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Revista Portuguesa de Estomatologia, Medicina Dentária e Cirurgia Maxilofacial

versão impressa ISSN 1646-2890versão On-line ISSN 1647-6700

Rev Port Estomatol Med Dent Cir Maxilofac vol.61 no.1 Lisboa mar. 2020  Epub 30-Mar-2020

https://doi.org/10.24873/j.rpemd.2020.07.697 

Caso Clínico

Cisto teratoide com epitélios respiratório, gastrointestinal e apêndices dérmicos: coristoma em paciente lactente

Teratoid cyst with respiratory epithelium, gastrointestinal epithelium and dermal appendices: choristoma in a breastfed infant

Glória Maria de França1 

Joaquim Felipe Júnior1 

Weslay Rodrigues da Silva1 

Hugo Costa Neto2 

Germano De Lelis Bezerra Junior2 

Hébel Cavalcanti Galvão1 

1 Programa de Pós-graduação em Ciências Odontológicas, área de concentração em Estomatologia e Patologia Oral, Departamento de Odontologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN, Brasil

2 Programa de Residência em Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilofacial, Departamento de Odontologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN, Brasil


Resumo

Os cistos teratóides são hamartomas, que contém tecidos derivados do endoderma, mesoderme e ectoderma, relativamente raros na cavidade oral, onde são frequentemente encontrados na região da linha média do assoalho bucal. Este estudo relata um caso de cisto teratoide assintomático, localizado em região sublingual, em paciente do sexo feminino lactente, com 1 ano de idade, com histórico de dificuldade de amamentação. A lesão foi removida cirurgicamente e após 2 anos de acompanhamento não foram observados sinais de recidivas. Após a avaliação morfológica, foi classificado como coristoma por conter epitélio gastrointestinal, epitélio respiratório e anexos dérmicos. Concluímos enfatizando a

relevância do correto diagnóstico do cisto teratoide para o estabelecimento da conduta adequada, considerando as implicações clínicas capazes de comprometer as funções de deglutição, mastigação e respiração do indivíduo afetado.

Palavras-chave: Boca; Coristoma; Lactente; Teratoma

Abstract

Teratoid cysts are hamartomas, which contain tissues derived from the endoderm, mesoderm, and ectoderm, and are relatively rare in the oral cavity, where they are often found in the midline region of the oral floor. This study reports a case of an asymptomatic teratoid cyst located in a sublingual region, in a 1-year-old female infant with a history of breastfeeding difficulty. The lesion was surgically removed, and, after 2 years of follow-up, no signs of recurrence were observed. After morphological evaluation, it was classified as a choristoma due to containing gastrointestinal epithelium, respiratory epithelium, and dermal appendages. We emphasize the importance of a correct diagnosis of the teratoid cyst for the establishment of appropriate management, considering the clinical implications that can compromise the swallowing, chewing, and breathing functions of the affected individual.

Keywords: Mouth; Choristoma; Infant; Teratoma

Introdução

Os cistos teratoides são hamartomas que podem conter vários tecidos derivados do endoderma, mesoderma e ectoderma.1 De acordo com a classificação de Meyer,2 os cistos teratóides são cistos disontogenéticos orais. De todos os cistos disontogenéticos, cerca de 7% são encontrados na região de cabeça e pescoço, dos quais 25% deles é visto no assoalho bucal.3

Os cistos disontogenéticos representam menos de 0,01% de todos os cistos orais. Entre eles, os cistos teratoides são os de apresentação clínica mais incomum. A avaliação histopatológica demonstra que este cisto pode ser revestido por tecido gástrico, intestinal, epitélio respiratório, escamoso, ciliado ou até conter estruturas pancreáticas. Os cistos teratoides que contém epitélio respiratório e gastrointestinal foram classicamente como coristomas (massas tumorais de células com organização arquitetural normal situadas em uma localização anormal).4

O diagnóstico diferencial para esse cisto, devido a sua localização, inclui a rânula, sialolitíase dos ductos da glândula submandibular, cisto do ducto tireoglosso, higroma cístico, cisto da fenda braquial, celulite do assoalho de boca, schwannoma

e lipoma. Os principais diagnósticos diferenciais são o cisto dermóide, que se distingue histologicamente do cisto epidermóide apenas pela presença de anexos normais ou dismórficos dentro de suas paredes, geralmente glândulas sebáceas ou folículos capilares abortivos. O cisto teratóide é considerado quanto à presença de outros elementos, como músculo ou osso.5

O diagnóstico definitivo e a indicação do tratamento adequado requerem o uso de exames de imagem como ultrassonografia (US), tomografia computadorizada (TC), Imagem por Ressonância (RM) e exame histopatológico.6 A lesão é geralmente tratada por excisão cirúrgica conservadora,7 utilizando abordagem intraoral ou extraoral.8

O presente relato, tem o objetivo de descrever um achado incomum na literatura em paciente lactente, abordar aspectos referentes a sua origem, características clínicas e conduta terapêutica para o cisto teratoide em assoalho bucal.

Caso clínico

Paciente do sexo feminino, branca, 1 ano de idade, compareceu ao serviço de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial apresentando leve assimetria em hemiface direita ao exame extraoral (Figura 1) e pelo exame clínico intraoral, a paciente apresentava lesão congénita, assintomática, com histórico de crescimento exofítico, localizada em região sublingual, de coloração amarelada, consistência amolecida, implantação séssil, medindo cerca de 5x4 cm (Figura 2). A mãe da criança referiu dificuldades de sucção e respiração durante a amamentação, assim como preocupação com a invasividade local da lesão. A paciente estava se alimentando por meio de sonda desde o nascimento. Foi realizada a tomografia computadorizada de face com janela para partes moles para determinar e delimitar a extensão da lesão e o comprometimento das vias aéreas. A lesão mostrou‑se hipodensa compatível com lesão cística no corte axial (Figura 3) e sem comprometimento de vias aéreas pelo corte sagital (Figura 4).

Além disso, foi realizado punção aspirativa que evidenciou conteúdo amarelado e biopsia incisional, que revelou lesão cística, bem delimitada, apresentando apêndices dérmicos.

Figura 1 O aspeto clinico extraoral exibe leve assimetria em hemiface direita 

Figura 2 O aspeto clinico intraoral da lesao mostra um crescimento exofitico, localizado em regiao sublingual 

Figura 3 Exame pré-operatório de tomografia computadorizada em face mostra área hipodensa (setas) pelo corte axial correspondendo a lesão cística 

Figura 4 Exame pré-operatório de tomografia computadorizada em face mostra a dimensão da lesão cística de modo a esclarecer o comprometimento das vias aéreas pelo corte sagital 

O epitélio de revestimento não apresentava atipia ou características de malignidade. A paciente foi submetida a anestesia geral em ambiente hospitalar, a qual foi feita a incisão com eletrocautério em região sublingual, dissecção romba dos planos musculares (Figura 5) e exérese completa da lesão (Figura 6), sem margens de segurança, por ser uma lesão cística, bem delimitada e benigna. A peça cirúrgica foi enviada para análise anatomopatológica (Figura 7). No momento da macroscopia, pôde‑se observar uma lesão cística, com forma e superfície regulares (Figura 8), que continha um material liquefeito em seu interior (Figura 9). O exame histopatológico corado com hematoxilina e eosina e visualizado em microscopia de luz revelou fragmento de lesão cística benigna do desenvolvimento contendo epitélios pavimentoso estratificado ortoceratinizado com apêndices da pele, tais como, folículos pilosos e glândulas sebáceas; epitélio cilíndrico ciliado semelhante ao epitélio do sistema respiratório; epitélio colunar alto com projeções em forma de microvilosidades lembrando estruturas do endoderma, tais como o revestimento gastrointestinal e elementos do tecido conjuntivo, tais como, músculos e vasos sanguíneos (Figura 10 a‑f). A coloração histoquímica pelo ácido periódico de Schiff (PAS) foi realizada com marcação positiva nas células caliciformes do trato gastrointestinal (Figura 10 g‑h).

Figura 5 Fotografia correspondente ao trans‑operatório, no qual foi realizada a Infiltração anestésica com lidocaina a 2% + epinefrina 1:100.000, incisão com eletrocautério em região sublingual, dissecção romba dos planos musculares 

Figura 6 Exérese da lesão, coagulação elétrica dos pontos sangrantes, irrigação com soro fisiológico 0,9% e sutura por planos musculares com fio reabsorvível 3‑0 

Figura 7 Peca cirúrgica medindo 4 cm em sua maior extensão 

Figura 8 Macroscópica: coloração acastanhada, forma e superfície regulares 

Figura 9 Macroscopia: lesão cística com presença de conteúdo liquefeito, branco‑amarelado, em seu interior 

Figura 10 Aspetos morfologicos: A) presenca de duas cavidades patologicas preenchidas com material compativel com ortoceratina (magnificacao: 5000 μm); B) Caracteristicas de um cisto teratoide com presenca de epitelio pavimentoso estratificado ortoceratinizado e estruturas anexas como glandulas sudoriparas (setas) (magnificacao: 500 μm); C) Maior detalhamento do epitelio com proeminente camada granulosa e glandulas sebaceas (setas) (magnificacao: 100 μm); D) presenca de foliculo piloso (setas) (magnificacao: 200 μm); E) epitelio pseudoestratificado cilindrico ciliado semelhante ao epitelio do trato respiratorio, assim como estruturas do endoderma como tecido conjuntivo muscular estriado esqueletico (setas) (magnificacao: 100 μm); F) Estruturas que lembram as vilosidades do epitelio gastrointestinal (setas) (magnificacao: 500 μm); G) as celulas caliciformes do trato gastrointestinal apresentaram marcacao positiva pelo PAS confirmando o diagnostico de coristoma (Aumento 20x); H) Detalhes das celulas caliciformes coradas pelo PAS (Aumento 40x) 

Em virtude dos achados morfológicos supracitados, foi confirmado a hipótese diagnóstica de cisto teratoide. A paciente encontra‑se há 2 anos sob acompanhamento e o controle pós operatório foi essencialmente clínico (Figura 11) uma vez que a lesão era encapsulada e foi totalmente removida durante a cirurgia para a enucleação. Não foi repetido o exame de tomografia computadorizada para não expor a paciente a radiação.

Figura 11 Acompanhamento clinico pós operatório de 2 anos. Os tecidos moles do assoalho de boca apresentam boa cicatrização e ausência de aumento de volume 

Discussão e conclusões

O termo “cisto teratoide” foi usado pela primeira vez por Meyer et al.,2 na sua classificação, de 1955, de cistos disontogenéticos de região cervicofacial, com base no tipo de camadas germinativas incluídas na parede cística, definindo três tipos histológicos distintos: epidermóide (simples), dermóide (composto) e teratoide (complexo). Os cistos teratóides são revestidos por epitélio que varia de escamoso ceratinizado a epitélio respiratório pseudoestratificado colunar com apêndices dérmicos na parede do tecido conjuntivo junto com derivados das três camadas germinativas (ectoderma, mesoderma e endoderme).2 No presente relato, foi visualizada a presença dos epitélios gastrointestinal e respiratório, justificando a denominação coristomas, tão bem como a presença dos apêndices dérmicos.

Com relação à etiologia dos cistos dermóides e teratóides em assoalho bucal, a teoria mais aceite é um possível sequestro de tecido ectodérmico em linha média no momento da fusão do primeiro arco (mandibular) e segundo arco braquial (hióide),7,9,10,11Desta forma, o presente caso está relacionado a teoria congénita que ocorreu devido ao aprisionamento das células dos três folhetos embrionários.

O principal diagnóstico diferencial para o caso apresentado foi de cisto do ducto tireoglosso, uma vez que este cisto se desenvolve abaixo do osso hióide e são mais visíveis no pescoço do que no assoalho bucal.12

Clinicamente, são assintomáticos, mas seu lento aumento pode causar obstrução com consequente displasia, disfonia e dispneia As lesões mais profundas entre os músculos genio‑hióideo e milo‑hióideo produzem um aumento de volume no pescoço, dando origem à aparência de ‘queixo duplo’.7 Embora, a paciente sob cuidados da instituição fosse assintomática, a mãe relata dificuldades de sucção, deglutição e respiração durante a amamentação da filha devido ao aumento de volume em assoalho e, este foi o principal motivo pelo qual optou‑se pela sua remoção. Após a cirurgia a paciente apresentou significativa melhora em sua deglutição.

A paciente não realizou exames de ressonância magnética e ecografia porque apenas a tomografia computadorizada era o exame que tínhamos acesso. Em virtude disso, a paciente foi submetida a tomografia computadorizada usando a janela para partes moles para avaliação das dimensões da lesão. O laudo tomográfico foi de lesão hipodensa bem delimitada, sugerindo tratar‑se de lesão cística e detalhava as distâncias em relação a glândula sublingual e nervos da região. A tomografia computadorizada é uma ferramenta de diagnóstico útil descrita na literatura e esse recurso também pode ser utilizado para aferir as dimensões da lesão.11

O tratamento compreende excisão cirúrgica, as lesões podem ser acedidas por via intraoral ou extraoral dependendo do tamanho e localização, lesões pequenas costumam ser removidas por acesso intraoral.7 Foi realizado na paciente punção aspirativa, a qual evidenciou conteúdo amarelado, e biopsia incisional, a mesma foi hospitalizada devido à idade e optou‑se por essa estratégia em virtude da maior segurança na manipulação dos tecidos moles pelo cirurgião. A lesão foi tratada por meio de exérese completa por via intraoral sem a inclusão de margens de segurança por se tratar de uma lesão cística, com bom prognóstico, indolente e sem potencial de recidivas e malignização.

Recorrência e transformação maligna são incomuns, no entanto, a recidiva pode acontecer caso o revestimento do cisto não seja completamente removido.13,14No caso em questão, a lesão foi completamente removida, não apresentando características de malignidade e encontra‑se há 2 anos sem recidiva da lesão.

Na macroscopia, observa‑se que o cisto é encapsulado e a cavidade cística contém ceratina. O lúmen cístico pode conter material purulento, caseoso, sebáceo, presença de pelos, unhas e glóbulos de gordura.7 No caso em questão, constatou‑se a presença de material liquefeito, caseoso, branco‑amarelado, semelhante a ceratina, no interior da cavidade cística.

Histologicamente, os cistos teratóides são caracterizados por apresentarem uma cavidade cística revestida por epitélio que pode variar entre escamoso, gástrico, intestinal, respiratório, ciliado e apêndices dérmicos. Pode conter também tecido ósseo e muscular, além da cápsula fibrosa. Essas características histológicas são decorrentes dos folhetos derivados do endoderma, mesoderma e ectoderma.4,15A paciente em questão apresentou lesão com características histológicas compatíveis com o cisto teratóide.

A coloração histoquímica pelo PAS foi realizada para identificar células caliciformes do trato gastrointestinal que não foram inicialmente identificadas pela coloração em H&E. Uma vez que as células da mucosa intestinal contém reservas de glicosaminoglicanos (carboidratos) que demonstra reação pelo PAS.16 A recomendação do uso do PAS ou do Alcian Blue no pH 2.5 para identificação das células caliciformes do trato gastrointestinal apresenta controvérsias na literatura, visto que a maioria destas células são facilmente identificáveis na coloração H&E de rotina.16

Concluímos enfatizando a relevância do correto diagnóstico do cisto teratoide para o estabelecimento da conduta adequada, considerando as implicações clínicas capazes de comprometer as funções de sucção, deglutição e respiração do indivíduo afetado.

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Conflito de interesses

Recebido: 11 de Outubro de 2019; Aceito: 12 de Março de 2020

Autor correspondente. Glória Maria de França Correio eletrónico: gloriafracam@gmail.com

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