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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia

versão impressa ISSN 1646-2122

Rev. Port. Ortop. Traum. vol.20 no.1 Lisboa mar. 2012

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Reinserção artroscópica do supra-espinhoso. O que fazer com a longa porção do bicípite braquial? Estudo prospetivo de 42 doentes

 

Clara AzevedoI, II; Susana VingaIII

I. Departamento de Bioestatística. Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa.Lisboa. Portugal.
II. Serviço de Ortopedia do GIGA. Grupo de Gestão Integrada de Acidentes, SA. Lisboa. Portugal.
III. Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Hospital São Francisco Xavier. Lisboa. Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO

Introdução: A lesão da longa porção do bicípite (LPB) associada à rotura do supra-espinhoso é muito frequente, mas não é consensual quando e como intervir sobre a LPB.

Objetivos: avaliar se o gesto na LPB, na reparação artroscópica do supra-espinhoso, tem repercussão no resultado funcional global do ombro, na frequência de sinal de Popeye e de dor bicipital, e na satisfação do doente.

Material e Métodos: 42 doentes, divididos em três grupos: 1. Nenhum gesto na LPB (8); 2. Tenotomia (12); 3. Tenodese (22); ecomparados quanto: à avaliação funcional do ombro pré-operatória e aos 6 meses pós-operatórios [(Simple Shoulder Test (SST); score de Constant-Murley (CM]; à presença de sinal de Popeye ou de dor bicipital; ao grau de satisfação. Análise estatística: testes de comparação de grupos; IBM® SPSS® Statistics 19.

Resultados: Não houve diferença estatisticamente significativa entre os 3 grupos (p>0,05) quanto às variáveis iniciais (idade, sexo, tipo de profissão, pedido de indemnização do trabalhador, lesão da LPB, rotura do supra-espinhoso, SST e score de CM pré-operatórios) e quanto à melhoria do SST e do score de CM aos 6 meses. No grupo da tenotomia houve um sinal de Popeye (9,1%), e uma maior percentagem de dor bicipital (18,1%) do que no grupo da tenodese (9,1%), mas sem significado estatístico. A satisfação foi menor no grupo com nenhum gesto na LPB (37,5%, IC95%=[8,5%;75,5%]) do que nos grupos da tenotomia e tenodese (97,1%, IC95%=[84,7%;99,9%]), com significado estatístico (p=3.7E-4, Fisher’s exact test).

Conclusões: O gesto sobre a LPB na reparação do supra-espinhoso não tem repercussão sobre o resultado funcional do ombro aos 6 meses pós-operatórios. Contudo, não intervir traduz-se numa menor satisfação, quando comparado com a tenotomia ou a tenodese. Poderá ser aconselhável realizar sempre a tenotomia ou a tenodese quando se procede à reparação de uma rotura do supra-espinhoso.

Palavras chave: longa porção do bicípite, tenotomia, tenodese, supra-espinhoso, artroscopia.

 

ABSTRACT

Introduction: Long head of biceps brachii lesions in association with supraspinatus tendon tears are very frequent, but there is no consensus on when and how to deal with them.

Purpose: to determine if treating the long head of biceps, when repairing a supraspinatus tendon tear, has a repercussion on: the global functional outcome of the shoulder; the incidence of a Popeye sign; bicipital pain; and patient satisfaction.

Methods: 42 patients were divided in three groups: 1. No procedure performed on the long head of biceps brachii (8); 2. Tenotomy (12); 3. Tenodesis (22); and compared for: functional status of the shoulder preoperatively and at 6 months postoperative [Simple Shoulder Test (SST); Constant-Murley score (CM)]; presence of a Popeye sign, or bicipital pain; patient satisfaction. Statistical analysis: group comparison tests; IBM® SPSS® Statistics 19. Level of evidence: Level II 

Results: There was no significant difference between the three groups (p>0,05) considering the initial variables (age, sex, occupation, workman’s compensation, long head of bíceps brachii lesion, supraspinatus tendon tear, and preoperative SST and CM) and the SST and CM improval at 6 months. In the tenotomy group, there was one Popeye sign (9.1%), and a higher percentage of bicipital pain (18.1%) than in the tenodesis group (9.1%), but this was not statistically significant. Patient satisfaction was lower in the group with no procedure performed on the long head of biceps brachii (37.5%, CI95%=[8.5%;75.5%]) than in the tenotomy and tenodesis groups (97.1%, CI95%=[84.7%;99.9%]), statistically significant (p-value=3.7E-4, Fisher’s exact test).

Conclusions: Long head of bíceps brachii procedures in supraspinatus tendon tear repairs do not have a repercussion on the functional outcome of the shoulder at 6 months. However, not performing any procedure results in a lower satisfaction rate, compared with tenotomy or tenodesis. It might be advisable to always perform either a tenotomy, or a tenodesis, when repairing a supraspinatus tendon tear.

Key words: Long head of bíceps brachii, tenotomy, tenodesis, supraspinatus, arthroscopy.

 

INTRODUÇÃO

A lesão da longa porção do bicípite braquial, associada à rotura da coifa dos rotadores, é muito frequente, podendo ocorrer em 76% dos casos[1]. Esta lesão determina queixas que se confundem com a apresentação clínica da rotura da coifa, com dor anterior e perda de elevação do ombro[2]. Na presença de patologia da longa porção do bicípite, tal como uma rotura parcial, ou uma lesão em vidro de relógio, a decisão de intervir com uma tenotomia ou tenodese é relativamente consensual. Contudo, no contexto de uma rotura da coifa dos rotadores, a decisão de tenotomizar ou tenodesar a longa porção do bicípite continua a ser baseada na experiência clínica sem evidência[3]: o mecanismo patológico que determina a lesão da longa porção do bicípite não está esclarecido, e não se sabe se as alterações da longa porção do bicípite poderão melhorar após a reparação da coifa dos rotadores.

Estudos recentes, realizados em modelos animais (ratos)[4], demonstraram que o mecanismo para a patologia da longa porção do bicípite braquial, na presença de uma rotura da coifa dos rotadores, poderá ser o aumento da carga compressiva distalmente à sua inserção óssea proximal e que, uma vez removida essa carga, há uma melhoria da histologia, organização e composição do tendão. À luz destes resultados, pode-se por a hipótese de que a reinserção da coifa dos rotadores, ao repor a biomecânica do ombro, pode favorecer a reversão da evolução patológica da longa porção do bicípite braquial, deixando de haver justificação para concomitantemente realizar um gesto sobre a longa porção do bicípite braquial. Contudo, pode-se, também, por a hipótese de que a reinserção do supra-espinhoso nunca reporá fielmente a biomecânica natural do supra-espinhoso, logo a carga sobre a porção intra-articular da longa porção do bicípite braquial nunca será a natural, e a causa da patologia da longa porção do bicípite braquial podese perpetuar, podendo determinar um mau resultado funcional global do ombro, apesar da reposição da integridade do supra-espinhoso. Justificar-se-ia, assim, a decisão de realizar um gesto sobre a longa porção do bicípite concomitantemente (tenotomia ou tenodese), independentemente de esta apresentar sinais patológicos macroscópicos.

Quanto ao tipo de gesto na longa porção do bicípite, vários estudos têm tentado demonstrar as vantagens da tenotomia sobre a tenodese[2]: gesto tecnicamente mais fácil e rápido, bem tolerado, produzindo menos dor bicipital, em média de 19%[5]; ou as vantagens da tenodese sobre a tenotomia: maior razão tendão/falência sob carga, menor incidência de sinal de Popeye, menor incidência de diminuição da força de flexão e supinação do cotovelo, requerendo menos reabilitação pos-operatória, com um retorno mais rápido à atividade física. Contudo, ainda não há consenso na literatura, nem há estudos prospetivos conclusivos que  analisem especificamente a repercussão, no resultado funcional global do ombro, do gesto na longa porção do bicípite na reinserção do supra-espinhoso. Perceber se há repercussão do gesto  na longa porção do bicípite braquial no resultadofuncional global do ombro pode ajudar o cirurgião na sua decisão.

O objetivo deste estudo foi avaliar se, na reparação artroscópica do supra-espinhoso, o gesto na longa porção do bicípite braquial (nenhum gesto, tenotomia ou tenodese) tem repercussão no resultado funcional global do ombro, na frequência de sinal de Popeye e de dor bicipital, e no grau de satisfação do doente.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Todos os pacientes deram consentimento informado por escrito, antes de serem operados, compreendendo os riscos e benefícios dos procedimentos, tendo sido informados que os seus dados clínicos seriam utilizados para investigação.

Desenho do estudo

Desenhou-se um estudo prospetivo comparativo do resultado global funcional dos ombros submetidos a reinserção artroscópica do supra-espinhoso, em que a decisão de realizar nenhum gesto sobre a longa porção do bicípite, versus tenotomia, versus tenodese, seria tomada intraoperatoriamente, através da integração de um conjunto de critérios: idade do doente, tipo de profissão, grau de obesidade do braço, patologia associada do complexo bicípite-labrum, sinais macroscópicos de lesão da longa porção do bicípite, lesão associada do subescapular, avaliação artroscópica glenoumeral de ausência de conflito dinâmico entre a longa porção do bicípite braquial e o supra-espinhoso reinserido.

Seleção dos doentes

Os critérios de inclusão do estudo foram: doentes consecutivos, com diagnóstico pré-operatório de rotura da coifa dos rotadores, programados para operar pelo primeiro autor, de 1 de dezembro de 2008 a 31 outubro de 2010, e submetidos a reinserção artroscópica da rotura do supra-espinhoso. Os critérios de exclusão foram doentes programados para reparação de rotura da coifa com: cirurgia prévia do ombro; fratura proximal do úmero; rotura da coifa em que o supra-espinhoso não foi reinserido(reinserção do subescapular e tenotomia ou tenodese da longa porção do bicípite braquial, associada a desbridamento de rotura parcial do supra-espinhoso, ou rotura maciça irreparável da coifa dos rotadores). Em 86 doentes programados para operar com o diagnóstico de rotura da coifa dos rotadores, foram incluídos no estudo os 42 doentes em que foi realizada a reinserção artroscópica do supra-espinhoso, e foram excluídos de integrar o estudo 44 doentes (3 doentes para revisão de reparação de rotura da coifa dos rotadores; 1 doente para reinserção do supra-espinhoso, com cirurgia prévia do ombro; 31 doentes com rotura parcial do supraespinhoso tratada por desbridamento; 3 doentes com rotura do subescapular reinserida, associada a rotura parcial do supra-espinhoso tratada por desbridamento, e tenodese ou tenotomia da longa porção do bicípite braquial; e 6 doentes com rotura maciça irreparável da coifa dos rotadores tratada por desbridamento da coifa, e tenodese ou tenotomia da longa porção do bicípite braquial).

Técnica cirúrgica

Os doentes foram operados sob anestesia geral, em posição de semissentado, com utilização de sistema de tração com 3 Kg, com o ombro entre 45º e 60º de elevação, por via artroscópica glenoumeral e subacromial. As roturas do supra-espinhoso e do subescapular foram reinseridas com suturas não reabsorvíveis (polietileno número 2) em monofileira de âncoras reabsorvíveis (âncoras de poli-L-ácido láctico, PLLA, em 40 casos) ou de âncoras não reabsorvíveis (âncoras de poli-eter-eter-cetona, PEEK, 2 casos). A tenodese da longa porção do bicípite realizada foi intra-articular, com fixação por sutura não-reabsorvível (polietileno número 2) de uma âncora reabsorvível de 5mm de diâmetro de PLLA implantada na goteira umeral do bicípite, numa posição suficientemente distal à cartilagem articular da cabeça umeral para não gerar conflito intra-articular do coto. A sutura à âncora (Figura 1) foi realizada com uma passagem de uma linha da sutura através da longa porção do bicípite braquial, seguida de uma passagem circunferencial da mesma linha de sutura em torno da longa porção do bicípite braquial, antes de serem dados os nós (um nó de correr, tipo fishing knot, seguido de três meios nós). Seguidamente foi realizada a secção por radiofrequência, e remoção da porção intra-articular da longa porção do bicípite braquial, deixando a antiga zona de ancoragem proximal do bicípite regularizada. A tenotomia da longa porção do bicípite foi realizada através da secção por radiofrequência da longa porção do bicípite na zona da goteira umeral bicipital, seguida da secção na zona de ancoragem proximal do bicípite braquial e remoção do segmento intra-articular, sendo o método e o nível de secção da longa porção do bicípite braquial na goteira bicipital idêntico ao da tenodese. A decisão do gesto a realizar foi tomada intraoperatoriamente: a realização de nenhum gesto na longa porção do bicípite braquial foi favorecida em doentes com menos de 50 anos, trabalhadores manuais ativos, sem patologia do complexo bicípite-labrum, e sem rotura da longa porção do bicípite braquial ou do subescapular associadas à rotura do supraespinhoso, mas foi condicionada à confirmação, por via artroscópica glenoumeral, de ausência de conflito dinâmico da longa porção do bicípite com o supraespinhoso reinserido; a tenotomia foi favorecida em doentes com mais de 50 anos de idade, com obesidade do braço e lesão do complexo bicípite-labrum, ou rotura da longa porção do bicípite ou do subescapular; a tenodese foi favorecida em doentes com menos de 50 anos de idade, com patologia do complexo bicípitelabrum, ou rotura da longa porção do bicípite braquial ou do subescapular.

Protocolo de reabilitação

Os doentes foram imobilizados em suspensão braquial com banda torácica comercial ainda no bloco operatório, antes de revertida a anestesia. Foi dada indicação para iniciarem exercícios do ombro passivos, de duas em duas horas, a partir do dia da cirurgia (movimentos pendulares, elevação passiva até 90º) e até às 3 semanas pos-operatórias, data em que iniciaram fisioterapia formal, em diferentes centros de fisioterapia, sem intervenção seletiva dos autores. A banda torácica foi removida às 3 semanas, e a suspensão braquial foi removida às 6 semanas pós-operatórias. Foi dada indicação para iniciar, às 3 semanas pós-operatórias, a mobilização passiva completa, e para a mobilização ativa não resistida ser limitada pelo limiar da dor. Foi interdito o início de exercícios ativos resistidos até aos 4 meses pósoperatórios, consoante a gravidade e complexidade da reparação da rotura do supra-espinhoso e o limiar da dor. Foram dadas indicações específicas suplementares para os doentes do grupo da tenodese e da tenotomia: mobilização do cotovelo passiva durante as primeiras 3 semanas, mobilização ativa não resistida entre as 3 e as 6 semanas, e mobilização ativa resistida permitida a partir das 6 semanas pós-operatórias.

Avaliação dos doentes

A avaliação funcional global do ombros foi realizada pré-operatoriamente e aos 6 meses pósoperatórios, utilizando: o Simple Shoulder Test (SST)[6]; e o score de Constant-Murley (CM) [7], excluindo a variável objetiva de avaliação de força de abdução deste score (pelo que o máximo de pontuação possível passou para 75 pontos, correspondendo à soma das  variáveis subjetivas e objetiva restante do score). A presença de sinal de Popeye, definido como a tradução clínica da migração distal no braço do corpo muscular da longa porção do bicípite braquial à flexão e supinação do cotovelo, foi avaliada aos 6 meses pós-operatórios. A presença de dor bicipital, definida como dor anterior, tipo moinha, cãibra ou dor constante, no trajeto da longa porção do bicípite braquial, foi avaliada por questão dirigida, aos 6 meses pós-operatórios. O grau de satisfação do doente aos 6 meses pós-operatórios foi aferido através da resposta à questão: recomendaria a cirurgia a outra pessoa? Considerou-se que uma resposta positiva seria correspondente a um doente satisfeito, e que uma resposta negativa seria correspondente a um doente insatisfeito com a cirurgia.

Análise estatística

Os três grupos de doentes a comparar foram definidos pelo gesto realizado na longa porção do bicípite braquial (grupo com nenhum gesto na longa porção do bicípite braquial, grupo com tenotomia da longa porção do bicípite braquial, e grupo com tenodese da longa porção do bicípite braquial). A análise estatística foi realizada através de testes para comparação de grupos, com recurso ao software IBM® SPSS® Statistics 19.

Os grupos foram comparados em termos da avaliação inicial das variáveis: idade, sexo, lesão da longa porção do bicípite braquial (diagnóstico artroscópico: sem rotura, rotura parcial, ou rotura completa), classificação artroscópica da rotura da coifa dos rotadores (classificação de Snyder) [8], classificação artroscópica da rotura do subescapular (classificação de Lafosse) [9], classificação artroscópica da lesão do complexo bicípete-labrum (lesão do labrum superior anterior-posterior, SLAP, classificação de Snyder)[10], tipo de trabalho do doente (manual ou intelectual), pedido de indemnização do trabalhador, resultado do SST pré-operatório e do score de CM pré-operatório. Os grupos foram depois comparados em termos do resultado do SST pós-operatório, da melhoria do SST (incremento ou deltaSST), do score de CM pósoperatório, da melhoria do score de CM (incremento ou deltaCM), da presença de dor bicipital, da presença sinal de Popeye, e do grau de satisfação com a cirurgia aos 6 meses pós-operatórios. Foram utilizados testes ANOVA (análise de variância), Kruskal-Wallis, t-Student, qui-quadrado e Fisher’s exact test.

 

RESULTADOS

Participantes e dados descritivos

Os 42 doentes em que se procedeu à reinserção artroscópica do supra-espinhoso foram divididos em três grupos consoante o gesto realizado na longa porção do bicípite braquial: grupo 1: nenhum gesto (8 doentes); grupo 2: tenotomia (12 doentes); grupo 3: tenodese intra-articular com sutura de âncora (22 doentes). No Quadro I apresentam-se os dados demográficos por grupo de tratamento, e no Quadro II apresenta-se a distribuição das lesões por grupo de tratamento. A média dos resultados dos scores de avaliação da função do ombro pré e pós-operatórios está resumida no Quadro III.

Resultados da análise estatística

Não houve diferença estatisticamente significativa entre os 3 grupos quanto às variáveis iniciais: idade, sexo, tipo de profissão, pedido de indemnização do trabalhador, lesão da longa porção do bicípite braquial, rotura do supra-espinhoso (classificação de Snyder), SST e score de CM pré-operatórios (valores de p>0,05 nos testes ANOVA de análise de variância, ver Quadros II e III, bem como nos testes de Kruskal-Wallis, t-Student e Qui-quadrado), ou seja, o gesto sobre a longa porção do bicípite braquial foi independente destas variáveis. Contudo, houve diferenças estatisticamente significativas entre os grupos quanto à lesão do subescapular (classificação de Lafosse), com p=3,5795e-005 (Fisher’s exact test) e à lesão de SLAP (classificação de Snyder) com p= 0,0147, Fisher’s exact test.

Não houve diferença estatisticamente significativa entre os três grupos na melhoria do SST (médias de deltaSST: 5,37 no grupo de nenhum gesto; 5,91 no grupo da tenodese; 6,27 no grupo da tenotomia; p=0,862; teste ANOVA) e na melhoria do score de CM (médias de deltaCM: 35,25 no grupo de nenhum gesto; 39,36 no grupo da tenodese; 37,09 no grupo da tenotomia; p=0,807; teste ANOVA) aos 6 meses pós-operatórios. No grupo da tenotomia houve um doente com sinal de Popeye (9,1%) e uma maior percentagem de doentes com dor referida ao bicípite (18,1%) do que no grupo da tenodese (9,1%), mas esta diferença não foi estatisticamente significativa (p=0,5723, Fisher’s exact test). Não houve diferença estatisticamente significativa (p=0,647, Fisher’s exact  test) no grau de satisfação avaliado pela questão da recomendação da cirurgia a outra pessoa entre o grupo da tenotomia (100% de doentes satisfeitos, 12 dos 12 doentes recomendam cirurgia) e o grupo da tenodese (95,45% de doentes satisfeitos, 21 em 22 doentes recomendam a cirurgia). A satisfação foi menor no grupo com nenhum gesto na longa porção do bicípite braquial (37,5%, intervalo de confiança (IC) de 95%=[8,5%;75,5%]) do que nos grupos da tenotomia e tenodese (97,1%, IC95%=[84,7%;99,9%]), com significado estatístico (p=3.7E-4, Fisher’s exact test).

Uma doente do grupo da tenotomia (1/12) foi excluída no decurso do estudo, da avaliação funcional global do ombro, por ter sido reoperada antes dos 6 meses pós-operatórios, para tratar uma rigidez articular pós-operatória que não respondia ao programa de reabilitação, com consequente interferência ativa nas variáveis objetivas dos scores funcionais. O timing para intervir na rigidez pós-operatória refractária à reabilitação (mínimo de 6 meses de reabilitação) foi antecipado para os três meses e meio pós-operatórios, por suspeita de rerrotura precoce no contexto de uma intercorrência no primeiro dia pós-operatório (início não autorizado de mobilização ativa resistida), sendo difícil, por meios complementares de imagem, fazer o diagnóstico diferencial de rigidez versus falência da reparação nessa fase. Neste caso confirmou-se artroscopicamente a integridade da reparação do supra-espinhoso (procedeu-se à manipulação sob anestesia geral, passando de 90º para 180º de elevação passiva, e à libertação do intervalo dos rotadores com ressecção do ligamento coracoumeral e remoção das linhas de sutura do supra-espinhoso, bem cicatrizado na footprint, por via artroscópica glenoumeral e subacromial). Assim, esta doente não foi excluída da avaliação da dor bicipital (ausente), do sinal de Popeye (ausente) e do grau de satisfação aos 6 meses pós-operatórios (satisfeita), atribuindo-se o quadro de capsulite à intercorrência descrita.

 

DISCUSSÃO

A dependência do gesto realizado sobre a longa porção do bicípite braquial quanto às variáveis iniciais lesão do subescapular e lesão de SLAP decorre dos critérios de decisão utilizados neste estudo para a realização do gesto. O facto de existirem procedimentos adicionais sobre o subescapular tem de ser considerado na interpretação dos resultados deste estudo. Contudo, a natureza da patologia da longa porção do bicípite braquial, que raramente se encontra de forma isolada[11], determina que seja difícil realizar estudos comparativos dos diferentes gestos sobre a longa porção do bicípite[5], sem ser no contexto de outros procedimentos cirúrgicos do ombro, bem como a utilização de um verdadeiro grupo de controlo. Ainda assim, é de sublinhar que houve independência da variável rotura do supra-espinhoso quanto ao gesto na longa porção do bicípite braquial, e que não foram realizados outros procedimentos geralmente incluídos noutros estudos, como a descompressão subacromial (acromioplastia) ou a ressecção clavicular distal[5], e que constituiriam outras variáveis de confundimento.

A análise da função global do ombro através do score CM também foi utilizada no estudo de Boileau[12], que também concluiu não haver diferença no resultado da tenodese versus tenotomia. Contudo o contexto não era o da reparação do supra-espinhoso, mas da tenotomia ou tenodese em roturas irreparáveis do supra-espinhoso.

A frequência de 9,1% do sinal de Popeye na tenotomia neste estudo está perto do limite inferior da frequência de 3 a 70% reportada na literatura[2]. Na realização da tenotomia não se optou pela técnica cirúrgica mais generalizada, em que a secção é feita na zona de ancoragem proximal, deixando a porção distal migrar livremente para a goteira bicipital, tendo-se optado por realizar a secção na goteira umeral, e depois remover o segmento remanescente proximal, numa tentativa de simular o comprimento e tensão da longa porção do bicípite braquial final obtido pela tenodese. Assume-se que se possa dar um encarceramento da longa porção do bicípite tenotomizada na goteira umeral, que possa simular a tenodese e torná-las sobreponíveis, desde que seja seguido um protocolo de reabilitação, com proteção da tenotomia.

Neste estudo optou-se por seguir o mesmo protocolo de reabilitação na tenotomia e na tenodese, numa tentativa de retirar essa variável de confundimento da análise do outcome dos dois procedimentos. É admissível que a técnica cirúrgica de realização da tenotomia possa ter influência nos resultados em termos de frequência do sinal de Popeye e de dor bicipital, mas a sua fundamentação requereria um estudo comparativo entre as duas técnicas de tenotomia referidas. Neste estudo optou-se por não categorizar o grau de deformidade cosmética do braço. Em vez disso, avaliou-se o sinal de Popeye simplesmente como presente ou ausente, para reduzir a carga de subjetividade implícita numa gradação da deformidade. Pela mesma razão, a dor bicipital foi avaliada apenas como presente ou ausente.  Verificou-se que a maior frequência de sinal de Popeye e de dor referida ao bicípite na tenotomia versus tenodese não determinou uma diferença do grau de satisfação dos doentes, o que está de acordo com os resultados obtidos por Duff[5] na sua revisão de 117 doentes submetidos a tenotomia, incluindo doentes jovens trabalhadores manuais ativos, em que, apesar duma frequência de 19% de dor referida ao bicípite, se registou um grau de satisfação de 97% com o procedimento.

A aplicação da tenotomia concomitante à reparação do supra-espinhoso tem sido condicionada pela preocupação com a deformidade cosmética, do sinal de Popeye, e pela dor bicipital nos trabalhadores ativos manuais, mas neste estudo não se encontrou diferença na satisfação dos doentes com tenotomia versus tenodese, mesmo tratando-se de uma população maioritariamente trabalhadora ativa manual, pelo que também não se encontra razão para recomendar a tenodese versus tenotomia com base no argumento clássico do tipo de profissão. Contudo, neste estudo não foi analisada a força de flexão e supinação do cotovelo, geralmente referida na literatura com sendo mais afetada pela tenotomia do que pela tenodese[2]. Para além disso, também foi excluída a variável objetiva de avaliação de força de abdução do score de CM, com o objetivo de reduzir o impacto da idade e da dominância do membro operado na comparação dos resultados, fator que tem de ser tido em conta na interpretação dos resultados.

Quanto ao menor grau de satisfação dos doentes com nenhum gesto na longa porção do bicípite braquial, poderá constituir uma tradução subjetiva da hipotética alteração da excursão da longa porção do bicípite na polia, após a reinserção do supraespinhoso, mas esta alteração não foi objectivável na avaliação dinâmica por via artroscópica glenoumeral dos doentes sem gesto na longa porção do bicípite. Esta menor satisfação pode ser um argumento para associar sempre a tenotomia ou a tenodese à reparação do supra-espinhoso. Contudo, o follow up de 6 meses poderá ser considerado insuficiente para se poder fazer esta recomendação, e ser considerado uma limitação deste estudo. O pouco tempo decorrido após a reparação do supra-espinhoso pode não ser suficiente para que as lesões da longa porção do bicípite revertam, dado que os estudos realizados em modelos animais demonstraram que só 2 meses após a reparação da coifa dos rotadores é que se começou a verificar a melhoria das lesões da longa porção do bicípite[4]. Por outro lado, a hipotética alteração da polia da longa porção do bicípite braquial, que a reinserção do supra-espinhoso poderá determinar, poderá ser independente do tempo decorrido após a reparação, pelo que, se for este o fator condicionante da menor satisfação dos doentes, esta poderá não ser alterada com o aumento de follow-up.

Contudo, podem haver outras variáveis de confundimento, que não foram analisadas neste estudo, e que expliquem as diferenças no grau de satisfação dos doentes verificadas, tal como o facto de os doentes realizarem a reabilitação em centros de fisioterapia diferentes (apesar de serem fornecidas pelo cirurgião indicações específicas para a reabilitação).

 

CONCLUSÕES

O gesto sobre a longa porção do bicípite braquial na reparação da rotura do supra-espinhoso não tem repercussão sobre o resultado funcional global do ombro, e não determina diferenças significativas na frequência de sinal de Popeye ou de dor bicipital aos 6 meses  pós-operatórios.

Não intervir na longa porção do bicípite braquial traduz-se, no entanto, num menor grau de satisfação do doente, quando comparado com a tenotomia ou a tenodese aos 6 meses pós-operatórios, pelo que poderá ser aconselhável realizar sempre a tenotomia ou a tenodese quando se proceder à reparação de uma rotura do supra-espinhoso.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Conflito de interesse:

Nada a declarar.

 

Endereço para correspondência

Clara Azevedo
Serviço de Ortopedia e Traumatologia
Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental,
E.P.E.
Hospital de São Francisco Xavier
Estrada do Forte do Alto do Duque
1495-055 Lisboa
Portugal
claracamposazevedo@gmail.com

 

Data de Aceitação: 2011-10-23

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