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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia
versão impressa ISSN 1646-2122
Rev. Port. Ortop. Traum. vol.24 no.2 Lisboa jun. 2016
CASO CLÍNICO
Sinovite do Joelho Por Pico de Palmeira - A propósito de Um Caso clínico
Rita HenriquesI; João CorreiaI; Joana TeixeiraI; Graça LopesI; Thiago AguiarI
I. Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Hospital de Santa Maria- Centro Hospitalar de Lisboa Norte, EPE.
RESUMO
A sinovite ou artrite inflamatória causada por lesões penetrantes resultantes de traumatismo em folhas ou picos de plantas é uma entidade clínica pouco frequente e que pela sua natureza indolente pode passar facilmente desapercebida ou ser de difícil diagnóstico. Os autores reportam um caso clínico atípico de um adolescente com sinovite inflamatória do joelho causado por pico de palmeira.
Embora num número considerável de casos, esta sinovite ou artrite seja considerada de origem assética, o organismo mais frequentemente isolado é Pantoae agglomerans. Nestes casos é fundamental proceder-se à remoção do corpo estranho, lavagem abundante por artrotomia ou artroscopia e antibioterapia dirigida. A falha no diagnóstico ou a permanência de fragmentos intra-articulares é na maioria dos casos desastrosa, levando a danos irreparáveis e pode comprometer significativamente a recuperação funcional do doente, sem cura da lesão.
Palavras chave: sinovite, artrite inflamatória, joelho, Pantoae agglomerans, artroscopia.
ABSTRACT
Synovitis and inflammatory arthritis caused by plant thorn penetrating injuries is an uncommon clinical entity. Its indolent nature leads in many cases to misdiagnosis. The authors report an unusual case of a teenager with inflammatory synovitis of the knee caused by palm thorn injury.
Although in a considerable number of cases this synovitis or arthritis is considered aseptic, the most frequently isolated organism is Pantoae agglomerans. In these cases it is essential to proceed with foreign body removal, abundant articular washing, by arthrotomy or arthroscopy, and directed antibiotic therapy. Failure in diagnosis or persistence of intra-articular plant fragments is in most cases disastrous, leading to irreparable damage and significantly compromise the patient functional recovery.
Key words: synovitis, inflammatory arthritis, knee, Pantoae agglomerans, arthroscopy.
INTRODUÇÃO
A sinovite causada por lesões penetrantes resultantes de traumatismo em folhas ou picos de plantas é uma entidade clinica pouco frequente, sendo facilmente esquecida na nossa prática clínica. No entanto, estes casos devem integrar o diagnóstico diferencial de artropatias mono-articulares de natureza inflamatória1, especialmente em faixas etárias jovens e quando existe história pregressa sugestiva de acometimento articular2.
Perante a suspeita de lesão penetrante a nível articular, torna-se mandatória a lavagem e inspeção articular, com remoção dos corpos estranhos, que pode ser realizada através de artrotomia, ou por artroscopia1,2. A remoção incompleta dos corpos estranhos intra-articulares de origem orgânica pode perpetuar a recorrência dos sintomas, requerendo em última instância tratamentos mais extensos como a sinovectomia. Aquando da falha do diagnóstico, a típica apresentação clínica pode corresponder a uma sinovite transitória, seguida de um período de quiescência relativamente assintomático e, culminar na apresentação tardia de artrite crónica mesmo após ter sido esquecido o mecanismo de lesão inicial1,3.
Existem, na literatura, vários casos descritos de episódios recorrentes de sinovite e, até mesmo, de artrite sética1,4. Os autores apresentam um caso clinico atípico de um doente com sinovite do joelho causada por traumatismo com pico de palmeira.
CASO CLÍNICO
Doente de 16 anos de idade, género masculino, caucasiano, sem antecedentes pessoais de relevo, que recorre ao Serviço de Urgência (SU) por quadro de dor e edema do joelho esquerdo, após traumatismo com ramo de palmeira com 3 dias de evolução. Foi realizada a remoção local e aparentemente total do corpo estranho, tendo alta para o domicílio medicado empiricamente com flucloxacilina.
Por agravamento do quadro clínico, cerca de 10 dias após o traumatismo, recorre novamente ao SU, apresentando derrame articular, calor local e evidência de lesão puntiforme. Analiticamente apresentava hemoglobina de 14,3g/dL, leucócitos 7,79x109/L com 55,5% de neutrófilos e PCR de 8,4mg/dL. Realizou radiografia simples do joelho em duas incidências, ântero-posterior e perfil (Figura 1a e 1b), bem como ecografia de partes moles, sem evidência de quaisquer alterações a nível do joelho ou de corpo estranho mas com derrame intra-articular. Realizou ainda ressonância magnética, onde foi possível a identificação de dois corpos estranhos intra-articulares justa-patelares (Fig. 2 e 3). Procedeu-se a artrocentese do joelho, com saída de líquido sinovial turvo, que foi enviado para estudo.
Dada a suspeita de artrite sética, foi submetido a artroscopia observando-se sinovite exuberante e diversos fragmentos do pico de palmeira (Fig. 4, 5 e 6). Foi realizada a remoção dos corpos estranhos (Fig. 7), sinovectomia parcial e lavagem articular abundante. O doente realizou antibioterapia endovenosa com amoxicilina/ácido clavulânico durante 12 dias em regime de internamento, com melhoria progressiva do quadro clínico e da mobilidade articular do joelho. O resultado do exame cultural foi negativo, bem como a pesquisa de bactérias Gram por microscopia direta. Seguiram-se, posteriormente, 18 dias de antibioterapia oral em ambulatório, mantendo melhoria clínica e analítica progressiva.
Durante 9 meses o doente foi seguido em consulta de Ortopedia, apresentando recuperação funcional completa do joelho, sem qualquer evidência clínica ou laboratorial de recidiva ou recorrência de sintomatologia.
DISCUSSÃO
Os traumatismos penetrantes a nível articular por picadas em folhas ou espinhos de plantas podem conduzir a casos de artrite, sinovites inflamatórias ou até mesmo a situações mais graves, de artrite sética. Embora a articulação mais frequentemente afetada seja o joelho 5,6, existem casos descritos de sinovites/artrites de causa semelhante a nível do tornozelo, punho e mão5. Habitualmente, os doentes apresentam, numa fase inicial, um derrame articular doloroso na articulação afectada e aumento da temperatura local, associado a um quadro subfebril ou de febre baixa. Não obstante, na maioria dos casos, apresentam uma avaliação analítica com valores normais de PCR e forma leucocitária dentro dos limites da normalidade7. A análise do líquido sinovial corresponde habitualmente a um líquido turvo, com elevada percentagem de leucócitos e predominância de células polimorfonucleares. O doente refere ainda na maioria das situações remoção do corpo estranho por ocasião do traumatismo, o que associado a parâmetros inflamatórios pouco alterados e clínica pouco exuberante, pode conduzir, com elevada frequência, a uma falha no diagnóstico inicial5.
A recorrência dos sintomas deve-se, em grande parte, à permanência de fragmentos intra-articulares, o que em última instância pode ser desastroso, levando a casos de artrite sética com danos articulares irreparáveis. Por este motivo, e desde logo numa fase inicial, torna-se mandatória a remoção completa do corpo estranho, que se fragmenta com facilidade, lavagem articular abundante com sinovectomia parcial e antibioterapia dirigida5,8. Nos primeiros casos reportados na literatura, foi dada a primazia à lavagem articular e sinovectomia através de artrotomia. No entanto, actualmente, a opção pela artroscopia em detrimento da artrotomia tem sido amplamente discutida na literatura, especialmente no que diz respeito à remoção de corpos estranhos intra-articulares5,6,9. Se por um lado, a artroscopia consiste num procedimento minimamente invasivo, com baixa taxa de complicações, que permite uma melhor visualização da articulação e uma reabilitação mais precoce, por outro, o risco de lesão da cartilagem articular iatrogénica e a exigência de recursos materiais e técnicos é superior com esta técnica cirúrgica, estando dependente da experiência do cirurgião1,5,9. No passado, o seu valor diagnóstico e uso em idade pediátrica foram controversos, contudo, nos últimos anos, tem vindo a ganhar valor a sua utilização nestas idades, evitando artrotomias de outro modo necessárias10. Outro factor a ter em conta aquando da decisão da abordagem cirúrgica é a experiência do cirurgião1.
Como se verificou no caso descrito, a maioria dos fragmentos derivados de plantas não são visíveis na radiografia simples, o que exige um alto índice de suspeição clínica e a realização de outros exames complementares de diagnóstico, como a ecografia, a tomografia computadorizada ou até mesmo a ressonância magnética 1,2,3,5. A ecografia é um exame de fácil acesso, no entanto, francamente dependente do operador e com baixa sensibilidade. Por sua vez, exames como a ressonância magnética, além da alta sensibilidade inerente, podem ser requisitados com o intuito de excluir casos de osteomielite secundária em doentes com suspeita de artrite sética3.
O organismo mais frequentemente isolado em cultura de líquido sinovial neste tipo de lesões é Pantoae agglomerans, uma bactéria Gram negativa, da família das Enterobacteriaceae, presente em material orgânico de origem animal e vegetal2,5,11. O primeiro caso de artrite causada por este agente patogénico foi descrito por Flatauer et al. em 1978, tendo sido isolado num doente após lesão penetrante do joelho por traumatismo numa tala de madeira12. De forma menos frequente podem ser encontradas bactérias da espécie Enterobacter aerogenes e Enterobacter cloacae4. Embora inicialmente os casos de artrite assética tenham sido atribuídos à resposta inflamatória despoletada por substâncias alcalóides ou toxinas presentes nas folhas de plantas2,4,5,7,8, hoje em dia pensa-se que esta bactéria é a principal responsável pelo quadro clínico, mesmo nos casos em que as culturas são negativas, o que se pode dever a um meio de cultura inapropriada ou falha na correcta identificação laboratorial do agente causal1,2,5. De uma forma global, as culturas são positivas em apenas cerca 27% dos casos descritos de artrite por picada em plantas5.
Relativamente ao aspecto microscópico das biopsias sinoviais neste tipo de lesões, podem ser identificadas reacções multi-granulomatosas com células gigantes mononucleares, sinovite hipertrófica e evidência de tecido de granulação8.
Na ausência de comorbilidades pré-existentes, são raros os casos de desenvolvimento de artrite sética, principalmente em crianças e adolescentes4, sendo que a grande maioria dos casos descritos na literatura, apresentou uma resposta favorável a ciclo de antibioterapia com duração mínima de 10 a 14 dias com recurso a cefalosporina de largo espetro11.
Em suma, o diagnóstico de artrite por Pantoae agglomerans exige alto índice de suspeição clínica, devido à sua natureza relativamente indolente e clínica pouco exuberante. Deve, no entanto, surgir como diagnóstico diferencial em casos de lesões penetrantes com material de origem vegetal, nomeadamente por picadas em plantas. Nestes casos, é fundamental proceder-se à remoção completa do corpo estranho, lavagem abundante e antibioterapia dirigida. A falha no diagnóstico ou a permanência de fragmentos articulares pode ser desastrosa, levando em última instância a danos irreparáveis.
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Conflito de interesse:
Nada a declarar
Rita da Silveira Henriques
Interna de Ortopedia do Serviço de Ortopedia do CHLN - Hospital de Santa Maria
Avenida Professor Egas Moniz,1649-035, Lisboa, Portugal
Email: ritasilveirah@gmail.com
Data de Submissão: 2016-04-24
Data de Revisão: 2016-09-29
Data de Aceitação: 2016-10-09