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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia
versão impressa ISSN 1646-2122versão On-line ISSN 1646-2939
Rev. Port. Ortop. Traum. vol.27 no.2 Lisboa jun. 2019
ARTIGO ORIGINAL
Epifisiólise femoral proximal, estudo retrospetivo de resultados a longo prazo após fixação in situ
Cecília Sá BarrosI; Rosana PinheiroI; Elisabete RibeiroI; Rui DuarteI; Pedro VarandaI; Ricardo MaiaI
I. Serviço de Ortopedia e Traumatologia, Hospital de Braga.
RESUMO
Objetivo: A epifisiólise femoral proximal (EFP) é o distúrbio mais frequente na anca do adolescente.
A fixação in situ da epífise femoral é um dos tratamentos cirúrgicos com resultados consistentes, mas as consequências a longo prazo da sua fixação em posição não anatómica têm sido alvo de debate.
Este trabalho teve por objetivo a avaliação retrospetiva dos resultados clínicos e funcionais de doentes submetidos a fixação in situ de EFP entre 1989-1999.
Materiais e Métodos: Os pacientes submetidos a fixação in situ da epífise femoral por EFP entre 1989 e 1999, na nossa instituição, foram convocados a avaliação clínica presencial e avaliação funcional e de qualidade de vida com questionário HOOS e SF-36v2. Foram criados dois grupos de pacientes, segundo a classificação de Wilson. Os grupos foram comparados utilizando ferramentas estatísticas (t-test, teste exato de Fisher e ANOVA).
Resultados: A amostra estudada foi de 27 pacientes (um total de 32 ancas). Na avaliação clínica não se identificaram diferenças entre os grupos. Na avaliação de resultados funcionais, o grupo II apresentou resultados do score funcional HOOS mais baixos que os casos grau I, e resultados do score SF-36 mais baixos do que o grupo I e do que os valores padronizados da população portuguesa.
Conclusões: Embora alguns estudos apontem para uma semelhança de resultados a longo prazo para fixação in situ em desvios ligeiros e moderados, neste estudo observa-se uma diferença significativa entre estes grupos, constatando-se que o grau de deslizamento metafisário determina um pior resultado funcional a longo prazo.
Palavras chave: (MESH): epifisiólise, epifisiólise femoral proximal, avaliação, resultados.
ABSTRACT
Objective: Slipped capital femoral epiphysis (SCFE) is the most frequent disorder of the adolescent's hip.
In situ fixation of the femoral epiphysis is one of the surgical treatments with consistent results, but the long-term consequences of the fixation of the femoral epiphysis in a non-anatomical position have been debated.
This study aimed to retrospectively evaluate the clinical and functional results of patients subjected to in situ fixation of SCFE, between 1989-1999.
Materials and Methods: Patients subjected to in situ fixation of femoral epiphysis for SCFE between 1989-1999, in our institution, were invited to clinical examination plus functional and quality-of-life assessment with HOOS and SF-36v2 questionnaires. Two groups of patients were created according to Wilson’s classification. The groups were compared using statistical tools (t-test, Fisher exact test and ANOVA).
Results: A sample of 27 patients (a total of 32 hips) was studied. In the clinical evaluation, no differences were identified between groups. In the evaluation of functional results, group II presented lower HOOS scores than grade I cases, and SF-36 scores lower than group I and of the standardized values for the portuguese population.
Conclusions: Although some studies point to a similarity of long-term results for in situ fixation in mild and moderate SCFE, a significant difference between these groups is observed in this study, showing that the degree of metaphyseal slip determines a worse long-term functional outcome.
Key words: (MESH): epiphysiolysis, slipped capital femoral epiphyses, assessment, outcomes.
INTRODUÇÃO
A epifisiólise femoral proximal (EFP) é o distúrbio mais frequente da anca na adolescência. Embora a etiologia não esteja totalmente esclarecida, a obesidade, distúrbios endócrinos e a retroversão femoral estão identificados como fatores de risco1,2. Apesar da incidência variar entre grupos étnicos, estudos europeus apontam para cerca de 6 casos em cada 100 000, com predomínio em indivíduos do sexo masculino1,3.
A perda de congruência metáfise - epífise ocorre através da zona hipertrófica da fise que permite o deslizamento antero-superior da metáfise, o que resulta numa deformidade que habitualmente se apresenta em varo/extensão/rotação externa.
Em termos de classificação há a considerar aspetos clínicos e radiográficos. A classificação de Loder baseia-se em aspetos clínicos e descreve dois tipos de EFP (estável e instável) dependendo da capacidade de deambulação da criança. A classificação de severidade de Wilson e Southwick baseiam-se no grau de deslizamento da epífise com base nos achados radiográficos1.
O tratamento, embora condicionado pelo grau de epifisiólise, tem sempre carácter urgente para prevenir o progressivo deslizamento epifisário, a condrólise e o risco de necrose avascular.
A fixação in situ da epífise femoral é uma estratégia com resultados consistentes e favoráveis sobretudo para graus ligeiros a moderados de desvio4,5. O objetivo desta opção cirúrgica é a fixação da epífise, sem redução anatómica da mesma, de forma a prevenir agravamento da deformidade e a epifisiodese. Contudo a deformidade residual expõe a metáfise femoral ao rebordo acetabular anterolateral resultando em dano articular cuja gravidade dependerá do grau de remodelação que eventualmente ocorra, da severidade da deformidade e do tipo de atividade física do paciente2,6.
As consequências funcionais do conflito femoroacetabular residual são ainda pouco conhecidas e serão mais expressivas em follow-up a longo prazo, o que alerta para a importância dos estudos de seguimento alargado do tratamento cirúrgico da EFP2,4,7.
Neste contexto, este trabalho pretendeu responder a algumas destas questões através da avaliação retrospetiva de resultados clínicos e funcionais a longo prazo após fixação in situ de EFP.
MATERIAL E MÉTODOS
Pacientes e seleção da amostra
Foi realizada uma análise retrospetiva de doentes com diagnóstico de epifisiólise femoral proximal submetidos a fixação in situ da epífise femoral entre 1989 e 1999 na nossa instituição. O follow-up mínimo foi de 19 anos.
Foi revista a documentação clínica e registados os procedimentos cirúrgicos, evolução pós-operatória e resultados radiográficos pré- e pós-operatórios. A gravidade do desvio epifisário foi definida, segundo classificação de Wilson, com base na proporção de deslizamento epifisário em grau I (0 a 33% de deslizamento), grau II (34 a 50% de deslizamento) e grau III (> 50% de deslizamento)8.
No período de tempo considerado, 59 pacientes foram submetidos a fixação in situ de EFP, sendo esta realizada de forma percutânea sob apoio radiográfico com diferentes tipos de dispositivos: fios de Kirschner roscados, cravos de Steinman, pinos de Russin e parafusos canulados, dependendo da preferência do cirurgião.
Foram excluídos do estudo 32 pacientes: 12 por impossibilidade de deslocação ao hospital, dado terem emigrado; 8 pacientes por impossibilidade em estabelecer contacto telefónico; 6 pacientes por terem recusado participar no estudo; 3 pacientes por se encontrarem totalmente dependentes em sequência de doença neurodegenerativa; 1 paciente por ter falecido; e 2 pacientes por terem sido submetidos a manobras de redução epifisária prévias à fixação. Assim, 27 pacientes reuniram condições de inclusão no estudo e foram convocados para avaliação clínica presencial.
Avaliação clínica e funcional
Na avaliação clínica foi registado o arco de mobilidade em graus, as assimetrias de comprimento de membros e o tipo de marcha. Adicionalmente foi pedido aos pacientes o preenchimento de um questionário de outcome funcional (HOOS - Hip Dysfunction Osteoarthritis Outcome Score) e de um questionário polivalente de qualidade de vida (SF-36)9,10.
Avaliação radiográfica
Do grupo estudado foi possível obter estudo radiográfico atualizado de 12 pacientes, e classificaram-se as alterações degenerativas apresentadas segundo escala de Kellgren e Lawrence11. Foram também registados os casos que apresentavam deformidade tipo "pistol grip" no estudo radiográfico.
Análise estatística
O grupo em estudo foi submetido a análise estatística descritiva com vista a caraterização demográfica e clínica. As avaliações de diferenças estatísticas entre grupos foram realizadas por t-test, teste exato de Fisher e ANOVA. O programa de análise estatística utilizado foi o GraphPad Prism 6.
RESULTADOS
Caracterização da amostra
A amostra considerada neste estudo foi de 27 indivíduos, sendo que 5 deles apresentavam atingimento bilateral e por isso foram consideradas para a análise um total de 32 ancas. Observou-se, conforme esperado, predomínio do sexo masculino (21 homens e 6 mulheres), não tendo sido identificado predomínio em termos de lateralidade. A idade média à data de intervenção foi de 13 anos, a idade média à data do estudo foi de 37 anos.
Todos os indivíduos foram submetidos a epifisiodese in situ, mas o tipo de material de fixação utilizado variou com a evolução temporal da técnica e segundo a preferência do cirurgião (Tabela 1).
Foram definidos dois grupos tendo em conta a severidade do desvio, sendo que no grupo I constam 16 casos de epifisiólise grau 1, e no grupo II 16 casos de epifisiólise grau 2. Não se identificaram diferenças entre os grupos no que respeita a idade, sexo, lateralidade, tempo de evolução dos sintomas ou tipos de implantes utilizados (Tabela 2).
Resultados Clínicos e Funcionais
No que diz respeito aos resultados clínicos, foram identificados 7 indivíduos com dismetria superior ou igual a 3 cm (4 no grupo I e 3 no grupo II), 4 indivíduos com sinal de Trendelenburg positivo (todos pertencentes ao grupo II) e 9 indivíduos com perda completa da rotação interna (3 do grupo 1 e 6 do grupo II). Contudo, não se identificaram diferenças estatísticas entre os resultados clínicos do grupo I versus grupo II (Tabela 3).
Para avaliar o impacto da severidade do desvio nos resultados funcionais, foram preenchidos questionários HOOS para cada anca submetida a tratamento cirúrgico e questionário SF-36 a cada paciente do estudo. Relativamente aos resultados das avaliações funcionais, verificou-se que o grupo II apresentou resultados do questionário funcional HOOS com valores mais baixos que o grupo I (Figura 1 e Tabela 4). De igual forma, também o grupo II apresentou resultados do questionário de saúde SF 36 mais baixos que o grupo I e que os valores normalizados para a população portuguesa12 (Figura 2 e Tabela 5). As diferenças identificadas em ambos os questionários apresentaram significado estatístico (p < 0,0001).
Resultados radiográficos
No que diz respeito ao estudo radiográfico, foram identificados 8 pacientes com deformidade tipo "pistol grip" (dois no grupo I e os seis no grupo II), e 4 pacientes com alterações degenerativas moderadas - grau 3 na classificação de "Kelgren e Lawrence", todos pertencentes ao grupo II (Figura 3, 4 e 5).
No período de seguimento considerado, as únicas reintervenções registadas foram para remoção do material. Não há casos a reportar de necrose avascular da cabeça femoral.
DISCUSSÃO
A EFP, enquanto distúrbio deformante da fise de crescimento de uma articulação de carga, apresenta-se como uma patologia com potencial de evolução desfavorável e compromisso de resultados a longo prazo. O tratamento adequado deste distúrbio é consensualmente cirúrgico, mas o tipo de intervenção é ainda alvo de debate13.
Neste estudo constataram-se piores resultados funcionais para desvios grau II na classificação de Wilson após fixação in situ. Os doentes incluídos neste grupo, embora sobreponíveis em termos de complicações, achados clínicos e radiográficos, pontuam menos nos questionários de qualidade de vida e funcionalidade. Apesar de tudo, a ausência de casos de necrose avascular revela o caracter seguro deste tipo de intervenção.
Vários estudos ao longo dos últimos anos têm avaliado os resultados funcionais a longo prazo de fixação in situ para os diferentes graus de desvio (Tabela 6), sendo que os estudos mais recentes revelam uma crescente preocupação sobre o risco que a posição anómala da cabeça femoral representa para articulação14,15,16,17,18.
Assim, neste estudo, conclui-se que a fixação in situ é uma opção segura e com bons resultados funcionais, clínicos e radiográficos a longo prazo para graus ligeiros de desvio da epífise femoral. Apesar disto, para graus moderados apresenta-se como uma estratégia segura embora com resultados funcionais menos satisfatórios. Assim, na ausência de opções que ofereçam inequivocamente melhores resultados para os desvios moderados, a fixação in situ continua a ser uma abordagem adequada. Contudo, estes casos devem permanecer sinalizados a longo prazo uma vez que poderão beneficiar de intervenções para minimizar as sequelas da deformidade anatómica remanescente. Por fim, é de salientar que mais estudos são necessários para avaliar se a fixação in situ é um tratamento adequado da EFP para os vários graus da doença, em particular seria interessante avaliar séries maiores de pacientes e uma análise radiográfica mais abrangente.
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Conflito de interesse:
Nada a declarar
Cecília Sá Barros
Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Hospital de Braga
Sete Fontes - São Victor
4710-243 BRAGA
Telefone: 96 258 29 73
ceciliasabarros@gmail.com
Data de Submissão: 2019-03-16
Data de Revisão: 2019-03-16
Data de Aceitação: 2019-03-16