INTRODUÇÃO
O sujeito realiza um conjunto de análises que permitem a avaliação sobre o grau de agradabilidade com a vida, da qual faz parte a dimensão cognitiva, que se traduz na satisfação com a vida e o seu contexto, e a dimensão afetiva e emocional que se expressa nos sentimentos de felicidade e estados afetivos positivos (Candeias, 2019).
No funcionamento psicológico, a perspetiva temporal é um aspeto central no dia-a-dia do ser humano, com um impacto nos pensamentos, sentimentos e comportamentos e está fortemente associada a indicadores de bem-estar mental e demonstraram prever até 40% da sua variação. Contudo, a relação entre a perspetiva temporal e os mecanismos específicos que melhoram o bem-estar ainda requer uma maior exploração. O ponto de vista aristotélico sobre o bem-estar é amplamente partilhado, uma vez que se centra no facto de o bem-estar não ser apenas uma sensação de felicidade. Os seres humanos têm mais faculdades do que apenas sentir felicidade, prazer ou dor, nomeadamente são criaturas de raciocínio e de criação de sentido, de imaginação e de ligações e identidades intra e intersocietais (Burzynska & Stolarski, 2020).
De acordo com os autores García-Álvarez et al. (2021) e Morales-Rodríguez et al. (2020) o bem-estar pode ser dividido em bem-estar subjetivo, que se refere geralmente à pessoa, à sua qualidade de vida e à avaliação emocional e cognitiva, e o bem-estar psicológico, que enfatiza o potencial e a capacidade da pessoa para alcançar o bem-estar.
O bem-estar subjetivo traduz-se numa atitude e sentimentos positivos produzidos pelos indivíduos através da comparação entre condições de vida reais e ideais. Inclui avaliação dos períodos de vida das pessoas relativamente a um acontecimento, criando sentimentos de satisfação com a vida, de sentido de realização, em diferentes dimensões como por exemplo trabalho, família, rendimento escolar e outras áreas associadas da vida emocional (Villani et al., 2021). A perspetiva hedónica deu origem ao modelo de bem-estar subjetivo, que surgiu numa época em que as preocupações científicas, sociais e políticas procuravam quantificar a qualidade de vida numa perspetiva subjetiva em oposição a indicadores económicos e demográficos. Trata-se de um modelo formado por um conjunto de diferentes conceitos, como felicidade, satisfação com a vida e experiências emocionais positivas e negativas. Embora as críticas de que tem sido alvo, em relação ao facto de ter sido construído com base em dados empíricos e não a partir de modelos teóricos, ganhou muita expressividade ao nível da investigação.
O ensino superior engloba transições na vida dos estudantes, nomeadamente a passagem da escola para a aprendizagem autodirigida, a saída de "casa" para uma vida independente, com responsabilidades acrescidas, a preparação para uma vida profissional, o desenvolvimento de competências interpessoais e competências para a vida adulta (Hewitt, 2019). Estes processos que conduzem ao autodesenvolvimento têm impacto direto e indireto na saúde e bem-estar dos estudantes (Nissen et al., 2019).
Durante a vida académica, os estudantes são frequentemente confrontados com problemas institucionais e individuais que podem pôr em risco a sua saúde e o seu bem-estar. Vários estudos sublinham a importância de avaliar a saúde mental dos estudantes que frequentam o ensino superior, atendendo às características do contexto académico. Recomendam uma abordagem holística e multidimensional ao bem-estar, como forma de compreender os processos que permitem aos estudantes do ensino superior enfrentar as diversidades e dificuldades, minimizando os seus impactos na saúde mental e bem-estar (Barrable et al., 2018). Também o relatório realizado para o Higher Education Policy Institute, no Reino Unido (Hewitt, 2019) sugere a utilização de um modelo de avaliação que inclua a saúde mental no bem-estar dos estudantes.
Em geral, os estudos efetuados com estudantes do ensino superior relataram níveis elevados de problemas de saúde mental, evidenciando sintomas, que podem ser incapacitantes como ansiedade, depressão e angústia psicológica, com consequências no rendimento escolar, no abandono do ensino superior (Neves & Hillman, 2019) e até no consumo de psicofármacos. A dimensão deste problema é desconhecida, e o consumo iniciado durante a juventude, pode perpetuar-se ao longo da vida e, consequentemente, é necessário alertar que o consumo de medicamentos potencialmente inapropriados, predispõe à ocorrência de interações e efeitos adversos, aumento da morbimortalidade e dos custos em saúde (Peixoto et al., 2021).
Mais recentemente literatura científica sobre o bem-estar psicológico dos estudantes do ensino superior está relacionada com a COVID-19, apontando para um nível de bem-estar psicológico baixo (Dodd et al., 2021), com perturbações da saúde mental e física (Son et al., 2020).
As evidências científicas documentaram que, em resposta à propagação do SARS-CoV-2, as instituições de ensino superior encerraram os seus campus físicos e rapidamente as aulas presenciais transitaram para um ensino à distância, utilizando meios telemáticos, em conformidade com as medidas excecionais de prevenção. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO, 2020), a pandemia interrompeu a aprendizagem de mais de mil milhões de estudantes em 129 países, em todo o mundo. Em Portugal, as instituições de ensino superior foram forçadas a fazer ajustamentos atempados para assegurar os processos educativos e o progresso académico dos estudantes.
A importância da investigação sobre bem-estar psicológico em estudantes do ensino superior prendeu-se com o facto de ser um período de grandes mudanças, pela necessidade de adaptação a novas exigências, mas também porque em Portugal, o contexto epidemiológico da COVID-19 e a necessidade emergente de, no contexto académico, inovar novas formas de aprendizagem, não subtraiu a necessidade de avaliar e monitorizar o bem-estar psicológico em estudantes do ensino superior.
Por conseguinte, esta investigação assume relevância, e tem como objetivo avaliar o nível de bem-estar psicológico em estudantes a frequentar o Curso de Licenciatura em Enfermagem, de uma Universidade do Norte do País, e a sua relação com o sexo e a idade.
MÉTODO
O desenho metodológico desta investigação assumiu as caraterísticas de um estudo de natureza quantitativa, transversal e correlacional, com recolha da informação num momento específico, através da aplicação de um questionário. Foi utlizado um conjunto de técnicas que permitiram transformar os dados em informação quantitativa, passível de aplicação em qualquer plano de investigação (Coutinho, 2021). Os procedimentos relativos à estatística descritiva e inferencial, e de acordo com o mesmo autor, tiveram por base o tipo distribuição das respostas, das escalas de representação dos dados e da dimensão da amostra.
Amostra
No presente estudo a população alvo foi constituída pelos estudantes do Curso de Licenciatura em Enfermagem, cuja amostra foi selecionada de modo não probabilístico, por conveniência, ficando constituída por 203 estudantes e que cumpriam o critério de inclusão de estar matriculado e a frequentar o Curso de Licenciatura em Enfermagem, de uma Universidade do Norte do País, no ano letivo 2020/21.
Instrumentos
O processo de recolha de dados neste estudo foi efetuado através de um questionário que integrou questões para a caraterização sociodemográfica (sexo e idade) e o questionário Geral de Bem-Estar Psicológico, versão reduzida (QGBEP-R), adaptado e validado em estudantes portugueses (Pereira et al., 2018), apresentando boa consistência interna (alfa de Cronbach= 0,86). O QGBEP-R é composto por seis itens, alguns respondidos em escala tipo likert de frequência, com cinco alternativas de resposta, de "Nunca a "Sempre"; outros em escala tipo likert de intensidade, também com cinco alternativas de resposta, de "Senti-me cheio de energia" a "Senti que não tinha nenhuma energia ou vitalidade em relação a tudo". O valor das pontuações atribuídas aos itens 2, 3, e 6 são invertidos, só posteriormente se calcula a pontuação total de bem-estar psicológico somando a pontuação nos seis itens, cujo valor pode variar entre zero (0) e trinta (30). Pontuações mais elevadas correspondem a níveis superiores de bem-estar psicológico, quanto mais elevada for a pontuação obtida, melhor perceção bem-estar psicológico pelo estudante, considerando-se bem-estar geral, quando o resultado é superior a quinze (15).
Procedimentos
Durante a investigação, salvaguardaram-se os direitos dos participantes e os princípios éticos. Os estudantes foram informados sobre o tema e objetivos da investigação, foi solicitado o pedido de colaboração para o preenchimento e para a necessidade de resposta a todas as questões, foi garantido o anonimato e a confidencialidade das respostas. Respeitaram-se as normas de conduta próprias inerentes a um trabalho de investigação, pelo que foi solicitado o parecer à Comissão de Ética da Universidade do Norte do País (Ref: Doc83-CE-2020).
Os questionários foram codificados e a informação recolhida foi mantida de forma anónima e confidencial e os resultados apenas utilizados para este estudo e publicações associadas. Os questionários foram respondidos após um período de confinamento por COVID-19.
Análise estatística
Para o tratamento e análise de dados foi construída uma base de dados em Microsoft Excel® e posteriormente transferidos para o software estatístico IBM SPSS® Statistics (versão 27.0). A estatística descritiva possibilitou determinar as frequências absolutas e relativas, medidas de tendência central e de dispersão. Na análise inferencial optou-se por testes não paramétricos, após a aplicação do teste Kolmogorov-Smirnov-Lilliefors, dado ter-se verificado que a distribuição referente aos itens da variável bem-estar psicológico, não se encontravam todos enquadrados na normalidade (p> 0,05). Deste modo, utilizou-se o teste de U-Mann Whitney (UMW) para comparar médias de uma variável quantitativa em dois grupos de sujeitos diferentes e quando se desconhecem as respetivas variâncias populacionais (Coutinho, 2021).
RESULTADOS
A amostra foi constituída por 203 participantes sendo que maioritariamente do sexo feminino (79%) e 21% do sexo masculino. A média de idades foi de 21,9 anos (desvio padrão= 3,9; mínimo 18 e máximo 41). Relativamente à tipologia de residência 55,2% dos estudantes residiam com a família. Para 44,8% dos estudantes, o agregado de residência era constituído, por ordem decrescente, por 3 coabitantes (25,1%), 4 coabitantes (14,3%) e 2 coabitantes (12,8%).
Quanto ao QGBEP-R, os estudantes apresentaram bem-estar psicológico, sendo a média de 16,8 (desvio padrão= 5,203), variando entre o mínimo de 4 e o máximo de 30.
No que respeita à relação entre o bem-estar psicológico e o sexo dos estudantes de uma Universidade do Norte do País, apenas se verificou relação estatisticamente significativa entre o item 2 "Quanta energia ou vitalidade sentiste?", sendo que os estudantes do sexo masculino (p= 0,028) apresentaram um valor de ordenação média mais elevado (OM= 118,18) (Tabela 1). Apesar de não se verificarem diferenças estatisticamente significativas, os estudantes do sexo masculino apresentaram níveis superiores de bem-estar psicológico.
Sexo | Masculino | Feminino | UMW | Valor p |
---|---|---|---|---|
Ordenação média | Ordenação média | |||
Sentiste-te incomodado(a)/aborrecido(a)/nervoso? | 114,94 | 98,31 | 2.972,500 | 0,085 |
Quanta energia ou vitalidade sentiste? | 118,18 | 97,39 | 2.827,000 | 0,028 |
Sentiste-te abatido? | 112,70 | 98,95 | 3.073,50 | 0,141 |
Sentiste-te emocionalmente estável e seguro de si próprio? | 108,86 | 100,05 | 3.246,500 | 0,362 |
Sentiste-te alegre? | 98,81 | 102,91 | 3.411,500 | 0,668 |
Sentiste-te cansado? | 99,91 | 102,59 | 3.461,000 | 0,778 |
Total do bem-estar psicológico | 112,60 | 98,98 | 3.078,000 | 0,169 |
UMW: Teste U de Mann-Whitney.
Quanto à relação entre o bem-estar psicológico e a idade, não se verificou relação estatisticamente significativa (Tabela 2). Em termos de valores de ordenação média, os estudantes com mais de 20 anos, apresentaram pontuações mais elevadas, com exceção nos itens 2 "Quanta energia ou vitalidade sentiste?" e 4 "Sentiste-te emocionalmente estável e seguro de si próprio?".
Idade | ≤ 20 anos | > 20 anos | UMW | Valor p |
---|---|---|---|---|
Ordenação Média | Ordenação Média | |||
Sentiste-te incomodado(a)/aborrecido(a)/nervoso? | 96,16 | 106,04 | 4.495,000 | 0,226 |
Quanta energia ou vitalidade sentiste? | 103,56 | 100,92 | 4.850,500 | 0,740 |
Sentiste-te abatido? | 96,30 | 105,95 | 4.506,500 | 0,221 |
Sentiste-te emocionalmente estável e seguro de si próprio? | 103,78 | 100,77 | 4.832,500 | 0,713 |
Sentiste-te alegre? | 100,18 | 103,26 | 4.829,000 | 0,703 |
Sentiste-te cansado? | 98,27 | 104,58 | 4.670,000 | 0,431 |
Total do bem-estar psicológico | 98,48 | 104,44 | 4.687,500 | 0,476 |
UMW: Teste U de Mann-Whitney.
DISCUSSÃO
Verificou-se que a maioria dos participantes era do sexo feminino resultado espectável na medida em que na profissão de enfermagem continua perpertuar-se a relação do feminino com o papel de cuidar. Relativamente à tipologia de residência, salientamos que 44,8% dos estudantes não residiam com o agregado familiar, sendo este dado relevante pelo facto de muitas famílias terem vivenciado perdas de rendimento originadas pelas medidas de mitigação da pandemia, com possíveis implicações na qualidade de vida familiar, e consequentemente no bem-estar dos estudantes. De facto, alguns estudos consideram que o stress financeiro diminui o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas (Baiano et al., 2020; Stevenson et al., 2020).
O estudo efetuado por Li et al. (2021) revelou que as consequências psicológicas da pandemia por COVID-19 em estudantes do ensino superior podem ser graves, com manifestações de stresse, ansiedade e depressão no estadio inicial da pandemia COVID-19. No entanto, os estudantes da área da saúde, como os de enfermagem, podem apresentar níveis mais baixos de bem-estar psicológico do que os estudantes de outras áreas, decorrente da situação pandémica (Ye et al., 2020). Silva et al. (2021), num estudo realizado em Portugal sobre o impacto do confinamento decorrente da COVID-19, na saúde mental e bem-estar psicológico em 775 estudantes do ensino superior, referem que a COVID-19 teve um impacto especial, decorrente do isolamento social, da restrição da mobilidade e dos contactos sociais, acarretando para os estudantes níveis mais elevados de stresse. Por conseguinte, os mesmos autores reforçam que a capacidade de adaptação a estas situações tem implícita a singularidade dos recursos de cada estudante, que se revela decisiva na gestão do bem-estar psicológico. Sublinham também que as mulheres apresentavam níveis de stresse, ansiedade e depressão mais elevados, refletindo-se em menor valorização do próprio bem-estar psicológico.
Os resultados desta investigação são concordantes com os de Holm-Hadulla et al. (2021), ao constatarem que os estudantes com mais idade manifestavam níveis superiores de bem-estar psicológico, enquanto os mais novos expressaram solidão, sintomas depressivos e falta de reconhecimento da situação académica pelas restrições de contacto social decorrentes da pandemia. Os resultados encontrados no presente estudo poderão ser explicados pelo facto de os estudantes mais velhos terem mais resiliência do que os mais novos, provavelmente por ainda se encontrarem numa fase de transição para o ensino superior. Nesta etapa da vida, os estudantes são confrontados com necessidades de adaptação a um novo ambiente de aprendizagem, de gestão das exigências académicas e sociais, e de expectativas académicas, por vezes elevadas, e que constituem fatores de risco para a saúde física e mental dos estudantes, com consequente diminuição do bem-estar psicológico.
CONCLUSÕES
Sublinha-se que 77,8% dos estudantes eram do sexo feminino e 59,1% pertenciam à faixa etária superior a 20 anos. Os estudantes apresentaram bem-estar psicológico, sendo a média de 16,8. Verificou-se relação estatisticamente significativa entre o item 2 "Quanta energia ou vitalidade sentiste?" e o sexo, sendo que o sexo masculino apresentou pontuação mais elevada. Não se verificou relação estatisticamente significativa entre o nível de bem-estar psicológico em estudantes e a idade.
Os resultados do estudo foram incorporados na conceção de um projeto de intervenção comunitária com o objetivo de capacitar os estudantes para a utilização de estratégias de coping, para assegurar os processos desenvolvimentais e académicos, promovendo o bem-estar psicológico dos estudantes.