthi, Post, Laury & Fabricant, 2019; Vanderlei, Vanderlei, Bastos, Netto Júnior & Pastre, 2014).
Nesse contexto, entre diferentes modalidades, o futebol consiste no esporte mais popular do mundo, mobilizando milhares de jovens adeptos de múltiplas nacionalidades. As demandas físico-motoras comuns ao futebol são variadas e integram corridas, saltos, acelerações e desacelerações bruscas, contato físico e agilidade (Hoff, 2005). Por sua vez, a exposição a demandas gestuais pode repercutir em riscos variados à integridade física de jovens futebolistas, pois o crescimento e maturação biológica são processos ainda incompletos na infância e adolescência (Buchheit & Mendez-Villanueva, 2014; Nieczuja-Dwojacka, Siniarska, Marchewka & Zablocka, 2018; Teixeira et al., 2021).
Considerando-se a natureza competitiva da modalidade, a prática de futebol é também associada a importante incidência de lesões musculoesqueléticas esportivas (Watson, Mjaanes & Council on Sports Medicine and Fitness, 2019). Estudos anteriores mostraram prevalência significativa de exposição à prática esportiva em categorias juvenis, o que tem sido associado a importantes riscos para a instalação de lesões (Silveira et al., 2013; Vanderlei et al., 2014).
A etiopatogenia de lesões musculoesqueléticas no esporte é complexa e envolve variáveis intrínsecas, como idade, características antropométricas, tempo de prática e histórico prévio de lesões (Bahr & Krosshaug, 2005). A identificação de fatores de risco e prevalência de lesões esportivas já foi amplamente estudada em adultos, de ambos os sexos (Larruskain, Lekue, Diaz, Odriozola, & Gil, 2018; Gaspar-Junior, Onaka, Barbosa, Martinez, & Oliveira-Junior, 2019). Contudo, poucos estudos mostraram fatores associados com a instalação de lesões musculoesqueléticas em crianças e adolescentes em idade escolar e praticantes de futebol (Ribeiro-Alvares et al., 2020; Rössler, Junge, Chomiak, Dvorak, & Faude, 2016).
Com o presente estudo, pretendeu-se analisar a prevalência e características de lesões musculoesqueléticas esportivas entre jovens praticantes de futebol, segundo a estratificação de categorias etárias da FIFA (Andrade et al., 2021). Conhecendo-se melhor mecanismos e locais de maior instalação de lesões, pode-se melhorar a forma de atuação na prevenção de lesões e contribuir para melhora no desenvolvimento físico e esportivo de jovens adolescentes, de acordo com o histórico e categoria de prática esportiva (Bastos, Vanderlei, Vanderlei, Netto Júnior, & Pastre, 2013; Onaka et al., 2017).
MÉTODOS
Estudo analítico com delineamento transversal retrospectivo proposto para descrever a prevalência e caracterização de lesões musculoesqueléticas relacionadas à prática do futebol.
Amostra
O público-alvo do trabalho foi constituído por praticantes de futebol de um projeto social vinculado à Prefeitura Municipal de Campo Grande, MS, Brasil. A casuística do estudo foi constituída por meio de amostragem de conveniência, e o recrutamento de participantes foi realizado em seis setores municipais onde as atividades do projeto eram desenvolvidas (conglomerados). Como critérios de inclusão, estabeleceu-se: participantes com 10 a 17 anos de ambos os sexos e prática regular e ininterrupta de futebol há, pelo menos, um mês.
Em estudos prévios, a prevalência de lesões retrospectivas para público-alvo similar variou entre 17 (Vanderlei et al., 2014) e 31,2% (Silveira et al., 2013). Nesse contexto, considerando-se poder de 80% e nível de significância de 5%, além de 10% de potenciais perdas, o tamanho amostral mínimo totaliza 171 indivíduos. A casuística final do presente trabalho totalizou 176 participantes procedentes de seis regiões municipais.
Para fins de estudo, os participantes foram distribuídos em quatro grupos etários, determinados conforme categorias de prática de futebol estipuladas pela FIFA (Andrade et al., 2021; Vargas et al., 2020): Sub-11 (participantes com 10 e 11 anos); Sub-13 (participantes com 12 e 13 anos); Sub-15 (participantes com 14 e 15 anos); e Sub-17 (participantes com 16 e 17 anos).
O presente trabalho atendeu às recomendações da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde. Nesse sentido, todos os participantes que aceitaram participar da pesquisa foram orientados a assinar um termo de assentimento livre e esclarecido (TALE). Além disso, um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) foi encaminhado para assinatura dos pais/responsáveis. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), CAAE 34019614.8.0000.0021.
Instrumentos
Para caracterização dos participantes, foi realizada avaliação antropométrica e foram tomadas informações relativas à idade (anos), sexo, histórico da prática de futebol (meses), tempo de treinamento semanal (horas), dominância de membros e posicionamento de jogo. Para avaliar a massa corporal, foi utilizada balança da marca GTech®, modelo GTech Glass 200. Uma fita métrica foi fixada na parede e foi utilizada para aferição da estatura. Para tanto, cada participante retirava os calçados e se posicionava recostado à parede com os pés em paralelo. O índice de massa corporal foi obtido a partir da fórmula: peso de massa corporal, em Kg, dividido pela estatura em metro quadrado.
Para detalhamento de dados epidemiológicos e caracterização de lesões musculoesqueléticas, foi utilizado um inquérito de morbidade referida, conforme já utilizado em estudos prévios (Aguiar, Bastos, Netto Junior, Vanderlei, & Pastre, 2010; Onaka et al., 2017; Pastre, Carvalho Filho, Monteiro, Netto Junior, & Padovani, 2004; Silveira et al., 2013). Como método de coleta, o uso de inquéritos de morbidade consiste na aplicação de questionário de modelo fechado, por meio de entrevista dirigida ao público-alvo da pesquisa (Pereira, 1995). Nesse sentido, os dados foram coletados por meio de abordagem individual junto aos participantes, técnicos e/ou responsáveis. As coletas foram feitas por um pesquisador familiarizado no manuseio do instrumento. De acordo com Pastre et al. (2004), essas condições contribuem para maior precisão de informações coletadas.
Para efeito de estudo, lesão musculoesquelética esportiva foi considerada como “qualquer queixa física sustentada por um jogador resultante de um jogo de futebol ou treinamento de futebol, independentemente da necessidade de atenção médica ou afastamento das atividades relacionadas ao futebol” (Fuller et al., 2006).
Procedimentos
As lesões foram caracterizadas quanto ao segmento anatômico acometido, mecanismo etiológico de instalação e/ou de manifestação dos sintomas, período de aparecimento, requisição de acompanhamento médico, tempo de afastamento e quadro sintomático de retorno às atividades de prática de futebol (Pastre et al., 2004). Quanto à localização anatômica, os agravos foram classificados de acordo com as regiões acometidas, incluindo-se locais em membros inferiores (MMII) ou outros locais (Fuller et al., 2006). Em relação a mecanismos, as lesões traumáticas envolveram casos derivados de contato direto, causado por incidente traumático, como queda ou choque com um oponente. Lesões não-traumáticas envolveram casos de lesão decorrentes de situações sem contato, comuns a circunstâncias inerentes ao futebol, como corridas de velocidade e resistência, mudanças rápidas de movimentos, saltos e aterrissagens. E quanto ao período de aparecimento das lesões, os casos de lesão foram distribuídos em dois momentos distintos: período de treinamento e período competitivo (Vanderlei et al., 2014).
A requisição por atendimento médico foi considerada nas ocasiões em que o participante foi avaliado por algum profissional da saúde, incluindo-se médico, fisioterapeuta, enfermeiro, dentista e, ainda, equipes de urgência e emergência (Schmikli, Vries, Inklaar & Backx, 2011). Por sua vez, o retorno às atividades esportivas foi classificado como sintomático ou assintomático, de acordo com os relatos do participante para cada caso de lesão que foi documentado. Para determinação da severidade da lesão, foi considerado o número de dias de afastamento da prática de futebol, levando-se em conta o período entre a data de lesão e o retorno às atividades (Fuller et al., 2006). Nesse aspecto, a severidade foi definida como: a) leve (1 a 7 dias de afastamento das atividades esportivas); b) moderada (8 a 21 dias de afastamento das atividades esportivas); e c) severa (acima de 21 dias de afastamento das atividades) (Vanderlei et al., 2014).
Análise estatística
Os resultados de variáveis quantitativas numéricas são apresentados por meio de medidas de centralidade e variabilidade. O índice de lesão esportiva a cada 1.000 horas de prática foi obtido a partir de relação entre número de casos de lesão e carga horária de exposição, multiplicado por 1.000 (Vanderlei et al., 2014). Conforme o delineamento de grupos, idade foi utilizada como variável independente, enquanto características gerais e dados relativos a lesões esportivas foram considerados variáveis dependentes.
Para análise da distribuição das variáveis numéricas contínuas, utilizou-se do teste de Komogorov-Smirnov. Para avaliação das características antropométricas e ocorrência de lesões a cada 1.000 horas de prática segundo o grupo etário, foi utilizada análise de variância (ANOVA), complementada com teste de comparações de Student-Newman Keuls. Já os resultados de histórico e carga horária de treinamento foram analisados com emprego de Kruskal-Wallis ANOVA e teste de Dunn, pois apresentaram distribuição não-paramétrica.
Em relação a variáveis categóricas, as informações sobre posicionamento tático de jogo, prevalência e características de lesões esportivas são expressas no formato descritivo, utilizando-se de medidas de proporção absoluta e relativa (%). Para a análise da prevalência geral de lesões esportivas, foi utilizado o teste de escore Z para proporções binomiais. Para as análises das demais variáveis categóricas, levando-se em conta grupos etários e características de lesão, foi utilizado o teste do χ2 ou teste de Goodman para contrastes entre e dentro de populações multinomiais. Para avaliar a associação entre variáveis intrínsecas e ocorrência de lesão retrospectiva, foi utilizada análise de risco relativo (Odds Ratio). Todas as conclusões estatísticas foram discutidas sob nível de significância de 5%.
RESULTADOS
Na Tabela 1, são apresentadas características demográficas e antropométricas, histórico e carga horária semanal de treino, além de informações sobre a prevalência de lesões esportivas segundo faixa etária. Os grupos foram diferentes quanto às características antropométricas, provavelmente, devido a diferenças de crescimento e maturação biológica. A média de idade encontrada ficou em 13.3 (± 2) anos. A estatura média em 1.61 (± 0.13) metros. A massa corporal média em 52.4 (± 12.8) Kg. E por fim o IMC médio em 19.89 kg/m2. Em relação ao histórico de treinamento foi encontrada a mediana de 24 meses, já para a carga horária semanal foi encontrada a mediana de 4.5 horas semanais de prática esportiva.
Variável | Grupo (faixa etária) | Total | |||
---|---|---|---|---|---|
Sub-11 | Sub-13 | Sub-15 | Sub-17 | ||
Idade (anos) | 10.6± 0.5 | 12.6± 0.5 | 14.5± 0.5 | 16.3± 0.5 | 13.3± 2.0 |
Estatura (cm) | 1.47± 0.08 | 1.58± 0.09* | 1.68± 0.09*# | 1.72± 0.09*# | 1.61± 0.13 |
MC (kg) | 41.4± 10.6 | 48.6± 10.4* | 59.0± 11.1*# | 61.3± 10.8*# | 52.4± 12.8 |
IMC | 18 (16–21) | 19 (17– 21) | 20 (19–22)*# | 20 (19–23) | 19 (18 - 22) |
HT (meses) | 16.0 (14.0) | 36.0 (48.0)* | 36.0 (62.5)* | 23.0 (87.7) | 24.0 (49.0) |
CHSem (h) | 4.0 (2.5) | 4.5 (1.0) | 4.5 (2.0)* | 6.0 (4.0)* | 4.5 (2.0) |
LE/IL | 1.46 | 1.12 | 1.13 | 1.15 | 1.19 |
LE/Indivíduo | 0.48 | 0.37 | 0.45 | 0.60 | 0.45 |
LE/1.000 h | 5.2 (7.1) | 1.0 (4.4) | 0.2 (1.3)* | 71.4 (165.1)#† | 5.2 (7.9) |
LE (casos) | 19 | 19 | 27 | 15 | 80 |
Participantes (n) | 40 | 51 | 60 | 25 | 176 |
MC: massa corporal; IMC: índice de massa corporal; HT: histórico de treinamento; CHSem: carga horária semanal de prática esportiva; LE/IL: taxa de ocorrência de lesões esportivas por indivíduos lesionados; LE/Indivíduo: taxa de ocorrência de lesões esportivas por indivíduo; LE: lesão esportiva. Resultados de idade, estatura e MC apresentados em média e desvio-padrão. ANOVA e teste de Student-Newman Keuls; *p< 0.05 em comparação ao Sub-11; #p< 0.05 em comparação ao Sub-13. Resultados de HT e CHSem apresentados em mediana e intervalo interquartílico; Kruskal-Wallis ANOVA e teste de Dunn; *p< 0.05 em comparação ao Sub-11; #p< 0.05 em comparação ao Sub-13.
No contexto epidemiológico, o grupo de participantes do grupo Sub-17 revelou as maiores taxas de ocorrência de lesão por indivíduo (0.60 caso/participante), ficando inclusive acima da média geral (0.45 caso/participante). O grupo de indivíduos do grupo Sub-11 revelou as maiores taxas de lesão esportiva por indivíduo lesionado (1.46 caso/participante), embora o número absoluto de casos de lesão tenha sido maior no grupo Sub-15 (27 casos; Tabela 1). No tocante à ocorrência de lesões a cada 1.000 h de prática, verificou-se um total de 5.2 casos/1.000 h. O Sub-11 mostrou maior taxa de ocorrência quando comparado ao Sub-15. Por sua vez, o grupo Sub-17 apresentou o maior índice de lesões, com 71.4 casos registrados a cada 1.000 h, revelando-se estatisticamente diferente dos grupos Sub-13 e Sub-15.
Na Tabela 2 são apresentadas as proporções de participantes segundo posicionamento tático de jogo e faixa etária. No geral, a menor proporção de participantes atuava na posição de goleiro, sendo que o grupo Sub-13 mostrou a maior proporção de participantes nessa posição. Na categoria Sub-11, a proporção de goleiros foi nula, mostrando-se estatisticamente diferente em comparação às posições de zagueiro, meio-campo e ataque. Entre zagueiros, o grupo Sub-17 revelou a menor prevalência de participantes, quando comparado aos grupos Sub-13 e Sub-15.
Posição | Grupo (faixa etária) | Total | |||
---|---|---|---|---|---|
Sub-11 | Sub-13 | Sub-15 | Sub-17 | ||
Goleiro | 0 (0.0) | 5 (55.6)* | 3 (33.3) | 1 (11.1) | 9 (5.2) |
Lateral/ala | 2 (9.1) | 8 (36.4) | 9 (40.9) | 3 (13.6) | 22 (12.6) |
Zagueiro | 9 (23.1)# | 12 (30.8) | 16 (41.0) | 2 (5.1)†§ | 39 (22.4) |
Meio-Campista | 10 (22.7)# | 11 (25.0) | 17 (38.6) | 6 (13.6) | 44 (25.3) |
Atacante | 19 (31.7)# | 14 (23.3) | 16 (26.7) | 11 (18.3) | 60 (34.5) |
#p< 0.05 vs. Goleiro; *p< 0.05 vs. Sub-11; †p< 0.05 vs. Sub-13; §p< 0.05 vs. Sub-15; Teste de Goodman para contrastes entre e dentro de populações multinomiais.
Na Figura 1A, é apresentada a prevalência de LE entre todos os participantes, que abrangeu 38% de atletas, uma proporção estatisticamente menor do que o número de atletas com histórico nulo de lesões. Já na Figura 1B, é apresentada a prevalência de lesões musculoesqueléticas segundo o grupo etário. Não foram constatadas diferenças estatisticamente significativas entre os grupos (p= 0.54). No aspecto descritivo, o grupo Sub-17 revelou o maior índice de prevalência (52%), seguido por Sub-15 (40%), Sub-11 (32.5%) e Sub-13 (32.3%), respectivamente.
Na Tabela 3, são apresentadas as proporções de lesões esportivas segundo local anatômico, mecanismo, momento e grupo etário. Levando-se em conta o efeito de grupo, não foram constatadas diferenças estatisticamente significativas. No contexto descritivo, quanto ao local de instalação, observa-se maior prevalência de lesões nos membros inferiores em todas as faixas etárias. No total geral, foram registradas 66 lesões em membros inferiores (82.5%). Em relação aos demais locais anatômicos, foi encontrada prevalência de 11 lesões em membros superiores no geral (4 lesões no Sub-11, 4 lesões no Sub-13 e 3 lesões no Sub-15), duas (2) lesões na região do tronco/coluna (sendo um caso no Sub-15 e outro no Sub-17) e apenas uma lesão de cabeça no grupo Sub-13. Quanto ao mecanismo, apenas o grupo Sub-13 mostrou maior prevalência de lesões por trauma. Considerando-se o momento (circunstância) de instalação, não foram constatadas diferenças significativas entre treino e competição.
Variável | Grupo (faixa etária) | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Sub-11 | Sub-13 | Sub-15 | Sub-17 | |||
Local | MMII | 15 (22.7) | 14 (21.2) | 23 (34.8) | 14 (21.2) | 66 (82.5) |
Outro | 4 (28.6) | 5 (35.7) | 4 (28.6) | 1 (7.1) | 14 (17.5) | |
Mec. | Não-Trauma | 12 (27.3) | 8 (18.2) | 14 (31.8) | 10 (22.7) | 44 (55.0) |
Trauma | 7 (19.4) | 11 (30.6) | 13 (36.1) | 5 (13.9) | 36 (45.0) | |
Mom. | Treino | 16 (32.0) | 11 (22.0) | 16 (32.0) | 7 (14.0) | 50 (62.5) |
Competição | 3 (10.0) | 8 (26.7) | 11 (36.7) | 8 (26.7) | 30 (37.5) |
MMII: membros inferiores; Mec.: mecanismo de instalação de lesão; Mom.: momento; Teste de Goodman para contrastes entre e dentro de populações multinomiais (p> 0.05).
Na Tabela 4, é apresentada a frequência de lesões musculoesqueléticas esportivas de acordo com severidade, retorno, recorrência e requisição de tratamento segundo o grupo etário. Em termos de severidade, o grupo Sub-15 mostrou maior proporção de lesões graves, quando comparado ao grupo Sub-11. Considerando-se o retorno, embora a maioria dos relatos tenha integrado casos assintomáticos ao retorno, não foram verificadas diferenças entre os grupos. Situação similar envolveu a análise de recorrência e requisição para tratamento; em sua maioria, as lesões registradas envolveram casos de instalação primária e sem busca por tratamento, respectivamente.
Variável | Grupo (faixa etária) | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Sub-11 | Sub-13 | Sub-15 | Sub-17 | |||
SEV | Leve | 15 (30.6) | 13 (26.5) | 15 (30.6) | 6 (12.2) | 49 (61.3) |
Moderada | 3 (27.3) | 1 (9.0) | 4 (36.4) | 3 (27.3) | 11 (13.7) | |
Grave | 1 (5.0)# | 5 (25.0) | 8 (40.0)* | 6 (30.0) | 20 (25.0) | |
RET | ASS | 15 (26.3) | 14 (24.6) | 20 (35.1) | 8 (14.0) | 57 (71.3) |
SIN | 4 (17.4) | 5 (21.7) | 7 (30.4) | 7 (30.4) | 23 (28.7) | |
REC | Não | 13 (19.4) | 17 (25.4) | 24 (35.8) | 13 (19.4) | 67 (83.8) |
Sim | 6 (46.2) | 2 (15.4) | 3 (23.1) | 2 (15.4) | 13 (16.2) | |
TRA | Não | 16 (25.8) | 12 (19.4) | 20 (32.3) | 14 (22.6) | 62 (77.5) |
Sim | 3 (16.7) | 7 (38.9) | 7 (38.9) | 1 (5.6) | 18 (22.5) |
SEV: severidade; RET: retorno; REC: recorrência; TRA: tratamento, #p< 0,05 vs. Leve; *p< 0,05 vs. Sub-11; Teste de Goodman para contrastes entre e dentro de populações multinomiais.
Na Figura 2, é apresentada a distribuição de lesões musculoesqueléticas em membros inferiores, segundo local de instalação. O segmento anatômico mais acometido foi tornozelo/pé com 30 lesões reportadas (45.5%), seguido por coxa/quadril, com 16 casos (24.2%). Em sequência, tem-se o joelho com 13 lesões (19.7%) e perna, com sete casos de lesão (10.6%).
Na Tabela 5, é mostrada a distribuição de lesões musculoesqueléticas segundo combinações entre mecanismo e região anatômica, e severidade e região anatômica, considerando-se apenas os casos com acometimento em membros inferiores. Em relação às lesões traumáticas, a proporção de casos em tornozelo/pé foi maior do que em coxa/quadril. Em termos de severidade, os casos leves tiveram maior concentração no segmento tornozelo/pé, quando comparado região da perna. Entre os casos moderados, lesões em tornozelo/pé foram mais prevalentes do que as demais, notadamente, em comparação a coxa/quadril.
Variável | Região anatômica | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Coxa/quadril | Joelho | Perna | Torn. /Pé | |||
Mecan. | Não-Trauma | 9 (25.0) | 6 (16.7) | 5 (13.9) | 16 (44.4) | 36 (54.5) |
Trauma | 7 (23.3) | 7 (23.3) | 2 (6.7) | 14 (46.7)† | 30 (45.5) | |
Severidade | Leve | 12 (27.9) | 9 (20.9) | 5 (11.6) | 17 (39.5)† | 43 (65.2) |
Moderada | 0 (0.0)# | 2 (22.2) | 1 (11.1) | 6 (66.7)* | 9 (13.6) | |
Grave | 4 (28.6) | 2 (14.3) | 1 (7.1) | 7 (50.0) | 14 (21.2) |
Mecan.: mecanismo de instalação de lesão; Torn. /Pé: complexo tornozelo/pé; †p< 0.05 vs. Perna; Teste de Goodman para contrastes entre e dentro de populações multinomiais.
Na Tabela 6, são apresentadas medidas de risco relativo (odds ratio) para análise da associação entre variáveis intrínsecas, segundo dois diferentes desfechos: ocorrência de lesão musculoesquelética e lesão em MMII. A dominância esquerda mostrou-se associada com maior chance para instalação de lesão em MMII (7.40 vezes) no Sub-13, e de lesão musculoesquelética (4.63 vezes) no grupo Sub-15. O aumento da carga horária semanal de treinamento (exposição) foi também associado com maior chance de lesão no Sub-15 (146%; p< 0,05). Da mesma forma, maior exposição se associou com maior chance de ocorrência de lesão musculoesquelética no Sub-17.
Grupo | Variável | Desfecho | |||
---|---|---|---|---|---|
LE | LMI | ||||
OR | p-valor | OR | p-valor | ||
Sub-11 | Massa | 1.04 | 0.19 | 1.03 | 0.22 |
Estatura | 1.22 | 0.96 | 0.18 | 0.68 | |
IMC | 1.17 | 0.06 | 1.16 | 0.08 | |
H. Treino (meses) | 0.99 | 0.55 | 0.98 | 0.35 | |
CHS (h) | 1.13 | 0.47 | 1.21 | 0.30 | |
Dominância | 0.66 | 0.59 | 0.53 | 0.46 | |
Posição | 1.90 | 0.11 | 1.73 | 0.19 | |
Sub-13 | Massa | 1.02 | 0.46 | 0.98 | 0.59 |
Estatura | 3.88 | 0.68 | 0.24 | 0.70 | |
IMC | 1.09 | 0.40 | 0.97 | 0.77 | |
H. Treino (meses) | 1.02 | 0.08 | 1.02 | 0.06 | |
CHS (h) | 1.06 | 0.54 | 0.86 | 0.29 | |
Dominância | 4.27 | 0.12 | 7.40 | 0.03* | |
Posição | 0.95 | 0.86 | 1.10 | 0.76 | |
Sub-15 | Massa | 1.02 | 0.46 | 1.00 | 0.86 |
Estatura | 30.00 | 0.24 | 3.29 | 0.68 | |
IMC | 1.01 | 0.95 | 0.95 | 0.60 | |
H. Treino (meses) | 1.01 | 0.32 | 1.00 | 0.54 | |
CHS (h) | 1.46 | 0.02* | 1.42 | 0.03* | |
Dominância | 4.63 | 0.04* | 2.47 | 0.18 | |
Posição | 1.01 | 0.97 | 1.21 | 0.50 | |
Sub-17 | Massa | 0.99 | 0.89 | 1.01 | 0.69 |
Estatura | 7.27 | 0.67 | 55.10 | 0.40 | |
IMC | 0.95 | 0.68 | 1.00 | 0.99 | |
H. Treino (meses) | 1.00 | 1.00 | 1.00 | 0.85 | |
CHS (h) | 2.06 | 0.03* | 1.31 | 0.07 | |
Dominância | 0.36 | 0.43 | 0.42 | 0.51 | |
Posição | 0.64 | 0.27 | 0.67 | 0.32 |
OR: odds ratio (razão de chance); IMC: índice de massa corporal; H. Treino: histórico de treino; CHS: carga horária semanal de treinamento; *p< 0.05; Análise de Risco Relativo (Odds Ratio).
DISCUSSÃO
Com a execução deste trabalho, teve-se por objetivo analisar a prevalência e descrever as características de lesões musculoesqueléticas esportivas entre jovens de um projeto social de prática de futebol em contexto recreativo e esportivo, estabelecendo-se relações com a faixa etária. Ao analisarmos os dados obtidos, foi observado que o grupo Sub-17 revelou as maiores taxas de ocorrência de lesão retrospectiva e atingiu, inclusive, valores acima da média geral da casuística estudada.
Em geral, essa categoria é considerada um grupo etário de transição, em que os praticantes precisam se adaptar a níveis cada vez mais altos de competitividade, aliada a importante pressão externa advinda de pais/responsáveis e da própria equipe (Cezarino, Grüninger & Scattone Silva, 2020). Nessa idade, é comum que se inicie o processo de profissionalização esportiva. Em clubes profissionais, a maioria dos contratos são assinados entre 15 e 17 anos de idade. Em paralelo, o aumento da idade se correlaciona com a ampliação da instalação de lesões, como já foi demonstrado em outros trabalhos (Bastos et al., 2013; Cezarino et al., 2020; Kemper et al., 2015). De fato, os grupos Sub-15 e Sub-17 mostraram os maiores índices de carga horária semanal de treinos (Tabela 1), o que se destacou entre os principais atributos preditores da instalação de lesões nessas faixas etárias (Tabela 6).
Já no grupo Sub-11, foram obtidas as maiores taxas de LE por participante lesionado, o que revela maior índice de recorrência de lesões. Provavelmente, esse resultado pode ser derivado de menor condicionamento físico e técnico de participantes nessa idade, o que é comum no processo de iniciação esportiva (Vanderlei et al., 2014). De um total de 80 casos, foram registradas 50 lesões (62,5%) com instalação derivada de circunstâncias de treino. Além disso, o grupo Sub-11 concentrou quase metade dos casos de recidiva de lesões (46,2%), o que foi superior a dados prévios, que mostraram índices de recorrência de 10% (variação de 8,4 a 13,9%) (Powell & Barber-Foss, 1999). Sendo assim, medidas de prevenção podem ser adotadas pois a presença de lesões prévias é um importante preditor de novas lesões, aliando-se à reabilitação inadequada e cicatrização incompleta (Cezarino et al., 2020; Freckleton, Cook, & Pizzari, 2014).
Com maior histórico de prática, o Sub-17 apresentou certa paridade na distinção entre treinos e competições, com prevalência ligeiramente superior no período competitivo. Como já referido anteriormente, a maior ocorrência de LE no Sub-17 pode ser estar relacionados ao maior envolvimento competitivo no esporte, repercutindo em estímulos físicos de alta intensidade e menores períodos de recuperação (Vanderlei et al., 2014). Com a maior competitividade e condicionamento técnico, fatores extrínsecos como demandas e contextos específicos de posição de jogo e da partida de futebol podem contribuir para a instalação de lesões (Teixeira et al., 2021). Da mesma forma, monitoramento de carga inadequado e acúmulo de carga de trabalho derivado de calendário mais denso contribuem para maior chance de instalação de lesão (Teixeira et al., 2021). Essa condição foi confirmada no grupo Sub-17, pois o aumento da exposição resultou em mais chance de lesão esportiva (Tabela 6).
Esportistas jovens e com maior histórico de treinamento e exposição semanal reportaram mais casos de lesão em estudos prévios (Bastos et al., 2013; Vanderlei et al., 2014). Porém, não há consenso entre diferentes trabalhos, pois há relatos de maior predominância de lesões durante competições (Hootman, Dick & Agel, 2007; Turbeville, Cowan, Owen, Asal & Anderson, 2003). No entanto, cabe ponderar que uma investigação foi realizada com análise de 15 modalidades esportivas (Hootman et al., 2007), enquanto outro trabalho envolveu praticantes de futebol americano (Turbeville et al., 2003). Noutra fonte, os autores documentaram proporções mais similares para lesões com instalação durante treinamentos (48,5%) e jogos (51,5%) (Rechel, Yard & Comstock, 2008).
Por outro lado, em geral, a maioria dos participantes não apresentou histórico prévio de LE relacionadas com a prática de futebol (Figura 1A). De fato, a casuística de estudo foi constituída por participantes de um projeto social que, em grande parte, detém objetivos voltados para o contexto recreacional, além da iniciação esportiva. Com isso, a estruturação de treinamentos periodizados voltados para rendimento ocupa plano secundário. Ainda assim, no aspecto nosográfico, no presente estudo, encontrou-se maior predomínio de lesões em membros inferiores (Tabela 2), num total de 66 casos (82,5%), seguido de agravos em membros superiores, com 11 lesões reportadas (13,8%). Esses resultados corroboram achados similares encontrados em inúmeros estudos prévios (Cezarino et al., 2020; Clausen et al., 2014; Ergün, Denerel, Binnet, & Ertat, 2013; Vanderlei et al., 2014). Esse alto predomínio de lesões em membros inferiores é facilmente explicado pelo fato de que a prática de futebol envolve majoritariamente deslocamentos corporais em atividades diversas, como corridas, saltos e mudanças bruscas de direção (Vanderlei et al., 2014).
Além disso, o segmento anatômico mais acometido por casos de lesão foi tornozelo/pé com 30 ocorrências (45,5%). Com efeito, estudos anteriores revelaram que as regiões de tornozelos e pés foram os locais mais acometidos por lesões no futebol (Bastos et al., 2013; Junge, & Dvorak, 2004; Watson et al., 2019). Já outros estudos mostraram uma prevalência maior para lesões em joelhos, com medidas entre 25 (Clausen et al., 2014) e 36% (Kakavelakis, Vlazakis, Vlahakis, & Charissis, 2003). O maior predomínio de agravos em tornozelo/pé pode decorrer de gestos repetitivos em termos de impacto mecânico aliado a técnica mal executada, incluindo-se erros técnicos ao chutar a bola. Além desses aspectos, em geral, crianças e adolescentes são mais suscetíveis a desenvolver lesões de entorse do tornozelo em razão da imaturidade biológica em relação ao controle motor e constituição osteoarticular (Murata, Kumai & Hirose, 2021; Teixeira et al. 2021; Teixeira et al. 2022).
Em relação ao mecanismo, foi constatado maior predomínio de lesões não-traumáticas (55%), totalizando 44 casos registrados em comparação a 36 casos (45%) de condições resultantes de causas traumáticas. Em geral, condições não-traumáticas podem estar relacionadas a aspectos biomecânicos ligados a ações específicas e/ou gastos metabólicos envolvidos no esporte, incluindo-se aspectos técnicos relacionados à demanda motora (Hootman et al., 2007; Vanderlei et al., 2014). Nesse contexto, maior prevalência de lesões não-traumáticas pode sugerir menor acurácia técnica e fisiológica em termos de execução de gestual esportivo, algo comum no processo de iniciação esportiva. No que diz respeito à severidade, lesões menos severas e classificadas como leves destacaram-se como a maioria dos relatos obtidos, num total de 49 casos (61,3%). Esse quadro pode decorrer, uma vez mais, de características da amostra estudada, levando-se em conta que foi constituída por participantes em processo de iniciação esportiva e vinculados a um projeto social. Por conseguinte, os treinamentos são caracterizados por menor competitividade e contato físico de menor intensidade e menos frequentes quando comparados a públicos com maior histórico de treinamento, como sugerido por outros autores (Rechel et al., 2008; Vanderlei et al., 2014).
Quanto ao retorno às atividades esportivas após lesão, 57 casos (71,3%) tiveram retorno assintomático, corroborando com a maior prevalência de casos leves. Da mesma forma, em relação à busca por tratamento, constatou-se maior predominância de relatos sem necessidade de algum suporte médico ou terapêutico (62 casos). Além do contexto de severidade, não é descartado que problemas de acesso a tratamento de saúde bem como ausência de serviço específico contribuam para o baixo índice de suporte. Mesmo para casos leves e assintomáticos, reabilitação adequada e medidas de prevenção são fundamentais para a saúde funcional e longevidade no esporte (Radelet, Lephart, Rubinstein, & Myers, 2002; Vanderlei et al., 2014). Nesse aspecto, a coleta de dados de lesões por meio de inquéritos de morbidade tem sido utilizada com frequência em estudos envolvendo atletas de alto rendimento (Pastre et al., 2004) e esportistas de diferentes modalidades e faixas etárias (Onaka et al., 2017; Pastre et al., 2004; Vanderlei et al., 2013). Sendo assim, os resultados desse trabalho podem servir para a proposição de ações profiláticas e terapêuticas voltadas para o cuidado de lesões musculoesqueléticas decorrentes da prática sistemática de exercício físico e treinamento esportivo (Hespanhol Junior, Costa, Carvalho, & Lopes, 2012; Silva et al., 2011).
Não obstante, não se pode descartar o alto potencial de viés de informação levando-se em conta a baixa precisão relacionada a relatos provindos de inquéritos, especialmente quando utilizados para avaliar crianças e/ou adolescentes. Em estudo prévio, Vanderlei et al. (2017) obtiveram valores de índice Kappa na faixa de 0,20 a 0,39 na análise de concordância entre informações prospectivas e retrospectivas, ao final de quatro meses de acompanhamento de jovens esportistas. Tal fato pode decorrer de lapsos de memória por parte dos participantes, ou ainda, da falta de entendimento correto para devido detalhamento dos casos de lesão. Além disso, potenciais efeitos advindos do acúmulo de treinamento e exposição não foram monitorados e deveriam ser avaliados em estudos futuros. Portanto, torna-se necessário que investigações em delineamento prospectivo e com uso de ferramentas mais acuradas sejam realizadas futuramente.
CONCLUSÕES
A maioria dos participantes não apresentou histórico prévio de LE relacionadas com a prática de futebol, com 109 participantes (62%) registrando ausência de lesões. A maior prevalência de lesões musculoesqueléticas entre jovens praticantes de futebol envolveu agravos em membros inferiores na região de tornozelo/pé, de severidade leve e não requereram tratamento. A instalação de lesões retrospectivas mostrou-se maior nos grupos de faixa etária superior a 13 anos e foi diretamente associada com o aumento da exposição à prática esportiva de futebol.