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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia
versão impressa ISSN 1646-2122
Rev. Port. Ortop. Traum. vol.22 no.3 Lisboa set. 2014
CASO CLÍNICO
Luxação traumática da anca na criança. Entidade rara a recordar
Georgina MonteiroI; Maria CarvalhoI; Artur AntunesI; Pedro MarquesI; Jorge CoutinhoI; Nuno AlegreteI; Gilberto CostaI
I. Serviço de Ortopedia Infantil do Centro Hospitalar de São João. Portugal.
RESUMO
A luxação traumática da anca na criança é uma lesão rara mas que pode resultar na necrose avascular da cabeça do fémur. Implica um rápido diagnóstico e intervenção sendo que a orientação pós-redução continua a ser tema de debate. É objetivo dos autores rever a orientação mais adequada, a propósito de um caso clínico.
Criança de 6 anos de idade que recorre ao serviço de urgência após queda, da própria altura, por incapacidade da marcha e dor na região coxofemoral esquerda. A radiografia da anca revelou uma luxação posterior da articulação coxofemoral, corroborada pela ressonância magnética. Foi submetida a redução incruenta, sob anestesia geral, tendo ficado 1 semana em tração do membro. Na segunda semana realizou-se imobilização com gesso pélvipodálico que manteve durante 4 semanas. A radiografia de controlo não apresentou alterações tendo recuperado a marcha e função integral da articulação ao fim de 3 meses pós tratamento.
Conclusão: A luxação traumática da anca deve ser tratada com redução incruenta rápida, tração e imobilização gessada num mínimo de 3 semanas com vista ao correto tratamento e evicção de complicações tardias.
Palavras chave: Luxação da anca, traumática, crianças.
ABSTRACT
Traumatic hip dislocation in children is a rare lesion that can result in avascular necrosis of the femur. Implies a rapid diagnosis and intervention and the posterior management remains a subject of debate. The authors intend to review the best treatment after reduction, regarding a clinical case.
A female child of 6 years-old came to the emergency room after a fall, from her height, complaining of gait disability and pain on the left hip joint. The hip radiography revealed a posterior dislocation of the hip join, confirmed by magnetic resonance imaging. She underwent closed reduction under general anesthesia and stayed one week in traction of the member. On the 2nd week immobilization with plaster was carried out and maintained for 4 weeks. The control radiography was normal and all she recovered all functions and integral gait at 3 months after treatment.
Conclusion: traumatic hip dislocation should be treated with closed fast reduction, followed by traction and immobilization for a minimum of three weeks to avoid complications.
Key words: Hip dislocation, traumatic, children.
INTRODUÇÃO
A luxação traumática da anca (LTA) na criança representa uma lesão rara e constitui uma emergência ortopédica.1, 2 Representa cerca de 5% de todas as lesões traumáticas desta articulação, é mais frequente no sexo masculino, raramente é bilateral e ocorre mais frequentemente no sentido posterior (87%).3, 4 Nesta faixa etária pode resultar de trauma de baixa energia devido à plasticidade acetabular e à frouxidão ligamentar, próprias da idade.1
O tratamento consiste na redução incruenta, sob anestesia, que deve ser realizada o mais rápido possível, idealmente nas primeiras 6 horas após o traumatismo, a fim de minimizar complicações, nomeadamente a necrose avascular da cabeça do fémur, cujo risco aumenta com o tempo decorrido até à redução.5, 6 Após este procedimento, o tratamento permanece controverso, nomeadamente quanto ao tempo de tração e imobilização.1, 2, 5 Alguns autores defendem 4-6 semanas em tração ou em gesso pélvipodálico.7 Outros defendem 10-14 dias de repouso no leito sem posterior apoio durante 4-6 semanas.8
As complicações precoces mais frequentes são fraturas (≤40%) com lesão neurológica ou vascular (≤25%) associada. Complicações tardias incluem reluxação, condrólise (6%), necrose avascular (10%) e a artrite degenerativa, secundárias ao atraso na redução, para além da retenção de fragmentos livres no acetábulo (≤25%).5, 6, 9-14 Os fatores relacionados com pior prognóstico incluem a persistência da luxação por mais de seis horas, maturidade esquelética avançada, lesão articular grave e a presença de múltiplos traumas associados.1
Pretende-se com este caso relembrar uma entidade rara, apesar de tudo possível com um traumatismo de baixa energia, ao contrário do que é hábito no adulto, e assim rever as condutas mais adequadas ao tratamento.
CASO CLÍNICO
Os autores apresentam o caso clínico de uma criança do sexo feminino, de 6 anos de idade, que recorreu ao serviço de urgência por queixas de dor da anca e incapacidade de marcha, após queda da própria altura. Ao exame objetivo apresentava deformidade da coxa esquerda em hiperadução e rotação medial, limitação dos movimentos da articulação da anca ipsilateral com dor evidente à manipulação, sem outros sinais ou sintomas de relevo. Ao exame neurológico a sensibilidade estava conservada não tendo sido possível avaliar as capacidades motoras pela deformidade. Os pulsos distais eram palpáveis, amplos e simétricos. A radiografia (Rx) da anca (figura 1) evidenciou luxação posterior da anca. Foi submetida à redução incruenta imediata, sob anestesia geral, cerca de 6 horas após o evento. No pós-operatório permaneceu uma semana com o membro em tração, ao fim da qual foi realizado um gesso pelvipodálico. O Rx e a ressonância magnética (RMN) efetuada após a redução corroboraram a adequada congruência articular, traduzindo o último algum edema dos músculos contíguos, compatível com contusões musculares sem roturas, mantendo-se o labrum acetabular e a cápsula posterior íntegros (figura 2 e 3). No seguimento da evolução o gesso pélvipodálico foi retirado às 4 semanas, pós redução. Aos 3 meses de evolução a paciente era já autónoma na marcha, sem défices ou outras lesões associadas. Um ano após mantém-se assintomática e sem complicações tardias. As radiografias de controlo efetuadas durante o seguimento, não apresentaram alterações.
DISCUSSÃO
A literatura corrobora a raridade das LTA, bem como a falta de consenso quanto ao tratamento, dada a sua baixa incidência.1-8 Alguns autores relatam que para crianças mais pequenas (5-10 anos) não são necessário traumatismos de alta energia para a ocorrência da luxação da anca, tendo a exemplo disso a queda da própria altura, no caso da nossa paciente. No entanto, já em crianças mais velhas/adolescentes é necessário um impacto importante (queda de grande altura, acidentes de viação) para a ocorrência do evento.8 Alguns estudos revelam uma distribuição da incidência relativamente uniforme em todas as idades, enquanto outros, uma incidência maior entre os 5 e os 10 anos, concordante com o caso descrito.3 O género, neste caso, é contrário à tendência do sexo masculino.3, 9 A luxação posterior ocorrida na nossa paciente é descrita também na literatura como a mais frequente, tanto nas crianças como nos adultos. A ocorrência de luxações anteriores ronda os 5 a 10 %.5, 9 Foi cumprido o intervalo de tempo recomendado até redução incruenta (cerca de 6 horas) o que constituiu fator de bom prognóstico, consubstanciando a evolução favorável descrita.
Constituindo uma emergência ortopédica existe consenso quanto à necessidade de redução imediata, preferencialmente fechada e sob anestesia geral ou com relaxantes, utilizando as mesmas manobras de redução dos adultos (Stimson, Allis e Bigelow).15 Se a anestesia geral não for viável admite-se a redução sobre sedação intravenosa. A tração deve ser aplicada de forma constante de maneira a evitar espasmos musculares, retrações elásticas ou até mesmo fraturas do colo femoral.16 Após redução, deve-se avaliar a congruência articular, comparando o espaço articular, a lateralização da cabeça e a quebra na linha de Shenton com o lado contralateral. A tomografia computadorizada (TC) e a RMN permitem a deteção de fragmentos ou tecido interposto que uma vez confirmados implicam uma segunda tentativa de redução ou redução aberta por abordagem posterior. As indicações para redução aberta são o fracasso na redução fechada, lesão do nervo ciático, com indicação de exploração e fratura acetabular do colo ou da cabeça femoral que exijam tratamento cirúrgico.15 O tratamento posterior permanece controverso, independentemente das lesões ocorridas, nomeadamente quanto ao tempo de tração e imobilização.1, 2, 5 Alguns autores defendem 4 a 6 semanas em tração ou com gesso pélvipodálico.7,15 enquanto outros defendem 10-14 dias de repouso no leito sem posterior apoio durante 4-6 semanas.8 Blaster et al.17 propõem repouso até melhoria da dor, seguido de retorno à marcha. Canale18 e Hebert et al.19 utilizam tração cutânea durante uma semana, seguido de ausência de apoio por 4 a 6 semanas. A ausência de complicações, tanto precoces como tardias, na nossa doente demonstrou ser suficiente uma semana com o membro em tração e imobilização com gesso pelvipodálico durante 4 semanas. Esta atitude terapêutica traduz uma decisão ponderada entre as diversas abordagens supracitadas na literatura, tendo-se revelado eficaz.
CONCLUSÃO
O enfâse do caso prende-se com a sua raridade e necessidade de intervenção emergente. À exceção do género o caso retratado segue a tendência da literatura. Existe pouca concordância nas atitudes terapêuticas pós-redução incruenta mas, de uma maneira geral, a evolução é favorável, sendo o tempo até à redução incruenta o fator chave e determinante do prognóstico.
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Conflito de interesse:
Nada a declarar.
Georgina Monteiro
Serviço de Pediatria
Centro Hospitalar Tondela-Viseu, E.P.E
Av. Rei D. Duarte
3504-509 Viseu
Portugal
ginabmb@hotmail.com
Data de Submissão: 2014-07-17
Data de Revisão: 2014-09-03
Data de Aceitação: 2014-10-15