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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia

versão impressa ISSN 1646-2122

Rev. Port. Ortop. Traum. vol.23 no.2 Lisboa jun. 2015

 

CASO CLÍNICO

 

Infiltração peritendinosa de corticóides no tratamento da dor retrocalcaneana crónica: a propósito de um caso clínico

 

Ana A. C. PinheiroI; Cristina M. V. SousaI; Miguel A. B. C. LealI; Carolina F. OliveiraI; Bruno P. F. SilvaI; Margarida AreiasI

I. Unidade Local de Saúde do Alto Minho, Viana do Castelo. Viana do Castelo.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO

Embora a ruptura do tendão de Aquiles seja relativamente comum, a ruptura bilateral não traumática é menos comum, constituindo 0,002% dos casos descritos na literatura.

Estão descritos diversos factores intrínsecos e extrínsecos que predispõem à ruptura tendinosa, sendo os mais importantes a tendinose prévia e a administração oral ou peritendinosa de corticoide.

Os autores apresentam um caso de ruptura atraumática e bilateral simultânea do tendão de Aquiles em paciente previamente submetida a tratamento com infiltração peritendinosa com corticoide bilateralmente. A paciente foi submetida a sutura percutânea bilateral com Tenolig®.

O objetivo deste trabalho é alertar para o risco excessivo do uso de infiltração peritendinosa de corticoide no tratamento da dor retrocalcaneana crónica e de difícil controlo por outros meios, nos doentes com tendinose crónica, mesmo na ausência de outros factores de risco para ruptura. A comunidade médica deve estar ciente dos efeitos nefastos resultantes da infiltração peritendinosa com corticoide, devendo esta ser cautelosamente utilizada.

Palavras chave: Tendão de Aquiles, ruptura não traumática bilateral, infiltração peritendinosa..

 

ABSTRACT

Although Achilles rupture is relatively common, non-traumatic bilateral rupture is less common, constituting 0.002% of the cases described in the literature. Tendinosis and prior oral or peritendinous corticosteroid infiltration are among the most important factors for tendon rupture.

The authors present a case of simultaneous bilateral and atraumatic Achilles tendon rupture in a patient previously submitted to treatment with corticosteroids peritendinous infiltration bilaterally. The patient underwent bilateral percutaneous suture with Tenolig®.

The aim of this report is to highlight the excessive risk of using corticosteroids peritendinous injections in the treatment of retrocalcaneal chronic pain difficult to control by other means, in patients with chronic tendinosis, even in the absence of other risk factors for rupture. Medical community should be aware of the adverse effects of peritendinous corticosteroid infiltration, which should be used cautiously.

Key words: Achilles tendon, non-traumatic bilateral rupture, peritendinous infiltration.

 

INTRODUÇÃO

Os tendões possuem propriedades biomecânicas que lhes permitem um estiramento até 4% antes de ocorrer lesão. Estiramentos acima de 8% do comprimento do tendão originam rupturas macroscópicas.1

O tendão de Aquiles é o tendão mais forte do corpo humano¸ podendo suportar forças até 12 vezes o peso do corpo.2,3

A incidência da ruptura do tendão de Aquiles é de cerca de 0,02% na população ocidental, correspondendo a ruptura simultânea bilateral a menos de 1% destas rupturas.4

As rupturas agudas do tendão de Aquiles ocorrem preferencialmente no sexo masculino, entre a terceira e quinta década de vida. Ocorrem sobretudo durante a prática desportiva e habitualmente o mecanismo da lesão envolvido é a contracção súbita e poderosa dos músculos gastrocnémio e solear no pé em dorsiflexão.5-7

Embora a ruptura do tendão de Aquiles seja relativamente comum, a ruptura bilateral atraumática é mais rara.8 A administração oral prolongada e a infiltração peritendinosa repetida de corticoide são factores de risco conhecidos para ruptura tendinosa.9 Outros factores de risco associados a este tipo de lesões incluem o uso de esteróides anabolizantes e fluoroquinolonas, antecedentes de dor crónica no tendão aquiliano ou de ruptura anterior do tendão em causa.10-13

A injecção peritendinosa de corticoide, anti-inflamatório poderoso, raramente é recomendada no tratamento da tendinite do Aquiles.14 Todavia é uma opção ao tratamento da dor resultante de tendinopatia crónica quando resistente às outras opções terapêuticas.

Os autores apresentam um caso de ruptura atraumática e bilateral simultânea do tendão de Aquiles em paciente previamente submetida a tratamento com infiltração peritendinosa com corticoide bilateralmente.

O objetivo deste trabalho é alertar para o risco excessivo do uso de infiltração peritendinosa de corticoide no tratamento da dor retrocalcaneana crónica e de difícil controlo por outros meios, nos doentes com tendinose crónica, mesmo na ausência de outros factores de risco para ruptura.

Relato de caso

Paciente do sexo feminino, 59 anos, com antecedentes de tendinopatia aquiliana bilateral resistente ao tratamento com AINEs, fisioterapia e infiltração peritendinosa de corticoide (duas infiltrações com intervalo de 3 meses, bilateralmente). Sem patologias conhecidas do foro reumatológico.

A paciente recorreu ao SU por incapacidade de deambulação, após queda durante a subida de escadas, resultante de dor retrocalcaneana excruciante e súbita bilateral, resultante de ruptura aquiliana bilateral. Na admissão do SU, a paciente era incapaz de realizar a flexão plantar de ambos os pés e foi observado um “gap” palpável de aproximadamente 4 cm acima da inserção de ambos os tendões de Aquiles (Figura 1). O teste de Thompson foi positivo bilateralmente. Perante a suspeita clínica de ruptura tendinosa, realizou estudo ecográfico que confirmou a presença de ruptura recente do Aquiles bilateral associada a processo de tendinose.

 

 

Foi realizada a sutura percutânea do tendão aquiliano bilateralmente usando Tenolig ® (Figura 2) no mesmo dia da admissão no SU. Ambos os membros inferiores foram imobilizados com bota gessada em flexão plantar de cerca de 20º durante 4 semanas (Figura 3). Não foram registadas complicações intra ou pós-operatórias. A paciente foi seguida em consulta às 4 semanas, com substituição da imobilização gessada em equino para neutro. Às 6 semanas do pós-operatório foi realizada a extração dos fios do Tenolig® e a paciente foi orientada para fisioterapia e uso de cunha plantar de 2 cm.

 

 

 

Aos 2 meses iniciou fortalecimento e alongamento muscular. A paciente retomou a actividade laboral na área da restauração aos 4 meses e sem limitação para as actividades da vida diária. O score estimado da escala AOFAS para tornozelo e pé aos 6 meses do pós-operatório foi de 100 bilateralmente, sendo o teste de “Thompson” normal bilateralmente.

A paciente tolera apoio monopodálico e apoio no antepé bilateralmente e sem assimetrias.

 

COMENTÁRIOS

Tal como relatado neste caso clínico, o uso de corticoide tem sido associado à ocorrência de rupturas tendinosas.9,15

Habusta defende que as rupturas não traumáticas são um evento comum sobretudo nos tendões degenerados.16 É provável que a dor retrocalcaneana crónica apresentada pela paciente antes do evento da ruptura tendinosa sinaliza-se já a presença de pequenas rupturas minor resultantes de traumas minor repetitivos, que conduziram à degenerescência do tendão e que culminou na ocorrência da ruptura.

Teoricamente, em indivíduos saudáveis e sem fatores de risco para ruptura tendinosa, a degenerescência do tendão iria cicatrizar. No entanto, o facto de a paciente ter realizado infiltrações peritendinosas com corticoide, provavelmente contribuíram para o atraso na cicatrização dos tendões degenerados e para o agravamento da sua degenerescência, conduzindo à ruptura final.

A maioria dos casos relatados na literatura de ruptura não traumática e bilateral do tendão de Aquiles tem sido associada à corticoterapia, apesar de se desconhecer o mecanismo exato pelo qual estes agentes contribuem para os danos tendinosos.

Os corticosteroides podem alterar a estrutura do colagénio, conduzindo à displasia das suas fibrilas e reduzindo a resistência do tendão à tração.15 Os corticosteroides podem ainda interferir com a reticulação das fibras de colagénio, podendo alterar o processo normal de cicatrização do tendão.10,17,18

O objetivo do relato deste caso é alertar para o risco excessivo do uso de infiltração peritendinosa de corticoide no tratamento da dor retrocalcaneana crónica e de difícil controlo por outros meios, nos doentes com tendinose crónica, mesmo na ausência de outros factores de risco para ruptura.

A comunidade médica deve estar ciente dos efeitos nefastos resultantes da infiltração peritendinosa com corticosteroide, devendo esta ser cautelosamente utilizada.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Conflito de interesse:

Nada a declarar

 

Endereço para correspondência

Ana A. C. Pinheiro
Serviço de Ortopedia, Unidade Local de Saúde do Alto
Minho, Viana do Castelo
Estrada de Santa Luzia, 4901-858 Viana do Castelo
ana.alexandra.pinheiro@gmail.com

 

Data de Submissão: 2015-03-15

Data de Revisão: 2015-08-16

Data de Aceitação: 2015-09-12

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