Introdução
Os cistos teratoides são hamartomas que podem conter vários tecidos derivados do endoderma, mesoderma e ectoderma.1 De acordo com a classificação de Meyer,2 os cistos teratóides são cistos disontogenéticos orais. De todos os cistos disontogenéticos, cerca de 7% são encontrados na região de cabeça e pescoço, dos quais 25% deles é visto no assoalho bucal.3
Os cistos disontogenéticos representam menos de 0,01% de todos os cistos orais. Entre eles, os cistos teratoides são os de apresentação clínica mais incomum. A avaliação histopatológica demonstra que este cisto pode ser revestido por tecido gástrico, intestinal, epitélio respiratório, escamoso, ciliado ou até conter estruturas pancreáticas. Os cistos teratoides que contém epitélio respiratório e gastrointestinal foram classicamente como coristomas (massas tumorais de células com organização arquitetural normal situadas em uma localização anormal).4
O diagnóstico diferencial para esse cisto, devido a sua localização, inclui a rânula, sialolitíase dos ductos da glândula submandibular, cisto do ducto tireoglosso, higroma cístico, cisto da fenda braquial, celulite do assoalho de boca, schwannoma
e lipoma. Os principais diagnósticos diferenciais são o cisto dermóide, que se distingue histologicamente do cisto epidermóide apenas pela presença de anexos normais ou dismórficos dentro de suas paredes, geralmente glândulas sebáceas ou folículos capilares abortivos. O cisto teratóide é considerado quanto à presença de outros elementos, como músculo ou osso.5
O diagnóstico definitivo e a indicação do tratamento adequado requerem o uso de exames de imagem como ultrassonografia (US), tomografia computadorizada (TC), Imagem por Ressonância (RM) e exame histopatológico.6 A lesão é geralmente tratada por excisão cirúrgica conservadora,7 utilizando abordagem intraoral ou extraoral.8
O presente relato, tem o objetivo de descrever um achado incomum na literatura em paciente lactente, abordar aspectos referentes a sua origem, características clínicas e conduta terapêutica para o cisto teratoide em assoalho bucal.
Caso clínico
Paciente do sexo feminino, branca, 1 ano de idade, compareceu ao serviço de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial apresentando leve assimetria em hemiface direita ao exame extraoral (Figura 1) e pelo exame clínico intraoral, a paciente apresentava lesão congénita, assintomática, com histórico de crescimento exofítico, localizada em região sublingual, de coloração amarelada, consistência amolecida, implantação séssil, medindo cerca de 5x4 cm (Figura 2). A mãe da criança referiu dificuldades de sucção e respiração durante a amamentação, assim como preocupação com a invasividade local da lesão. A paciente estava se alimentando por meio de sonda desde o nascimento. Foi realizada a tomografia computadorizada de face com janela para partes moles para determinar e delimitar a extensão da lesão e o comprometimento das vias aéreas. A lesão mostrou‑se hipodensa compatível com lesão cística no corte axial (Figura 3) e sem comprometimento de vias aéreas pelo corte sagital (Figura 4).
Além disso, foi realizado punção aspirativa que evidenciou conteúdo amarelado e biopsia incisional, que revelou lesão cística, bem delimitada, apresentando apêndices dérmicos.
O epitélio de revestimento não apresentava atipia ou características de malignidade. A paciente foi submetida a anestesia geral em ambiente hospitalar, a qual foi feita a incisão com eletrocautério em região sublingual, dissecção romba dos planos musculares (Figura 5) e exérese completa da lesão (Figura 6), sem margens de segurança, por ser uma lesão cística, bem delimitada e benigna. A peça cirúrgica foi enviada para análise anatomopatológica (Figura 7). No momento da macroscopia, pôde‑se observar uma lesão cística, com forma e superfície regulares (Figura 8), que continha um material liquefeito em seu interior (Figura 9). O exame histopatológico corado com hematoxilina e eosina e visualizado em microscopia de luz revelou fragmento de lesão cística benigna do desenvolvimento contendo epitélios pavimentoso estratificado ortoceratinizado com apêndices da pele, tais como, folículos pilosos e glândulas sebáceas; epitélio cilíndrico ciliado semelhante ao epitélio do sistema respiratório; epitélio colunar alto com projeções em forma de microvilosidades lembrando estruturas do endoderma, tais como o revestimento gastrointestinal e elementos do tecido conjuntivo, tais como, músculos e vasos sanguíneos (Figura 10 a‑f). A coloração histoquímica pelo ácido periódico de Schiff (PAS) foi realizada com marcação positiva nas células caliciformes do trato gastrointestinal (Figura 10 g‑h).
Em virtude dos achados morfológicos supracitados, foi confirmado a hipótese diagnóstica de cisto teratoide. A paciente encontra‑se há 2 anos sob acompanhamento e o controle pós operatório foi essencialmente clínico (Figura 11) uma vez que a lesão era encapsulada e foi totalmente removida durante a cirurgia para a enucleação. Não foi repetido o exame de tomografia computadorizada para não expor a paciente a radiação.
Discussão e conclusões
O termo “cisto teratoide” foi usado pela primeira vez por Meyer et al.,2 na sua classificação, de 1955, de cistos disontogenéticos de região cervicofacial, com base no tipo de camadas germinativas incluídas na parede cística, definindo três tipos histológicos distintos: epidermóide (simples), dermóide (composto) e teratoide (complexo). Os cistos teratóides são revestidos por epitélio que varia de escamoso ceratinizado a epitélio respiratório pseudoestratificado colunar com apêndices dérmicos na parede do tecido conjuntivo junto com derivados das três camadas germinativas (ectoderma, mesoderma e endoderme).2 No presente relato, foi visualizada a presença dos epitélios gastrointestinal e respiratório, justificando a denominação coristomas, tão bem como a presença dos apêndices dérmicos.
Com relação à etiologia dos cistos dermóides e teratóides em assoalho bucal, a teoria mais aceite é um possível sequestro de tecido ectodérmico em linha média no momento da fusão do primeiro arco (mandibular) e segundo arco braquial (hióide),7,9,10,11Desta forma, o presente caso está relacionado a teoria congénita que ocorreu devido ao aprisionamento das células dos três folhetos embrionários.
O principal diagnóstico diferencial para o caso apresentado foi de cisto do ducto tireoglosso, uma vez que este cisto se desenvolve abaixo do osso hióide e são mais visíveis no pescoço do que no assoalho bucal.12
Clinicamente, são assintomáticos, mas seu lento aumento pode causar obstrução com consequente displasia, disfonia e dispneia As lesões mais profundas entre os músculos genio‑hióideo e milo‑hióideo produzem um aumento de volume no pescoço, dando origem à aparência de ‘queixo duplo’.7 Embora, a paciente sob cuidados da instituição fosse assintomática, a mãe relata dificuldades de sucção, deglutição e respiração durante a amamentação da filha devido ao aumento de volume em assoalho e, este foi o principal motivo pelo qual optou‑se pela sua remoção. Após a cirurgia a paciente apresentou significativa melhora em sua deglutição.
A paciente não realizou exames de ressonância magnética e ecografia porque apenas a tomografia computadorizada era o exame que tínhamos acesso. Em virtude disso, a paciente foi submetida a tomografia computadorizada usando a janela para partes moles para avaliação das dimensões da lesão. O laudo tomográfico foi de lesão hipodensa bem delimitada, sugerindo tratar‑se de lesão cística e detalhava as distâncias em relação a glândula sublingual e nervos da região. A tomografia computadorizada é uma ferramenta de diagnóstico útil descrita na literatura e esse recurso também pode ser utilizado para aferir as dimensões da lesão.11
O tratamento compreende excisão cirúrgica, as lesões podem ser acedidas por via intraoral ou extraoral dependendo do tamanho e localização, lesões pequenas costumam ser removidas por acesso intraoral.7 Foi realizado na paciente punção aspirativa, a qual evidenciou conteúdo amarelado, e biopsia incisional, a mesma foi hospitalizada devido à idade e optou‑se por essa estratégia em virtude da maior segurança na manipulação dos tecidos moles pelo cirurgião. A lesão foi tratada por meio de exérese completa por via intraoral sem a inclusão de margens de segurança por se tratar de uma lesão cística, com bom prognóstico, indolente e sem potencial de recidivas e malignização.
Recorrência e transformação maligna são incomuns, no entanto, a recidiva pode acontecer caso o revestimento do cisto não seja completamente removido.13,14No caso em questão, a lesão foi completamente removida, não apresentando características de malignidade e encontra‑se há 2 anos sem recidiva da lesão.
Na macroscopia, observa‑se que o cisto é encapsulado e a cavidade cística contém ceratina. O lúmen cístico pode conter material purulento, caseoso, sebáceo, presença de pelos, unhas e glóbulos de gordura.7 No caso em questão, constatou‑se a presença de material liquefeito, caseoso, branco‑amarelado, semelhante a ceratina, no interior da cavidade cística.
Histologicamente, os cistos teratóides são caracterizados por apresentarem uma cavidade cística revestida por epitélio que pode variar entre escamoso, gástrico, intestinal, respiratório, ciliado e apêndices dérmicos. Pode conter também tecido ósseo e muscular, além da cápsula fibrosa. Essas características histológicas são decorrentes dos folhetos derivados do endoderma, mesoderma e ectoderma.4,15A paciente em questão apresentou lesão com características histológicas compatíveis com o cisto teratóide.
A coloração histoquímica pelo PAS foi realizada para identificar células caliciformes do trato gastrointestinal que não foram inicialmente identificadas pela coloração em H&E. Uma vez que as células da mucosa intestinal contém reservas de glicosaminoglicanos (carboidratos) que demonstra reação pelo PAS.16 A recomendação do uso do PAS ou do Alcian Blue no pH 2.5 para identificação das células caliciformes do trato gastrointestinal apresenta controvérsias na literatura, visto que a maioria destas células são facilmente identificáveis na coloração H&E de rotina.16
Concluímos enfatizando a relevância do correto diagnóstico do cisto teratoide para o estabelecimento da conduta adequada, considerando as implicações clínicas capazes de comprometer as funções de sucção, deglutição e respiração do indivíduo afetado.