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Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia
versão impressa ISSN 1646-2122versão On-line ISSN 1646-2939
Rev. Port. Ortop. Traum. vol.27 no.2 Lisboa jun. 2019
CASO CLÍNICO
Distração Fisária no Tratamento de Sarcoma de Ewing do Úmero Proximal em Idade Pediátrica
Vítor Hugo PinheiroI; Inês BalacóI; Cristina AlvesI; Ana MaiaII; Gabriel MatosI
I. Serviço de Oncologia Pediátrica do Instituto Português de Oncologia do Porto.
II. Serviço de Ortopedia Pediátrica do Hospital Pediátrico - CHUC, EPE, Coimbra. Coimbra.
RESUMO
Nas crianças, cerca de 75% dos tumores ósseos malignos estão localizados na região metafisária dos ossos longos. A resseção epifisária condiciona uma morbilidade significativa, por dismetria e/ou disfunção das articulações adjacentes. Com a evolução das técnicas cirúrgicas, verificou-se que, em crianças com tumores malignos periarticulares, a distração fisária com preservação da epífise apresenta excelentes resultados funcionais.
O objetivo deste estudo é descrever um caso clínico de uma criança de 7 anos com sarcoma de Ewing do úmero proximal, tratado por distracção fisária e reconstrução com aloenxerto.
Palavras chave: Sarcoma de Ewing, distração fisária, úmero, tumor ósseo.
ABSTRACT
In children, about 75% of malignant bone tumors are located in the metaphyseal region of the long bones. Epiphyseal resection results in significant morbidity due to subsequent limb length discrepancy and / or dysfunction of the adjacent joints. With the evolution of surgical techniques, it was verified that, in children with periarticular malignant tumors, physeal distraction with preservation of the epiphysis presents excellent functional results.
The objective of this study is to describe a clinical case of a 7-year-old child with Ewing’s sarcoma of the proximal humerus, treated by physeal distraction and reconstruction with allograft.
Key words: Ewing Sarcoma, physeal distraction, humerus, bone tumor.
INTRODUÇÃO
Ao longo das últimas décadas, verificou-se uma melhoria significativa na taxa de sobrevivência de doentes com tumores do aparelho locomotor, tendo aumentado também a taxa de preservação do membro. Esta evolução resulta da combinação de vários fatores, entre os quais se destacam o progresso da quimioterapia, o aparecimento de novas técnicas cirúrgicas e os avanços na avaliação imagiológica1,2. Nas crianças, cerca de 75% dos tumores ósseos malignos são localizados na região metafisária. Em tumores com esta localização, a resseção epifisária é frequentemente opção, de forma a obter uma excisão completa do tumor, mas condicionando frequentemente uma morbilidade significativa, por dismetria e/ou disfunção das articulações adjacentes3,4.
Com a evolução das técnicas cirúrgicas, verificou-se que, em crianças com tumores malignos periarticulares, a distração fisária com preservação da epífise pode ser uma opção em casos seleccionados e apresenta excelentes resultados funcionais5. Esta técnica foi descrita pela primeira vez por Cañadel et al. em 1994 e inclui duas fases: num 1º tempo inicial é realizada a separação da epífise da metáfise tumoral, seguindo-se depois, num 2º tempo cirúrgico, a resseção em bloco do tumor6. As casuístas publicadas demonstram que é possível obter bons resultados com esta técnica,6-9 utilizada mais frequentemente no membro inferior. É nosso objetivo descrever um caso clínico de sarcoma de Ewing do úmero proximal, no tratamento do qual foi utilizada a técnica cirúrgica descrita por Cañadel.
DESCRIÇÃO DO CASO
Doente do sexo feminino de 7 anos de idade referenciada à Consulta de Ortopedia Pediátrica por omalgia esquerda, com 6 semanas de evolução, sem contexto traumático conhecido. Não havia qualquer antecedente patológico, pessoal ou familiar, de relevo.
Ao exame objetivo apresentava dor à palpação do úmero proximal e ombro esquerdo e limitação da abdução ativa a partir dos 30°. A radiografia do ombro revelou uma lesão permeativa da metáfise umeral proximal, com bordos mal definidos e erosão da cortical medial (Figura 1). Na ressonância magnética (RMN) a lesão apresentava hipossinal em T1 e hipersinal em T2, medindo aproximadamente 6,2cm de maior extensão. Não havia evidência de atingimento da fise de crescimento, embora se observasse pequeno foco de hipersinal na vertente antero-medial da epífise. No terço médio da diáfise umeral existia uma área nodular, com 7mm de maior eixo, com hipossinal em T1 e hipersinal em T2, suspeita de corresponder a skip lesion (Figura 2). A tomografia por emissão de positrões revelou uma hipercaptação anómala de fluorodesoxiglucose a nível do úmero proximal e 3 micronódulos pulmonares bilaterais milimétricos (Figura 3).
Foi realizada biópsia cirúrgica percutânea da lesão com trocart, com envio do material colhido para estudo histopatológico, citogenético e microbiológico. Foram também realizados medulogramas e biópsia dos ilíacos direito e esquerdo.
Tendo sido diagnosticado um Sarcoma de Ewing do úmero proximal, estadio Enneking IIIb, a doente foi submetida a 6 ciclos de VIDE (vincristina, ifosfamida,doxorrubicina, etoposido). Após o 5º ciclo, a doente sofreu um choque séptico, com necessidade de internamento na Unidade de Cuidados Intensivos.
Após completar quimioterapia neo-adjuvante, a doente foi submetida a uma Tomografia computorizada (TC) pulmonar de controlo que mostrou a manutenção dos micronódulos pulmonares bilaterais milimétricos. A RM de controlo revelou uma diminuição da lesão no seu maior eixo (5,6 cm), com aparente preservação da fise em toda a sua extensão, excepto num único ponto (Figura 4). Verificou-se uma redução evidente do edema medular e desaparecimento da skip lesion, concluindo-se que esta corresponderia a uma provável extensão do edema medular prévio, dado que não apresentava hipossinal em ponderação T1. Contudo, a massa de tecidos moles parecia envolver o nervo axilar.
Decorridos 5 meses após o diagnóstico, realizou-se o tratamento cirúrgico, que se desenvolveu em 2 fases distintas. Numa primeira cirurgia, colocou-se um fixador externo com 2 cravos paralelos, revestidos a hidroxiapatite, diâmetro 6mm, a nível da epífise umeral e 2 cravos de diâmetro 4 mm, paralelos, a nível da diáfise, a cerca de 10 cm distalmente à região fisária (Figura 5). O intervalo entre os cravos do mesmo lado foi de 1 cm. De seguida foi aplicado dispositivo de distracção, tendo sido realizada intra-operatoriamente uma distração de cerca 6mm (Figura 6). A distração foi continuada por 13 dias, ao ritmo da 1-1.5mm/dia, até à data em que a doente referiu desconforto súbito a nível do ombro esquerdo, correspondente a fratura-epifisiólise da placa de crescimento do úmero proximal. A radiografia realizada ao 18º dia após o início da distração, atestou a disrupção da fise com uma distração de cerca de 4.6 mm na região lateral da fise umeral proximal (Figura 7). A 2ª fase do tratamento cirúrgico realizou-se 19 dias após a cirurgia inicial. Procedeu-se à extração do fixador externo e cravos. Tendo em conta a existência de tecido de granulação e zonas de endurecimento a nível dos cravos, estas áreas, bem como a zona da biópsia foram incluídos na linha de incisão cirúrgica, que seguiu a linha de planeamento para uma incisão utilitária do membro superior (Figura 8). Fez-se aponevrectomia em linha com incisão cutânea, com identificação e preservação da veia cefálica no sulco delto-peitoral, e identificação do tendão grande peitoral, realizando-se desinserção distal do mesmo após referenciação com margem de segurança (Figura 9). De seguida, identificou-se a curta porção do bicípite e coraco-braquial a nível inserção proximal, procedeu-se à sua desinserção após referenciação. Identificaram-se os nervos musculo-cutâneo, radial e axilar, tendo-se constatado que este último, não se encontrava envolvido na massa de tecidos moles, o que permitiu a sua preservação. Procedeu-se à laqueação selectiva dos vasos nutritivos do tumor. Marcou-se o nível de osteotomia a cerca de 9 cm da extremidade proximal do tumor, seccionando a longa porção do bicípite braquial e parte da inserção deltoide a esse nível.
Realizou-se osteotomia na zona marcada (Figura 10), com desinserção sequencial do tricípite e restantes músculos posteriores do braço, com margem de segurança. De seguida foi aplicado novo cravo a nível da epífise, constatando-se com manipulação suave que estava completa a epifisiolise proximal na zona medial do úmero proximal (Figura 11). Com apoio de intensificador de imagem identificou-se a zona de distração fisária com palpação com agulha, procedendo à incisão circunferencial da cápsula com bisturi nessa zona de distração fisária (Figura 12).
Introduziu-se a lâmina de bisturi na fise, de forma a separar a epífise e metáfise umerais proximais, conseguindo-se uma ressecção monobloco, sem visualização macroscópica do tumor (Figura 13). Colheram-se amostras de tecido ósseo do topo distal do úmero e da zona fisária residual na epífise umeral, tendo-se enviado o material para estudo anatomo-patológico e confirmação das margens de ressecção. De seguida, foi realizada a preparação de enxerto alógeno de úmero - com confecção de corte para encastoar no úmero nativo distalmente e para melhor adaptação a nível epífise. Fixou-se com lâmina-placa 90º, mantendo o cravo proximal para orientação da mesma (Figura 14). A fixação foi reforçada com a aplicação de uma placa recta LCP 3,5mm num plano ortogonal relativamente à outra placa (Figura 15). Ambas as placas foram aplicadas em compressão. Não se registaram intercorrências peri-operatórias.
A doente teve alta 2 semanas após a cirurgia, reiniciando o esquema de tratamento que incluiu quimioterapia adjuvante, com 8 ciclos VAI (vincristina, actinomicina D e ifosfamida), e radioterapia pulmonar. O resultado do estudo anátomo-patológico mostrou uma regressão tumoral total (100 % necrose), com margens livres e topos ósseos proximal e distal sem infiltração neoplásica. Aos 2 meses de pós-operatório, a doente apresentava uma boa função do ombro esquerdo, sendo que a radiografia de controlo revelou uma fixação estável (Figura 16). Aos 4 meses de pós-operatório mantinha uma fixação estável, embora com alguma reabsorção na zona proximal do enxerto alógeno (Figura 17). Aos 2 anos de pós-operatório apresentava uma excelente função, sem limitações no seu quotidiano. O enxerto apresentava sinais de osteo-integração proximal e distal. Não se observaram sinais de recidiva local ou à distância (Figura 18).
DISCUSSÃO
A resseção tumoral completa é o objetivo primordial no tratamento cirúrgico de sarcomas ósseos. Na cirurgia tumoral, a distração fisária, possibilita uma margem de resseção cirúrgica segura, permitindo a preservação da epífise em crianças e adolescentes. Segundo Cañadel as indicações de distração epifisária incluem: tumor localizado na região metafisária, que não transgrida a fise, em doentes com a cartilagem fisária aberta. A não invasão da fise deverá ser confirmada por radiografia, arteriografia, TC e RMN no pré operatório e exame histológico intraoperatoriamente6. De acordo com o método de estadiamento de San-Julian10 a invasão do sarcoma na metáfise das crianças divide-se em 3 tipos: tipo I, a distância entre a lesão e a fise é mais de 2 cm; tipo II, a distância entre a lesão e a fise é menos de 2cm ou são adjacentes; tipo III, a lesão invade parcialmente a epífise. A margem de resseção cirúrgica da lesão em relação com a fise é um tema controverso, havendo autores que defendem que deve ser no mínimo de 5 cm6, enquanto outros consideram que a epífise pode ser conservada, mesmo com margens inferiores a 1 cm, desde que não haja invasão da epífise11. De forma a garantir uma margem de segurança, San-Julian definiu que as lesões tipo I têm indicação absoluta para distração fisária, as tipo II têm indicação relativa e nas tipo III é contraindicado a realização deste procedimento. Nas lesões tipo II a distração fisária pode ser tentada, no entanto, é possível que as células tumorais já tenham atravessado a fise. Assim, nestes casos, o grupo de Cañadel recomenda biópsia intraoperatória. Se forem encontradas células tumorais na margem fisária o tratamento cirúrgico é completo com resseção epifisária12. Seguindo este princípio, a taxa de recidiva local publicada na literatura é nula6-9. No caso apresentado, apesar de haver um único ponto de contacto da lesão com a fise, optou-se pela aplicação da técnica de distração fisária, sendo que até ao momento não se registou recidiva local.
As complicações da distração fisária incluem infeção, desmontagem da fixação, pseudartrose, atraso de consolidação e lesão nervosa6. No caso descrito não se registaram complicações. Quando comparada com outras técnicas de preservação epifisária, como a resseção transepifisária13 ou a osteotomia multiplanar14, a distração epifisária apresenta uma maior segurança. Tendo em conta que a placa de crescimento apresenta faces irregulares, a resseção transepifisária ou a osteotomia multiplanar, apresentam uma maior dificuldade técnica, podendo resultar numa resseção incompleta do tumor. Na distração epifisária a osteotomia metafisária é realizada pré-operatoriamente, e a resseção tumoral completa-se com a osteotomia diafisária e ressecção de tecidos moles envolventes. No caso apresentado, a epífise foi preservada, dado não ter sido invadida por tumor. Aplicando uma técnica de distração fisária com um fixador externo, foi possível manter a integridade parcial da cápsula articular e dos ligamentos, com vantagens para a função articular do ombro afectado.
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Conflito de interesse:
Nada a declarar.
Vitor Hugo Pinheiro
Serviço de Ortopedia Pediátrica do Hospital Pediátrico - CHUC, EPE
Avenida Afonso Romão
3000-600 COIMBRA
Telefone: 91 843 66 94
pinheiro.vhugo@gmail.com
Data de Submissão: 2018-11-01
Data de Revisão: 2019-01-11
Data de Aceitação: 2019-01-11