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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia

versão impressa ISSN 1646-2122

Rev. Port. Ortop. Traum. vol.22 no.4 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Deformidade em supinação na paralisia obstétrica do plexo braquial - Resultados do procedimento de Zancolli

 

Vânia OliveiraI, II; Nuno GomesI, II; Luís CostaI, II; Alexandre PereiraI, II; Miguel TrigueirosI, II; César SilvaI, II

I. Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. Universidade do Porto. Portugal.
II. Serviço de Ortopedia e Traumatologia. Centro Hospitalar do Porto. Hospital de Santo António. Porto. Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO

Objetivo: a deformidade em supinação por paralisia obstétrica do plexo braquial (POPB) é atualmente rara e resulta de um desequilíbrio muscular entre pronadores e supinadores. A deformidade é progressiva e disfuncional e, quando a redução passiva é possível, o redireccionamento lateral do tendão distal do bíceps está indicado. Na deformidade fixa do antebraço a membrana interóssea deve ser libertada. Este estudo avalia os resultados do procedimento de Zancolli em doentes com POPB.
Doentes e métodos: seis doentes com POPB foram submetidos ao procedimento de Zancolli associado à libertação da membrana interóssea e imobilização pós-operatória por 4 semanas. A idade média foi de 4 anos, com 3.3 anos de seguimento.
Resultados: a pronação ativa melhorou em média 70° (50°-90°). Clinicamente, verifica-se melhoria funcional global do membro superior. A única recidiva foi erradamente indicada para o procedimento por insuficiência do bíceps. Comparativamente com estudos prévios com a mesma técnica, a idade de intervenção é baixa e o ganho de pronação ativa elevado. Relativamente a outras técnicas cirúrgicas, a recidiva é menor e não se registam complicações major. Os pais estão satisfeitos.
Conclusão: o procedimento de Zancolli pode prevenir deformidade óssea ou luxação da cabeça radial, por isso, em fase precoce esta técnica associa-se a melhores resultados funcionais do que procedimentos cirúrgicos em fase mais avançada. A limitação funcional e deformidade estética da contractura em supinação na POPB são importantes e a técnica de Zancolli apresenta bons resultados.

Palavras chave: Paralisia obstétrica do plexo braquial, procedimento de Zancolli, redireccionamento do bíceps, supinação, pronação.

 

ABSTRACT

Aim: a supination contracture due to obstetric brachial plexus palsy (OBPP) is rare nowadays and results from muscular imbalance between pronator and supinator muscles. It is a progressive and disabling deformity and when passive reduction is possible, lateral rerouting of the distal biceps is indicated. If there is a ?xed loss of forearm rotation, the interosseous membrane should be released. This study evaluates the Zancolli technique outcome in patients with OBPP supination deformity.
Patients and methods: six patients underwent the Zancolli procedure in addition to a release of the interosseous membrane. Postoperative immobilization lasted 4 weeks.  The mean age was 4 years old and the mean follow-up was 3.3 years.
Results: the mean active pronation improvement was 70 degrees (range 50°-90°). Clinically, there is overall functional improvement of the upper limb. The only recurrence was wrongly indicated to this procedure due to failure of the biceps. Compared to previous studies using the same technique, the age of intervention is low and the active pronation improvement is high. Relatively to other surgical techniques, it presents a low recurrence rate without major complications. The parents are satisfied.
Conclusion: biceps rerouting may prevent bone deformity and radial head dislocation. It is therefore associated with better functional results than later surgery procedures. Functional limitation and aesthetic deformity of a supination contracture with OBPP should not be underestimated and the Zancolli procedure presents a good outcome.

Key words: Obstetric brachial plexus palsy, Zancolli procedure, biceps rerouting, supination, pronation.

 

INTRODUÇÃO

A deformidade em supinação do antebraço pode ter como etiologia a paralisia obstétrica do plexo braquial (POPB), a poliomielite ou a tetraplegia traumática1-10.  Resulta de um desequilíbrio muscular entre agonistas e antagonistas com paralisia dos pronadores, o que condiciona limitação funcional e deformidade estética importantes4,10-12. No caso da POPB, torna-se evidente aquando da maturação neurológica.7,12 Smith et al.7 e Yam et al.12 verificaram que antes dessa fase a incompetência dos supinadores e a rotação interna fixa do ombro levam a uma postura em pronação do antebraço.

Hoje em dia, a incidência da POPB é reduzida (0.4-2.6/1000 nados)4 e só alguns desenvolvem a deformidade em supinação (grupos de Narakas II-IV)12, no entanto, o impacto da disfunção e estética não devem ser subvalorizados do ponto de visto socioeconómico.

Clinicamente, estas crianças apresentam diversas deformidades associadas no membro superior: subluxação posterior do ombro, rigidez em flexão do cotovelo, extensão e desvio em flexão cubital do punho, défice de extensão dos dedos e deformidade típica da mão de pedinte1,2,9-12. Com o crescimento, a criança desenvolve disfunção progressiva até à deformidade fixa devido à severa retração da membrana interóssea e abaulamento dos ossos do antebraço. Isto pode condicionar subluxação da articulação radiocubital distal ou luxação da cabeça radial, causadas pelo desequilíbrio muscular e tração antero-proximal do bíceps.1,12

Seringe e Dubousset5 descreveram 3 estadios progressivos: primeiro deformidade redutível, segundo contractura dos tecidos moles, e terceiro deformidade óssea. A correção cirúrgica deve ser precoce, idealmente no primeiro estadio.

O tratamento cirúrgico da deformidade em supinação da POPB pode abranger diferentes procedimentos como transferências tendinosas ou correção do eixo de rotação com osteotomias desrotatórias.1-10,12-14

Em 1940, Blount18 descreveu a osteoclasia do rádio e cúbito para crianças menores de 3 anos de idade e com boa mobilidade passiva1,2. Zaoussis14 em 1963 analisou os resultados da osteotomia desrotatória do rádio e, posteriormente, as opções de tratamento incluem o redireccionamento tendinoso lateral do bíceps ou a osteotomia do rádio, em associação ou não à libertação da membrana interóssea, e adicionalmente capsuloplastia da articulação radiocubital proximal e/ou ressecção da tacícula radial, se indicado. Atualmente é consensual que em casos com rigidez por perda completa de rotação do antebraço deve ser realizada a libertação da membrana interóssea.16

O procedimento de redireccionamento do tendão do bíceps foi descrito por Grilli15 em 1959 e modificado por Zancolli3 em 1967 associando a libertação da membrana interóssea. Esta técnica cirúrgica visa restaurar a função e corrigir a deformidade. De facto, Zancolli3 destacou algumas vantagens deste procedimento em relação à osteotomia radial clássica ou osteoclasia de ambos os ossos do antebraço: recidiva da deformidade e prevenção da luxação do rádio proximal durante o período de crescimento; restaurar a pronação ativa o que tem impacto na melhoria global da função da mão; permitir simultaneamente corrigir a luxação da articulação radiocubital ou ressecar a tacícula radial se indicado; e permitir um relacionamento mais anatómico do rádio e cúbito, de forma a desenvolver um antebraço esteticamente normal. O procedimento de Zancolli está contraindicado no caso de paralisia do tricípite, correndo o risco de desenvolver contractura em flexão do cotovelo. Também não é praticável quando a cabeça do rádio foi previamente removida.

Em 1980 Manske et al.17 descreveram o redireccionamento do bicípite associado a osteoclasia percutânea. O redireccionamento do tendão do braquiorradial associado à libertação da membrana interóssea é uma técnica alternativa de transferência tendinosa para obter pronação ativa do antebraço sem comprometer a função do cotovelo defendida por Ozkan et al.10. Contrariamente à técnica de Zancolli, esta pode ser realizada quando existe paralisia do tricípite e em doentes com ressecção prévia da tacícula radial mas requer que a articulação radiocubital proximal e distal sejam estáveis e congruentes.10

Atualmente, verifica-se controvérsia na literatura no tratamento destes doentes com POPB e deformidade em supinação. Existem escassos estudos sobre o assunto (Tabela 1) e os resultados do tratamento cirúrgico destes doentes apresentam melhoria inconsistente da pronação ativa (22º-88.5º). Verifica-se que os procedimentos ósseos corrigem a deformidade mas não ganham movimento ativo.

 

Tabela 1

 

O objetivo deste estudo foi avaliar a experiência do Serviço com o procedimento de Zancolli no tratamento da deformidade em supinação em doentes com POPB, rever a literatura e contribuir para a homogeneidade dos resultados desta técnica cirúrgica.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Foram avaliadas retrospectivamente 6 crianças com deformidade em supinação por POPB, submetidas a tratamento cirúrgico entre 2005 e 2011, pelo mesmo cirurgião (C.S.). Pré-operatoriamente verificou-se disfunção para atividades de vida diária como atingir a boca com a mão, comer, beber, cuidados de higiene, pentear ou vestir, e deformidade estética com mão de pedinte, consequente impacto social e ansiedade parental.

Todos os 6 doentes apresentavam rigidez do antebraço com perda completa da pronação ativa. A supinação média pré-operatória era 110°. O arco de mobilidade passiva variou entre 0º-110º (Tabela 2).

 

Tabela 2

 

As crianças apresentavam deformidades secundárias várias: um caso com fraca função do bicípite; um caso de insuficiência funcional severa da mão com reduzida capacidade de flexão;; um cotovelo rígido; e 2 doentes com desequilíbrio dos flexores/extensores do punho.

A cirurgia teve como objetivo corrigir a deformidade em supinação, melhorar a função global e proporcionar a satisfação estética. Foi realizada em média aos 4.5 anos (variação 3.5-6), sem deformidade óssea ou luxação/subluxação da cabeça radial.

A deformidade em supinação foi unilateral em todos os doentes. A média de seguimento foi de 3.3 anos (1-6). Quatro doentes haviam sido previamente submetidos a reconstrução do plexo braquial com enxerto de nervo sural, pelo mesmo cirurgião. Duas das crianças contavam com outras correções cirúrgicas prévias como transferências tendinosas do grande dorsal e redondo maior para o manguito rotador.

Técnica Cirúrgica

Em todos os doentes associou-se ao procedimento de Zancolli a libertação da membrana interóssea (Figura 1). O músculo bicípite tornou-se pronador ativo após tenotomia tipo-Z com tensionamento controlado adequado que permitiu o redireccionamento do segmento distal de medial para lateral em torno da cabeça radial e preservação da inserção óssea.

 

 

Todas as crianças ficaram com imobilização gessada em pronação por 4 semanas. A reabilitação pós-operatória consistiu na pronação-supinação gradual ativa e reforço muscular.

Foram analisados os seguintes parâmetros: pronação e supinação ativa e passiva, e registo de complicações. O grau de satisfação foi aferido através de questionário aos pais sendo definido como “excelente”, “muito bom” e “razoável”.

 

RESULTADOS

O arco de mobilidade passivo e ativo de pronação-supinação de todos os doentes está registado na Tabela 2. A correção cirúrgica obteve o ganho de pronação ativa em média de 70 graus.

Não foram registadas complicações. A melhoria da pronação manteve-se no período de seguimento excepto em 1 caso com perda de amplitude seguida de recidiva aos 6 anos após. Todas as crianças excepto 1 estão funcionalmente bem na última avaliação apresentando antebraço com postura funcional, arco de pronação-supinação ativo preservado, flexão para atingir a boca, força de flexão do cotovelo preservada, e uso apropriado da mão em atividades bimanuais.

A criança com recidiva foi submetida a osteotomia de ambos os ossos do antebraço.

O resultado estético (Figuras 2 e 3) foi avaliado clinicamente como postura funcional e correção da mão de pedinte, capacidade de levar a mão à boca e realizar pronação ativa. Os pais reportam que as crianças se tornaram mais interativas socialmente, com ganho de autoconfiança e, também por isso, estão satisfeitos (4 “excelente”, 1 “bom” e 1 “razoável”) e 100% decidiriam pelo tratamento cirúrgico outra vez.

 

 

 

 

DISCUSSÃO

Intervir precocemente evita a progressão até rigidez e desenvolvimento de deformidades secundárias como óssea ou subluxação da cabeça radial.

Neste estudo, a deformidade em supinação foi corrigida com sucesso em todos os doentes após o procedimento de Zancolli apesar de não ter sido alcançado um arco de mobilidade pronação-supinação completamente normal em todas as crianças. O ganho médio significativo de pronação ativa pós-operatória de 70° resulta da intervenção precoce comparativamente com a literatura (Tabela 1), e do curto período de imobilização que permite movimentos passivos precocemente após a cirurgia. Apesar de na literatura não estar definido qual o período óptimo de imobilização pós-operatória, as 4 semanas foram definidas pelos autores para minimizar o comprometimento da reabilitação funcional ao permitir mobilidade passiva controlada precoce.9,10,12-14

Consideramos que a reconstrução prévia do plexo braquial com enxerto de nervo sural entre os 4 e 6 meses de idade em 4 doentes também contribuiu para os resultados alcançados.

Paralelamente, a recuperação do antebraço funcional permite a melhoria significativa na função da mão com impacto na qualidade de vida.3,12

É fundamental assegurar uma tensão do bíceps adequada durante o procedimento de Zancolli de forma a permitir a extensão completa do cotovelo, por um lado, e não perder potência flexora, por outro.3

É consensual defender-se a correção prévia da deformidade do ombro7. Já a contractura em flexão do cotovelo ligeira ou moderada não contraindica o tratamento cirúrgico do antebraço nestes doentes.9

Atualmente, verifica-se uma baixa incidência da POPB e com resultados dos escassos estudos são inconsistentes (Tabela 1) pelo que não se verifica uniformidade nem consenso no tratamento.

Seringue e Dubousset5 recomendam o redireccionamento do tendão do bíceps quando pré-operatoriamente for possível obter a correção passiva da pronação ou nos casos em que tal é possível após a libertação per-operatória da membrana interóssea. Também consideram que a deformidade óssea discreta não contraindica o procedimento desde que exista pronação passiva. Nos casos em que a deformidade óssea é marcada, com luxação anterior da tacícula radial e supinação fixa do antebraço, ambos defendem associar o redireccionamento do tendão do bíceps à libertação da membrana interóssea e combinar com osteotomia radial.

Bahm e Gilbert1 publicaram um revisão com 40 casos a comparar osteoclasia, osteotomia radial e redireccionamento do tendão do bíceps. Verificaram que após o procedimento de Zancolli na idade média de 7 anos nenhuma criança desenvolveu deformidade óssea ou luxação proximal do rádio e registaram um ganho de pronação ativa comparativamente menor que o presente estudo, de 22°, que se pode relacionar com a idade superior e fase mais avançada.

Relativamente à melhoria da pronação ativa, neste estudo é elevada quando comparada com a mesma técnica na literatura (Tabela 1). Em relação à osteotomia do rádio, pode-se verificar que Allende e Gilbert9 e Yam et al.12 apresentam pronação ativa superior mas associada a elevada taxa de recidiva. Em análise comparativa com outros procedimentos dos tecidos moles como transferência tendinosa do braquial para o pronador quadrado segundo Bertelli13, com o objetivo de melhorar a pronação e minimizar a perda de supinação, ou redireccionamento do tendão do braquiorradial preconizado por Ozkan et al.10, o ganho de pronação ativa com a técnica de Zancolli no presente estudo é similar ou superior, com nenhuma ou mínima perda de supinação, excepto no único caso de recidiva. Neste caso, o doente apresentava POPB severa e provavelmente foi erradamente indicado para o procedimento cirúrgico de Zancolli. A criança apresentava um bíceps insuficiente e, por isso, inadequado para suportar um redireccionamento tendinoso pelo que consideramos que não deveria ter sido submetida a esta técnica cirúrgica.

Em todas as crianças operadas, a função do membro superior melhorou significativamente após o procedimento de Zancolli. Além disso, não se verificou deformidade óssea ou luxação da cabeça radial. A única recidiva que ocorreu apresentou franca melhoria após a osteotomia realizada.

Clinicamente, os bons resultados descritos atingem o objetivo do tratamento e não se verificou nenhum caso com flexão rígida do cotovelo.

Este estudo apresenta limitações: o caráter retrospectivo que inviabiliza a avaliação pré-operatória com scores funcionais, a reduzida amostra e a avaliação da satisfação através dos pais dos doentes.

 

CONCLUSÃO

O procedimento de Zancolli é tecnicamente exigente e o resultado expectável é superior nos casos bem seleccionados.

O sucesso do tratamento destes doentes tem um impacto socioeconómico que não deve ser subestimado.

A POPB é rara pelo que a deformidade em supinação associada não é frequente mas a disfunção grave e deformidade estética são importantes. A detecção precoce é fundamental para permitir o tratamento adequado na fase inicial. O procedimento de Zancolli apresenta bons resultados funcionais e estéticos, com satisfação dos pais.

 

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Conflito de interesse:

Nada a declarar.

 

Endereço para correspondência

Vânia Oliveira
Centro Hospitalar do Porto
Hospital Santo António
Largo Prof. Abel Salazar
4099-001 Porto
Portugal
vaniacoliveira@gmail.com

 

Data de Submissão: 2014-07-16

Data de Revisão: 2014-09-30

Data de Aceitação: 2014-10-21

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