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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia
versão impressa ISSN 1646-2122
Rev. Port. Ortop. Traum. vol.23 no.2 Lisboa jun. 2015
CASO CLÍNICO
Migração medial do parafuso cefálico de cavilha cefalo-medular Gamma3: Uma complicação rara e potencialmente fatal
João RaposoI; António RebeloI; Renato SoaresI; Luís TavaresI
I. Hospital do Divino Espírito Santo. Ponta Delgada. Ponta Delgada.
RESUMO
Introdução: as fracturas proximais do fémur são uma causa comum de morbi-mortalidade nos idosos. O tratamento é habitualmente cirúrgico, com utilização de cavilha cefalo-medular tipo PFN ou Gamma nas fracturas com comportamento instável. Uma das complicações mais frequentes de falência das cavilhas cefalomedulares é o cut-out do parafuso cefálico. A migração medial do parafuso cefálico nas cavilhas tipo Gamma é uma complicação excepcionalmente rara (apenas 8 casos descritos na literatura), e que pode, em último caso, cursar com penetração intra-pélvica e lesão de vísceras potencialmente fatal. Será descrito um caso neste trabalho.
Material e métodos: descrição de caso clínico e revisão da literatura
Caso clínico: doente do sexo feminino, 77 anos, com traumatismo da anca esquerdado qual resultou fractura pertrocantérica AO 31-A2.2. Foi submetida a redução fechada em mesa de tracção e osteossíntese com cavilha cefalo-medular Gamma3 130º, sem intercorrências. Cerca de 1 mês após a intervenção observou-se migração do parafuso cefálico para o acetábulo e perda de redução da fractura. Foi submetida a uma revisão da osteossíntese com extracção da cavilha e re-osteossíntese com placa e parafuso deslizante (DHS) e placa de apoio ao grande trocânter.
Aos 6 meses de pós-operatório observou-se cut-out do parafuso cefálico. Foi submetida a extracção de material de osteossíntese e artroplastia total da anca cimentada por via posterior, sem intercorrências. Actualmente a doente apresenta-se sem queixas.
Discussão: a migração medial do parafuso cefálico define uma entidade que deve ser claramente distinguida da migração antero-superior relacionada com a redução inadequada (em varo) do colo ou posicionamento do parafuso cefálico numa região mais frágil do colo femoral - cut out.
Devemos ter atenção à redução da fractura, fundamental à eficácia da osteossíntese de uma fractura intertrocantérica instáveljá que a própria qualidade do osso dificulta a estabilidade pós-fixação. O caso que relatamos neste artigo é uma complicação muito mais rara. Várias hipóteses foram descritas na literatura como causa para esta complicação, não se sabendo, porém, qual a sua etiologia exacta. No caso descrito neste artigo, todos os passos da técnica cirúrgica foram correctamente cumpridos, o internamento e pós-operatório decorreram sem intercorrências, a redução e osteossíntese foram adequadas, pelo que desconhecemos a causa da migração do parafuso.
Conclusão. a osteossíntese com cavilha cefalo-medular é uma opção válida e comum no tratamento das fracturas intertrocantéricas nos idosos. A perda de redução em varo e o cut-out apresentam-se como complicações mais frequentes, e devem ser tidas em conta durante o acto cirúrgico, devendo proceder-se sempre a uma redução adequada e colocação do parafuso cefálico numa posição biomecanicamente favorável. O cut-through encontra-se relatado em cavilhas tipo Gamma, pelo que o cirurgião deve ter sempre uma atitude vigilante no pós-operatório destes doentes.
Palavras chave: Osteoporose, fractura intertrocantérica, migração medial parafuso cefálico, cavilha cefalo-medular.
ABSTRACT
Introduction: proximal femoral fractures are a common cause of morbidity and mortality in the elderly. They usually require surgical treatment, with indication for a PFN or Gamma-like nail in the unstable fractures. One of the most common complications after this procedure is a superior cut-out of the cephalic screw. A medial migration of the referred screw is an exceptionally rare complication (only 8 cases described in the literature) and it can occur with pelvic penetration, with potential organ lesion and death. We will describe one case in this paper.
Material and methodos: clinical case and literature revision.
Clinical case: we describe a case of a 77-year old female, who suffered a left hip trauma, with an intertrochanteric AO 31-A2.2 fracture. We did a closed reduction in traction table and a fixation with a 130º Gamma3 nail. One month after the surgery, we observed a medial migration of the cephalic screw, with acetabular penetration and loss of reduction. She underwent a second procedure, with extraction of the nail, reduction and fixation with a plate-and-screw implant (DHS) and a trochanteric plate. After 6 months, she had a cut-out of the neck screw. We did a third procedure - extraction of the osteosynthesis material and a cemented total hip arthroplasty.
The patient is currently with a good function of the operated hip, without pain.
Discussion: the medial migration of the cephalic screw must be clearly distinguished from the cut-out (antero-superior), usually a consequence of an inadequate fracture reduction (in varus) of inadequate positioning of the cephalic screw. A precise fracture reduction is extremely important in an unstable intertrochanteric fracture, especially because poor bone quality interferes negatively in the surgical stabilization. The clinical case reported in this paper is a very rare complication, with an unknown etiology. In this case, all the surgical steps were done correctly, the post-op and follow-up were done without any major incident, both the fracture reduction and fixation were done adequately, so we dont know why the medial migration happened.
Conclusion: cephalomedullary nail fixation is a valid and common option in the treatment of intertochanteric fractures in the elderly population. The varus loss of reduction and cephalic screw cut-out are among the most common complications, and the surgeon must think about them when reducing the fracture and placing the femoral head screw, aiming for a biomechanically favorable location on the femoral neck. Despite very rare, the screw cut through is also described in the Gamma-like nails, and the surgeon must always have it in mind, because of its potencial fatality outcome.
Key words: Osteoporosis, interthrocanteric fracture, medial migration cephalic screw, cephalomedullary nail.
INTRODUÇÃO
As fracturas da extremidade proximal do fémur são uma causa comum de morbi-mortalidade nos idosos, especialmente na população acima dos 65 anos, e mais comum no sexo feminino. Trata-se de uma patologia com incidência crescente, intimamente ligada ao envelhecimento progressivo da população e aumento da esperança média de vida1. O tratamento é habitualmente cirúrgico, relegando-se o tratamento conservador para situações pontuais em que o doente não tenha condições anestésicas; o objectivo é o levante o mais precocemente possível, para evicção de complicações relacionadas com o decúbito prolongado. As fracturas intertrocantéricas são lesões extra-capsulares, localizando-se na zona entre o grande e o pequeno trocânter. Tratando-se de uma área anatómica muito vascularizada, o tratamento passa mais comummente pela osteossíntese com implante intra ou extra-medular. No primeiro caso, temos a opção da placa e parafuso deslizante, mais indicado nas fracturas com comportamento estável (tipo DHS®); no caso do implante intra-medular, temos a cavilha cefalo-medular, passível de ser utilizada nas fracturas estáveis, mas com indicação mais evidente nas instáveis - com obliquidade reversa ou atingimento da cortical postero-medial (tipo PFN/Gamma®)2. Uma das complicações mais frequentes de falência das cavilhas cefalomedulares no tratamento das fracturas proximais do fémur no idoso é o cut out do parafuso cefálico, relatado na literatura com uma incidência de 3-10%, e relacionado com uma inadequada redução (em varo), osteoporose severa ou mau posicionamento do parafuso cefálico no colo do fémur3. A migração medial do parafuso cefálico nas cavilhas tipo Gamma é uma complicação excepcionalmente rara (apenas 8 casos descritos na literatura), e que pode, em último caso, cursar com penetração intrapélvica e lesão de vísceras potencialmente fatal. A cominução do córtex póstero-medial com desvio em varo da cabeça femoral, o efeito em Z e o cut-through são fenómenos descritos como estando associados ao fenómeno supra-mencionado. Encontram-se descritos apenas 8 casos na literatura4. Será descrito um caso neste trabalho.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, 77 anos, vítima de queda da própria altura em contexto de episódio sincopal, com traumatismo da anca esquerda. Recorreu ao Serviço de Urgência a 12/9/2010 por coxalgia intensa e impotência funcional para a marcha, sem alterações neurovasculares no membro. Identificou-se no Rx uma fractura pertrocantérica AO 31- A2.2 (Figura 1). Foi submetida no dia 15/9/2010 a redução fechada em mesa de tracção e osteossíntese com cavilha cefalo-medular Gamma3 130º, sem intercorrências intra-operatórias, com controlo da redução com intensificador de imagem intra e pós-operatório e cumprimento correcto de todos os passos na técnica cirúrtica (Figura 2).
Teve alta clinicamente bem ao fim de 5 dias, em descarga do membro.
No dia 13/10/2010 recorre novamente ao SU por dor incapacitante e sensação de choque na anca operada, de instalação rápida e progressiva, sem história traumática ou aplicação de carga indevida no membro operado. No Rx observa-se migração medial do parafuso cefálico (para o acetábulo) e perda de redução da fractura (Figura 3). A 16/10/2010 foi submetida a uma revisão da osteossíntese com extracção da cavilha e re-osteossíntese com placa e parafuso deslizante (DHS) e placa de apoio ao grande trocânter. Novamente sem intercorrências no pós-operatório, com alta clinicamente bem ao 4º dia pós-operatório (Figura 4). Aos 6 meses de pós-operatório (Abril 2011), doente começa a referir dor mecânica na anca operada, agravada com marcha e abdução da anca. Radiologicamente observou-se imagem compatível com cut out do parafuso cefálico (Figura 5). Foi proposta nova cirurgia, que a doente recusou, tendo-se mantido em vigilância. Cerca de 2 anos e meio após esta cirurgia (20/12/2012), doente recorre à consulta externa, apresentando-se com limitação funcional muito significativa e queixas álgicas importantes nas suas actividades de vida diárias, e manifesta desejo de ser operada, verificando-se no Rx um cut out do parafuso e coxartrose (Figura 6). Foi submetida em 19/2/2013 a extracção de material de osteossíntese e artroplastia total da anca cimentada por via posterior, sem intercorrências (Figura 7).
Actualmente a doente apresenta-se sem queixas e muito satisfeita com a intervenção cirúrgica, sem limitações nas suas actividades de vida diárias.
DISCUSSÃO
Neste artigo pretende-se alertar para uma complicação da osteossíntese das fracturas proximais do fémur com cavilha cefalo-medular que, embora incomum, apresenta um elevado risco de morbi-mortalidade.
A migração medial do parafuso cefálico define uma entidade que deve ser claramente distinguida da migração antero-superior relacionada com a redução inadequada (em varo) do colo ou posicionamento do parafuso cefálico numa região mais frágil do colo femoral - cut out5. Para prevenir complicações na abordagem destas fracturas, devemos ter em atenção relativamente à precisão da redução, fundamental à eficácia da osteossíntese de uma fractura intertrocantérica instável, a própria qualidade do osso dificulta a estabilidade pós-fixação, já que nos deparamos com problemas possíveis ao nível da perda de redução por varização ou a própria rotação da cabeça femoral, nas fracturas com componente basicervical. Assim, foram idealizados implantes com 2 parafusos proximais, em que um teria a função de compressão e transmissão de forças, e o segundo apenas um papel anti-rotatório (PFN, Synthes, Trochanteric Antegrade Nail, Smith & Nephew). Contudo, os resultados a longo prazo não demonstraram ser superiores às cavilhas clássicas tipo Gamma. Além disto, verificou-se nestes produtos uma complicação não conhecida até então: a migração medial do parafuso cefálico (lag screw) - o cut through , acompanhada simultaneamente de migração lateral do parafuso anti-rotatório - o chamado Efeito em Z (Figura 8)6. Pensa-se que seja devido à associação das forças de compressão do parafuso cefálico e forças deformantes em varo transmitidas pela própria anca - mecanismo tipo alavanca. Foi observado em cerca de 5% dos casos na revisão de Werner-Tutschku et al7 de 70 fracturas tratadas com implante tipo PFN. Por outro lado, procedeu-se a uma alteração do desenho do parafuso cefálico, alterando-o para um dispositivo tipo lâmina, colocado por impactação directa e não pela técnica clássica de ‘broca e parafuso’.
Com isto, pretendeu-se utilizar um princípio teórico de aumentar a estabilidade do parafuso no colo aumentando a superfície de contacto ossoparafuso, e o próprio método de introdução faria uma impactação do osso trabecular, melhorando a sua qualidade em redor da lâmina (PFNA).
Contudo, existem também na literatura já alguns casos descritos de cut-through na osteossíntese com este implante (Figura 9), mas que se pensa estar relacionado com a própria característica técnica - a lâmina não desliza lateralmente na cavilha aquando da impactação do colo femoral durante o início da carga, perfurando a cabeça7.
Finalmente, o caso que relatamos neste artigo é uma complicação muito mais rara, já que se verifica numa cavilha Gamma, que não é propícia ao efeito em Z nem ao efeito de cut-through descrito para a lâmina. Apenas 8 casos se encontram descritos na literatura (Tabela 1). Várias hipóteses foram descritas na literatura como causa para esta complicação: dano iatrogénico na cabeça femoral na rimagem com a broca para posterior colocação do parafuso, colocação do parafuso em posição inadequada no colo, introdução exagerada do parafuso, carga precoce, sujeição do implante a forças torsionais exageradas, trauma directo, defeito no interface parafuso-cavilha, má colocação do parafuso de bloqueio na extremidade proximal da cavilha ou escolha de parafuso cefálico demasiado curto (distância ponta-ápex aumentada, com montagem menos estável) ou demasiado longo8-10.
Contudo, por se tratar de uma complicação rara, não se sabe qual a sua etiologia exacta. No caso descrito neste artigo, todos os passos da técnica cirúrgica foram correctamente cumpridos, o internamento e pós-operatório decorreram sem intercorrências, a redução e osteossíntese foram adequadas, pelo que desconhecemos a causa da migração do parafuso.
CONCLUSÃO
A osteossíntese com cavilha cefalo-medular é uma opção válida e comum no tratamento das fracturas intertrocantéricas nos idosos. A perda de redução em varo e o cut-out apresentam-se como complicações mais frequentes, e devem ser tidas em conta durante o acto cirúrgico, devendo proceder-se sempre a uma redução adequada e colocação do parafuso cefálico numa posição biomecanicamente favorável (central no perfil e central/caudal em antero-posterior). O efeito em Z e o cut-through estavam descritos em cavilhas tipo PFN e PFNA, mas agora encontram-se também relatados em cavilhas tipo Gamma, pelo que o cirurgião deve ter sempre uma atitude vigilante no pós-operatório destes doentes, e ter em mente esta complicação, que obriga a uma cirurgia de revisão da osteossíntese, com todos os riscos associados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Conflito de interesse:
Nada a declarar
João Raposo
Serviço de Ortopedia
Hospital do Divino Espírito Santo
Avenida D. Manuel I, Matriz
9500 ? 370 Ponta Delgada
São Miguel ? Açores
raposo.jp@gmail.com
Data de Submissão: 2015-07-19
Data de Revisão: 2014-09-30
Data de Aceitação: 2015-10-20