INTRODUÇÃO
Para saber para onde vamos, temos de saber de onde vimos. Esta é uma expressão habitual quando se fala de História e da sua importância em determinado contexto. Acresce que na tentativa de compreender esse caminho histórico, fica também mais transparente o panorama atual da realidade em estudo. No caso do fitness em Portugal (termo fortemente redutor que tem sido utilizado há vários anos de forma a englobar um elevado número de atividades e contextos, mas maioritariamente ligado aos ginásios, health clubs/centros de fitness1), várias influências e necessidades em determinados períodos históricos ajudam a compreender a realidade que conhecemos e vários dos problemas que se manifestam. Assim, este trabalho irá procurar, de forma breve, situar e sintetizar os principais acontecimentos e influências nacionais e internacionais, assim como alguns marcos temporais, que levaram ao desenvolvimento da área de intervenção desportiva comummente denominada de fitness. Para esse propósito, o presente trabalho será estruturado em três partes: i) os primórdios do fitness, onde se irá apresentar algumas das influências internacionais que estiveram na origem desta área; ii) as principais influências e fatores que permitiram o crescimento do fitness em Portugal; e iii) o efeito do percurso histórico do fitness no contextual atual e considerações futuras sobre a área.
Para tal, e dada a escassez de registos sobre o tema, o presente trabalho, na qualidade de artigo de opinião, será também, apesar de não exclusivamente, um autorrelato dos autores, que, tendo vivenciado diferentes momentos desta História, pretendem deixar um contributo para esse registo e futuras reflexões sobre o seu impacto no desenvolvimento da área, profissionais e respetivas práticas.
A história da educação física e do desporto é sobejamente conhecida e documentada. Há, naturalmente, influências dessas práticas e acontecimentos históricos que permitiram que o fitness emergisse. Muitas influências foram (e continuam a ser) primordiais na forma como o fitness é visto e “descoberto” pela população. No entanto, para efeito do objetivo proposto, iremos iniciar (e clarificar) a exposição histórica dessas influências a partir da década de 50 do século XX.
Os primórdios do fitness
As tendências mundiais na ciência e saúde pública
São várias as influências que levaram a criação dos atuais espaços de prática mais comuns do fitness, os ginásios e designações relacionadas. A maior parte dessas influências surgiram após a 2ª guerra mundial, e derivam de ações independentes que emergem nos Estados Unidos da América e Canadá. Na saúde pública, por exemplo, é no ano de 1974 que o relatório de Lalonde, intitulado A new perspective on the health of Canadians, emite as primeiras orientações de afastamento de um paradigma patogénico, ou seja, centrado exclusivamente no tratamento das doenças e dos doentes, e progride as suas recomendações no sentido da promoção da saúde e prevenção do aparecimento da doença, posteriormente designado de paradigma salutogénico (Lalonde, 1974; Minkler, 1989). Para tal, o exercício físico começa a despontar como uma abordagem viável para apoiar esse desígnio e combater muitos dos malefícios resultantes de um estilo de vida gradualmente mais estruturado no aumento do comportamento sedentário, redução dos níveis de atividade física, pobre qualidade alimentar e nutricional, stress, entre outros. Para estes desenvolvimentos, dois trabalhos, Coronary heart-disease and physical activity of work (Morris, Heady, Raffle, Roberts, & Parks, 1953) e Physical activity as an index of heart attack risk in college alumni (Paffenbarger, Wing, & Hyde, 1978), foram marcantes para a compreensão da relação da atividade física com a saúde, e suporte desta corrente de pensamento e influência nos anos vindouros.
Surge também no ano seguinte, pelo American College of Sport Medicine (ACSM), entidade criada em 1954, uma das primeiras referências, na primeira edição das suas recomendações (American College of Sports Medicine, 1975), a um profissional que teria a responsabilidade de, em cooperação com o médico, utilizar o exercício físico como ferramenta para ajudar pessoas com doença cardiovascular, trabalhar cooperativamente com uma variedade de profissionais em áreas relacionadas com a saúde, e criar um plano lógico para o desenvolvimento académico dos profissionais. A esse profissional denominou-se de fisiologista do exercício (American College of Sports Medicine, 1975).
Em 1981, Philip Hage escreveu um breve (mas impactante) relato de como um fisiologista do exercício trabalhava numa clínica familiar em Salina, Kansas. O fisiologista do exercício realizava testes de stress, prescrevia programas de exercício e aconselhava os pacientes sobre mudanças no estilo de vida para prevenir e tratar doenças crónicas. O artigo defendia que o fisiologista do exercício era um ativo valioso à equipa do médico de família e que podia ajudar a melhorar a saúde e o bem-estar da comunidade (Hage, 1981), posição que dava assim continuidade a uma visão da função deste profissional iniciada na década anterior.
Os Estados Unidos, Canadá, Austrália e Reino Unido foram os precursores da ascensão social do exercício físico como promotor de saúde. Concomitantemente, a comunidade científica foi suportando o efeito salutogénico do exercício (Blair et al., 1989; Pedersen & Saltin, 2015; Sallis, 2017) e as vantagens da integração de fisiologistas de exercício em contexto clínico (Franklin, Fern, Fowler, Spring, & Dejong, 2009; Pereira et al., 2023; Sallis et al., 2015), algo que nos dias de hoje em Portugal, e de certa forma em muitos outros países, ainda não aparenta ser claro nem consensual.
A influência dos media e cultura vigente
Paralelamente, o lazer e ócio resultantes de modificações das condições laborais, culturais e económicas dos Estados Unidos no pós-guerra trouxeram uma nova faceta à sociedade: a economia baseada no consumo de informação e entretenimento. Capitalizada e potenciada pelos media, chegavam e influenciavam milhões de pessoas, primeiramente a nível nacional, e posteriormente noutros países. Nesta fase, a prática de exercício físico era algo maioritariamente restrito (e atribuído) a atletas e militares. O próprio jogo com o seu cariz lúdico, era geralmente associado às crianças e jovens. Eram genericamente desconhecidos os benefícios da atividade física na saúde, apesar de ao longo dos séculos manifestações como caminhadas, natação (informal), e algumas práticas desportivas (e.g., boxe) aparecerem descritas como formas de lazer praticadas por escritores, filósofos, e cientistas, como forma de “apaziguar” a alma (Gros, 2015). No entanto, à medida que a rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética aumentava de tom e alimentava a guerra fria, vários líderes do campo político, militar e do setor privado estadunidenses, assentes na ideologia da luta contra o comunismo e da crença que a superioridade Soviética mais publicamente visível se manifestava através do desporto e dos seus programas de treino, promoveram um manifesto nacional de incentivo ao desenvolvimento do “culto e ritual de dureza” (Kemper, 2009), onde a prática desportiva era um aspeto central.
Um dos primeiros exemplos dessa influência e que teve impacto considerável ao longo de décadas, moldando fortemente a visão do fitness atual, foi o documentário Pumping Iron, lançado em 1977. Esta película centrava-se na competição entre dois culturistas mundialmente conhecidos, o Arnold Schwarzenegger e o Lou Ferrigno, que tinham ficado célebres durante a década de 70 pelas suas proezas neste tipo de competição. O documentário teve uma aceitação de tal forma esmagadora nos Estados Unidos que despoletou um frenesim na criação de ginásios e outros locais onde se pudesse praticar o culturismo2. Ao mesmo tempo, uma cultura de prática de exercício físico para além dos propósitos desportivos (mais tradicionais) e militares começava a surgir, evidenciando um misto de interesses, que variavam entre o lazer e a melhoria do aspeto físico. O impacto desta prática incentivou a criação de espaços (muito deles longe de se poderem considerar um ginásio, pelo menos à luz do panorama atual), que se focavam no treino de força e respetivas necessidades dos praticantes. Materiais e técnicas derivadas da preparação de atletas de outras modalidades eram criados3, selecionados e utilizados visando o aumento da massa muscular e da produção de força, impactando ao longo do tempo este nicho de prática de exercício.
Provavelmente na onda de entusiasmo que esta prática vinha a ganhar nos anos 70 nos Estados Unidos, com uma influência bidirecional difícil de discernir, uma série de filmes transformados em franchise, como Rocky (os quatro primeiros filmes surgiram nos anos 1976, 1979, 1982, e 1985), e Rambo (os três primeiros filmes surgiram em 1982, 1985, e 1988), protagonizados por Sylvester Stallone, ou através de atores ligados às artes marciais como Chuck Norris e Jean-Claude Van Damme (entre muitos outros), criaram-se e protagonizaram-se vários filmes que atingiriam um elevado sucesso nas bilheteiras internacionais nas décadas de 70, 80 e 90. O clima que rodeava este tipo de filmes e atores tornou-se de culto para muitas gerações. Na sua maioria, estes representavam homens muscularmente muito desenvolvidos, com um reportório de ações motoras e capacidades que só seriam possíveis de se obter através de treino especializado, e onde o treino de força era uma variável sempre presente.
Paralelamente, surgem também correntes de influência derivadas de outros países que, tendo recuperado mais rapidamente dos efeitos da 2ª guerra mundial que tinham devastado a Europa, se anteciparam em algumas destas manifestações do lazer desportivo e preocupações de saúde associadas. O jogging, por exemplo, termo já conhecido na literatura inglesa há alguns séculos, mas de origem incerta, inicia a sua popularidade por volta dos anos 60 na Austrália e Estados Unidos, e nos anos 70 na Grã-Bretanha (Bowerman, Harris, & Shea, 1967; Fixx, 1977). Apresentado como uma corrida “leve” ou de baixa velocidade, era publicitado como um método de melhoria da aptidão física para todas as idades e sexos, que poderia ajudar a “reduzir a linha de cintura”, “melhorar a aparência”, e “ajudar a prolongar a vida” (Bowerman et al., 1967). Aproximadamente na mesma altura, a empolgante e mediática vitória do norte americano Frank Shoter na maratona dos jogos olímpicos de verão de 1972, na Alemanha, catapultou este fenómeno emergente para uma nova dimensão, sendo considerado por muitos o impulsionador do primeiro boom da corrida nos Estados Unidos (Haberman, 2017), particularmente em cidadãos com formação académica superior e com profissões de colarinho branco, algo que caracterizava uma parte significativa de Manhattan, Nova Iorque, e de todo o seu glamour cultural nessas décadas. Apesar de várias outras influências terem existido através de outros meios (e.g., revista Runners World; lançada em 1966) e em outras localizações, esta prática, à semelhança do que aconteceu com o culturismo, foi exponenciada pela sua referência em vários filmes e séries norte-americanas com elevada exposição mundial, como foi o caso da série Seinfeld (1989 – 1998) e Friends (1994 – 2004), ambas a retratar o jogging como atividade de uma elite social e cultural de Nova Iorque e do prestigiado Central Park (Moon, Mishra, Mishra, & Kang, 2016; Tirasawasdichai, Obrenovic, & Alsharif, 2022).
Em continuidade a estas tendências emergentes que viam o exercício como forma de lazer/promoção da saúde/nacionalismo/melhoria da aparência, outras linhas de influência surgiram, juntando uma vez mais o impacto mediático de personalidades conhecidas do público em geral e dos meios de divulgação em massa, mas nesta fase numa faixa da população até à data negligenciada (apesar de alguns esforços prévios por outras pessoas nas décadas anteriores) – a população feminina. Foi em 1982 que a atriz Jane Fonda lançou um vídeo em suporte VHS com uma proposta de treino, nos seus traços gerais semelhantes ao que vemos atualmente em algumas aulas de grupo, onde se usava a música e o seu ritmo para realizar alguns movimentos de mobilidade, flexibilidade e força4. À data, era bastante simples de executar e acessível à maioria das pessoas, mas popularizou-se particularmente entre as mulheres. Nos anos seguintes, adaptações e novas criações derivadas do vídeo inicial deram origem ao boom inicial que esteve na base das aulas coreografadas, como a aeróbica, ou mistas, como a localizada5. É também a ela que se atribuem as expressões “feel the burn” e “no pain, no gain”, que tanto marcaram (e continuam a fazê-lo) negativamente a visão do exercício físico para milhões de pessoas (Hendricks, 2018; Pereira et al., 2023). Esta onda de descoberta e impulsionamento do exercício físico entre as mulheres, e muitas vezes orientado exclusivamente para elas, continuou a ser perpetuado por outras personalidades mundialmente conhecidas na época, particularmente atrizes e modelos, como foi o caso de Cindy Crawford, com o seu vídeo de estrondoso sucesso intitulado Shape your body workout (1992). Nesta fase, a ideia de que as mulheres podiam e deviam realizar treino com resistências como forma de melhorar a sua aparência e saúde, surge de forma distinta da corrente do culturismo, e abre portas para a democratização do exercício, neste momento particularmente para os exercícios de força realizados pelas mulheres. Em suporte a esta tendência crescente surge ainda o step, aula de grupo popularizada em grande parte pela ginasta Gin Miller na década de 90, em parceria com a gigante da indústria de roupa desportiva Reebok (Fisher, 1991; Karageorghis, 2016). Apesar de ter sido idealizada para cativar mais homens para as aulas de grupo, rapidamente se considerou e integrou no conceito de aulas disponíveis essencialmente em espaços de fitness ou ginásios (Fisher, 1991).
Particularmente na década de 80 e 90, importa recordar e reforçar o papel importante que o cinema, clubes de vídeo, revistas (e.g., Muscle & Fitness; Runners World), e o aparecimento da televisão como eletrodoméstico comum na casa da maioria das pessoas teve na expansão mundial destes fenómenos (Arendt et al., 2010; Maguire, 2008; Moon et al., 2016; Tirasawasdichai et al., 2022), onde Portugal, devido à sua histórica proximidade à cultura anglo-saxónica, foi fortemente influenciado. Um exemplo da influência dos media na expansão e desenvolvimento de ideias e sonhos é o caso de Arnold Schwarzenegger que, nascido na Áustria e tendo iniciado a sua carreira de culturista no seu país, foi nos Estados Unidos da América que o seu protagonismo ganhou solidez. Sem este fenómeno dos media neste período histórico, tais influências poderiam nunca ter existido.
Apesar de alguns anos de desfasamento em relação às influências originais, as primeiras sementes estavam lançadas para aquilo que seriam os primórdios do fitness em Portugal, uma área de intervenção verdadeiramente juvenil em comparação com muitas outras, e que engloba, na sua totalidade, pouco mais de 40 anos de existência6. A forma como estas e outras influências impactaram o seu desenvolvimento serão exploradas de seguida.
O caso nacional e a confluência de necessidades
A exposição de Portugal à cultura anglo-saxónica tem marcado vários aspetos culturais nacionais ao longo das últimas décadas. O consumo cinematográfico e musical norte-americano há muitos anos que é comum e aceite como algo natural, e até alguns feriados religiosos têm sido adaptados gradualmente ao longo dos anos para refletir aspetos dessa cultura (e.g., celebração do Halloween na véspera do dia de todos os Santos). Com o desenvolvimento dos media, tornou-se também mais fácil a propagação de informação de outros países e das suas práticas, onde a Austrália e a Grã-Bretanha, na lógica da influência anglófona, mas também a França, Alemanha e União Soviética tiveram fortes influências nacionais. De destacar ainda que na aproximação ao final do século XX, a proximidade linguística e cultural entre o Brasil e Portugal começava a manifestar-se também no fitness, onde muitos profissionais brasileiros trouxeram a sua experiência e formação para o nosso país, e tiveram um importante contributo na criação das tendências da altura.
O fitness nacional foi, desta forma, um recetor dessas influências, e durante a década de 80, mas principalmente no início dos anos 90, deu-se a primeira grande expansão de ginásios em Portugal, com o Craque (mais tarde o Super e o Mega), o KeepFit e o Varequipe, em Lisboa, ou o Premier, no Porto, como alguns exemplos de referência à época (Campos, Melo, & Mendes, 2021; Pereira & Cerca, 2015). No entanto, os ginásios como os conhecemos atualmente estão, em muitos casos e características, longe do que existia na maioria dos espaços de prática nessas décadas7. Alguns foram aparecendo através da adaptação ou reabilitação de espaços comerciais e/ou habitacionais, sendo que estruturas construídas de raiz e planeadas para a oferta destas atividades eram virtualmente inexistentes8. Estes espaços tendiam a ser criados nos seus primórdios essencialmente para o desempenho de uma única atividade, ou seja, restringiam-se apenas ao culturismo ou atividades de dança/grupo. Noutros casos, aproveitavam-se os ginásios e aparelhos de clubes desportivos9, nos horários em que os atletas não os estivessem a utilizar, para os treinos com outros objetivos e propósitos. Rapidamente, muitos destes espaços começaram a adaptar-se, procurando cativar pessoas com interesses diferenciados, e começando a criar espaços de prática para o treino de força, o trabalho cardiovascular em sala de exercício, estúdios de dança, entre outros serviços de bem-estar (Campos et al., 2021).
Importa compreender nesta fase histórica de desenvolvimento do fitness que um adulto não atleta dificilmente teria um local onde praticar exercício físico de forma supervisionada. De certa forma, isso ainda hoje se verifica, sendo os ginásios, health clubs ou centros de fitness os espaços de eleição para tal (European Commission, 2022; Maguire, 2008). Apesar de existirem inúmeras possibilidades de prática de atividade física (correr, caminhar, andar de bicicleta, entre outras), e excluindo alguns contextos específicos do exercício físico, como educação física em período de escolaridade obrigatória, atletas, militares, lares (alguns casos pontuais) e clínicas de reabilitação, exercício físico laboral (também ainda raro), estúdios de dança, natação não competitiva, e mais alguns parcos exemplos, a maioria dos adultos não tem muitos contextos onde possa praticar exercício com supervisão profissional, principalmente quando orientado para a melhoria da sua saúde. É na confluência destas necessidades da população (bombardeadas há anos com a informação de que o exercício físico é importante para a saúde), seus interesses de prática distintos, e influências e tendências desportivas da época, que os ginásios vão surgindo e criando a sua imagem na sociedade de espaço de prática de cariz polivalente.
A introdução das aulas de grupo como catalisador do fitness nacional através das entidades de formação
Para este propósito foram também importantes o desenvolvimento e a influência contínua que as aulas de grupo receberam dos Estados Unidos nos anos 80 e 90, e que ampliaram a sua visibilidade e interesse em Portugal. Surge então em meados dos anos 80 e início dos anos 90 uma onda nacional de aulas de grupo, impulsionada por alguns pioneiros dessas modalidades em Portugal, como Alice Rodrigues, André Manz, Fátima Ramalho, Luís Cerca, Luís Gonçalves, Pedro Maia e José Sabbo, entre outros, que apresentaram as primeiras abordagens alicerçadas em metodologias específicas para essas atividades, e que ainda nos dias de hoje são usadas como base de muitas aulas de grupo (Cerca, 1999)10. Para esta popularização muito contribuiu a Les Mills International, uma empresa que no final da década de 90 traz para Portugal um sistema de aulas coreografadas (nessa altura Body Training Systems com o programa Body Pump) com bastante sucesso internacional, e que catapulta as aulas de grupo para uma nova dimensão. Apesar de ter sido alvo de algumas críticas, principalmente de McDonaldização e mercantilização das atividades (Campos et al., 2021; Ritzer, 2011; Teixeira et al., 2020), resolveu nesta fase histórica a heterogeneidade metodológica de muitas abordagens, contribuindo assim para uma estandardização das aulas de grupo (independentemente do seu tipo; e.g., duração tipo das aulas, estrutura da sessão).
Para esta e outras transformações resultantes das influências internacionais muito contribuíram várias entidades de formação, como Bravo & Barreno, o Centro de Estudos de Fitness (CEF), o Centro de Estudos de Fitness e Atividades Desportivas (Xistarca - CEFAD), Manz Produções, e Promofitness, inicialmente, seguidas de muitas outras ao longo dos anos seguintes. Durante décadas foram oferecendo formação de base e de desenvolvimento contínuo, de acordo com a legislação vigente e tendências emergentes. Esta formação rapidamente se expandiu para lá das aulas de grupo visando alcançar os interesses e necessidades dos vários “curiosos” da área e profissionais de atividades paralelas (e.g., atletas, treinadores, professores de educação física), e vários cursos, workshops, formações, eventos, congressos e afins foram criados, inicialmente para dar resposta às necessidades da área, mas mais tarde, e inevitavelmente, para dar respostas a tendências e modas muito características do mundo do fitness11.
Paralelamente, os cursos superiores de educação física ou desporto procuraram adaptar-se à realidade de um mercado crescente e da formação especializada necessária. No entanto, essa adaptação surge com algum atraso, e apenas no final dos anos 9012, mas particularmente durante a primeira década de 2000, se verificou uma maior preocupação no ajuste dos conteúdos curriculares (e.g., através da divisão por ramos de formação ou cursos específicos). Nesta altura, o espaço vazio que resultava da jovialidade de uma área profissional em crescimento e a necessitar fortemente de evidência científica e metodologias específicas de trabalho, de forma a dar resposta a tendências emergentes com várias origens e às necessidades da população, e os interesses económicos de várias entidades e locais que viram no fitness um espaço de tendência crescente e mercado de negócio, criaram as condições que levaram a que após 40 anos de existência organizada do fitness e ginásios, ainda existam práticas, profissionais e contextos assustadoramente aquém do potencial da área, e do desejado e esperado de uma classe profissional madura.
O contexto atual deriva da sua história, mas será que aprende com ela? Os últimos 20 anos em Portugal
Na entrada do novo milénio houve em certos contextos a implementação do melhor que a ciência da área e as linhas orientadoras das principais entidades de referência traziam. O acompanhamento efetivo em sala de exercício, a realização de avaliações físicas completas, a organização das atividades, a preocupação com o cliente enquanto indivíduo, a divisão da sala de exercício por áreas de intervenção, são apenas alguns aspetos que, para quem vivenciou essa época em alguns dos espaços nacionais que se destacaram nesse período, se podiam facilmente observar. Esta tentativa de upgrade às práticas existentes surge numa segunda geração de profissionais13, que na senda de dar continuidade aos esforços dos pioneiros nacionais, procuraram ajustar, atualizar, e renovar essas práticas, trazendo a cientificidade aliada às práticas orientadas para a estética, saúde ou lazer.
De um ponto de vista puramente opinativo, dada a falta de dados objetivos que avaliassem esta assunção, mas ao mesmo tempo de quem presenciou esse período, viveu-se entre 1997 e 2008 o período dourado da qualidade técnica dos ginásios e suas práticas14. O exercício era então prescrito e supervisionado por professores, que tinham como único objetivo da sua prática a satisfação dos interesses do seu cliente. As avaliações periódicas e as rotinas de treino de cada mesociclo faziam parte do acompanhamento e incluídas na mensalidade do espaço de prática, as aulas de grupo eram coreografadas pelo professor e dadas como se de um espetáculo se tratasse, e o treino personalizado era apenas um serviço de “luxo” para quem tinha extrema necessidade ou disponibilidade financeira. Pode parecer um contrassenso, considerando a evolução que o conhecimento técnico e científico da área adquiriu desde então, a melhoria da qualidade dos equipamentos e espaços de prática, a formação mais abrangente dos profissionais, e até simplesmente pelo facto de no início do milénio muitos espaços de prática se terem mantido presos às ideologias primordiais do fitness que resultaram dos Estados Unidos, demorando a realizar a transição para as novas orientações de trabalho na área. No entanto, vários motivos contribuíram para que tal perceção exista, e algumas delas serão exploradas de seguida.
As cadeias de fitness e os modelos de gestão profit-based
Entre 2000 e 2010, entram e/ou expandem-se em Portugal as cadeias de fitness (ou health clubs/centros de fitness). Uma das cadeias que marcou esta década foi o Holmes Place, que ao expandir do Reino Unido a sua empresa, implementou em 1998 o seu primeiro clube em Portugal. Gradualmente, a sua expansão levou à criação de vários clubes em Portugal, tornando-se durante muito tempo a mais reconhecida marca associada aos ginásios nacionalmente.
No período 2008-2015, esta e outras cadeias trouxeram modelos de gestão muito diversos aos que existiam à data. Iniciou-se, apesar de ter sido feito de forma diferenciada consoante o clube ou marca, uma fase de maximização das receitas que cada espaço e serviço poderia realizar. Em momento incerto deste intervalo de tempo, e entre os vários exemplos possíveis, importa destacar a forma como o treino personalizado e a sua “venda” ganharam preponderância em muitos espaços e moldaram fortemente o tipo e qualidade dos serviços. A pressão para vender esse serviço15, que acarretava aumento de rendimento tanto aos clubes como profissionais, foi-se transformando rapidamente na ausência de supervisão dos serviços mais generalistas, como o apoio à sala, as avaliações (e reavaliações) físicas e treinos acompanhados, de forma a fomentar a necessidade (implícita) dos clientes em adquirirem serviços adicionais para poderem desempenhar os seus treinos de forma adequada16. Este período de procura dos melhores (dependendo do ponto de vista de quem os implementava) modelos de gestão de cada espaço, aliados a uma área desprovida de boas práticas enraizadas nos profissionais, clara perceção pública do serviço e seu valor, e a ausência de regulamentação que garantisse a qualidade do serviço e das práticas realizadas, abriram portas para um regime laissez-faire, tanto económico, legislativo, como de prática profissional em geral, ainda atualmente em vigor (Teixeira et al., 2020), apesar de diferenciado e com exceções, consoante a orientação da gestão de cada espaço/cadeia/empresa.
No entanto, a expansão de clubes a nível nacional trouxe também oferta de serviços cada vez mais diversificados, que começavam a incluir outras dimensões do bem-estar (e.g., estética, massagens, fisioterapia, alimentação saudável), assim como espaços mais adaptados e ajustados à prática das atividades de fitness. Em grande parte, o sector privado e as grandes cadeias foram, nos últimos 15 anos, os grandes impulsionadores destas atividades em Portugal, chegando a todos os distritos nacionais e providenciando estas práticas a um número alargado de pessoas, substituindo em larga escala a responsabilidade estatal de providenciar exercício físico (i.e., com supervisão) às populações (Instituto Nacional de Estatística, 2021; Pedragosa, Cardadeiro, & Santos, 2022). Surge também durante este período uma diversificação mais clara por segmento de mercado, onde classificações como premium, middle market, boutique, e low cost, começaram a entrar no léxico e modelos de gestão e organização de vários clubes (Cabral, 2022).
Algumas das transformações que operaram nessa fase permanecem atualmente e têm moldado a visão que a população obtém destes espaços e atividades. As grandes cadeias, por apresentarem, por norma, grandes superfícies de prática e envolverem milhares de praticantes (quando comparado com ginásios individuais com menor área e praticantes; Pedragosa et al., 2022), tendem a mais fácil e rapidamente influenciar a opinião da população sobre o que são, o que acontece, e o que se espera destes espaços. Locais que eventualmente representem práticas pouco profissionais, limitadas, desajustadas, e eventualmente incompetentes, tenderão a influenciar negativamente milhares de pessoas (Maguire, 2008; Melton, Dail, Katula, & Mustian, 2010), algo que atualmente já se nota na perceção de jovens estudantes na área, de clientes, e de ex-praticantes, mas que estudos futuros necessitam de verificar. Particularmente no caso de alguns ginásios e cadeias com modelos de gestão (por preço) low-cost, que possuem enorme representatividade em Portugal (Pedragosa et al., 2022), e que como consequência influenciam um maior número de pessoas, vários indicadores sugerem que têm tido menor capacidade/intenção de manter os praticantes ligados à prática, menores indicadores de qualidade técnica, e que no computo geral podem, existindo sempre casos e espaços de exceção, ter uma influência muito negativa na promoção e elevação da qualidade da área, na perceção do valor do exercício físico nestes espaços, e nas atitudes da população para com o exercício em geral (Pedragosa et al., 2022; Teixeira et al., 2020; Teixeira et al., 2023). O conjunto destas perceções e influências encontram-se organizadas cronologicamente na Figura 1.
O que se pode esperar para o futuro?
Incerteza. O fitness demonstrou ao longo da sua história ser impulsionado por fatores distintos que se sobrepõem temporalmente, mantendo um impulso dinâmico que levou à criação de espaços específicos para as necessidades das populações (Figura 1).
Outras influências têm atuado e irão regularmente moldar esta realidade. Diversas (e novas) aulas de grupo, materiais, interesses e vontades têm sido apontadas, pelos profissionais, como tendências ao longo destes últimos anos (Franco et al., 2022), apesar de ser relativamente incerto o que as pessoas irão efetivamente demonstrar como interesse. Apesar da COVID-19 ter abalado o setor e incentivado a reorganização e reinvenção de algumas práticas (e.g., treino ao ar livre; treino ao domicílio; aulas virtuais) (Teixeira et al., 2022), no fundamental, alguns dos problemas identificados previamente na literatura mantêm-se (e.g., para mais informação ver Teixeira et al., 2020). A própria ação de muitos autoproclamados influencers nas suas plataformas sociais tende a ser mais perniciosa para a área e para a criação de mitos e crenças do que em qualquer outro momento histórico (Curtis, Prichard, Gosse, Stankevicius, & Maher, 2023), levantando novos desafios atualmente difíceis de superar. O advento das aulas e treinos gravados, das sessões online massificadas, e da inteligência artificial, que é nesta fase o indicador mais recente de uma corrente de problemas que as aplicações de telemóvel que propõem treinos ou exercícios já demostravam, poderão revolucionar a área, particularmente face à passividade e impreparação que se deteta em muitos espaços e profissionais, favorecendo a automatização de um processo que deveria ser essencialmente de natureza interpessoal, e que será rapidamente bem aceite numa economia orientada para o melhor rácio despesa-rendimento.
O curto período de existência da área continua a ser um dos principais fatores de instabilidade, deixando em aberto o espaço para a pseudociência e práticas abusivas. A falta de legislação adaptada a uma realidade que devia estar orientada para a prestação de um serviço de segurança e qualidade, continua a não defender a área e seus profissionais17, apesar de alguns esforços nesse sentido (Mestre, 2017). No final, o futuro do fitness nacional dependerá dos profissionais e entidades relacionadas, da forma como este é elevado, clarificado, e fortalecido perante a sociedade, e do resultante impacto na saúde e bem-estar das populações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso histórico que levou ao aparecimento do fitness como o conhecemos resulta de uma intrincada rede de influências internacionais, de natureza cultural, social e económica, que se conjugaram quase concomitantemente em certos períodos históricos e se expandiram para Portugal e para o seu enquadramento sociocultural. Múltiplos impulsos temporalmente sobrepostos permitiram esses avanços, e pela sua brevidade histórica quando comparado com outras áreas científicas, profissionais ou níveis de intervenção, o fitness está ainda muito propenso e exposto a várias influências que não permitem adequadamente definir e clarificar o seu espaço de atuação e propósito.
Muitas das perceções apresentadas neste trabalho são difíceis de consubstanciar dada a falta de exploração destes temas em Portugal. Para além da brevidade histórica da área, outros fatores ainda justificam algumas das dificuldades verificadas neste desígnio. Por um lado, a ausência de iniciativa pública na criação e disseminação de espaços desta natureza que permitam realizar um contraste com a realidade privada, e assim apresentar um trilho operacional e cronológico ao longo dos tempos passível de ser analisado mais objetivamente, é algo que não parece estar na agenda de discussão pública, deixando em grande parte a responsabilidade de fomentar o exercício físico supervisionado e orientado para a saúde e bem-estar ao encargo de entidades de gestão privada. Acresce ainda que a insuficiente (e relativamente recente) regulamentação legal, efetivamente aplicada e ajustada ao contexto, assim como a ausência de registos objetivos e de incentivos à evolução científica na área (Teixeira et al., 2023), são também fatores relevantes para a estagnação de algumas facetas relevantes para a implementação das atividades de ginásios e dos seus profissionais como agentes essenciais para a promoção da saúde pública. A transformação do atual panorama do fitness nacional naquilo que o seu potencial permite vislumbrar terá ainda um longo (e muito incerto) caminho a percorrer.
Relatar a História é também, muitas vezes, partilhar as experiências vividas. Este trabalho procurou, na interseção possível entre factos de certos períodos históricos e as experiências vividas pelos autores, relatar brevemente alguns marcos significativos do fitness nacional, na expectativa que algumas bases sejam criadas para explorações mais profundas. Outros “olhos” poderão ter uma visão diferente do retratado, o que será certamente importante para discussões futuras e enriquecimento do conhecimento sobre o desenvolvimento do fitness e suas práticas. Importa ainda enquadrar que a realidade retratada não representa todos os espaços nem regiões nacionais, visto que as transformações decorreram a ritmos diferentes, com processos e visões distintas, e nenhuma caracterização exaustiva sobre o tema foi realizada em Portugal que nos permitisse usar como suporte a parte destas perceções.
Por fim, julgamos que se criou um ponto de partida para um registo histórico mais detalhado de uma área que tem estado em permanente expansão. Mas mais do que isso, procurámos traçar o caminho que explica muitas das influências que resultam no que experienciamos atualmente, permitindo compreender motivos subjacentes a muitos dos problemas que enfrentamos. Esperançosamente, esperamos que este caminho agora realçado ajude os profissionais da área a traçar novos rumos visando a elevação e dignificação da área e a promoção da saúde e bem-estar das populações.