Introdução
A saúde oral dos indivíduos assume parte integrante no seu bem‑estar geral, influenciando a qualidade de vida e apresentando um forte impacto na saúde sistémica.1,2De facto, patologias como as doenças periodontais têm sido associadas com doença cardiovascular, doença cerebrovascular, diabetes mal controlada, e outras doenças sistémicas.3 Neste sentido, a literatura defende a importância de se manter um olhar mais abrangente e holístico sobre o cuidado do paciente, considerando o sistema estomatognático como parte do corpo e não segregado do mesmo.4
Alguns estudos têm examinado a condição oral de diversos grupos de indivíduos portadores de deficiência intelectual, nomeadamente crianças, pessoas institucionalizadas, grupos étnicos específicos, e atletas paralímpicos,5 evidenciando que pessoas portadoras de deficiência intelectual apresentam uma pior higiene oral (especialmente em indivíduos com incapacidade motora associada) e uma inferior condição periodontal, do que pessoas sem deficiência.3,5,6,7,8,9Estas condições encontram‑se, por sua vez, associadas a perda dentária e, a níveis mais elevados de edentulismo, com frequente falta de substituição protética.10 Também Kavvadia et al.11 observaram níveis mais elevados de placa dentária entre adolescentes e jovens adultos portadores de deficiência intelectual, associando um comprometimento intelectual mais grave a um pior estado periodontal.12 Numa revisão sistemática5 de 27 estudos, foi possível concluir que pacientes portadores de deficiência intelectual têm pior higiene oral, níveis mais elevados de placa, gengivite e periodontite mais severas, mais cáries dentárias não tratadas,13,14e um maior número de dentes extraídos.
Adultos com mais de 50 anos apresentam cerca de duas vezes mais probabilidade de ser edêntulos se tiverem deficiência intelectual (34% vs. 15%).15,16Tal situação assume um carácter ainda mais preocupante se pensarmos que o edentulismo pode estar indiretamente relacionado com o aumento do risco de comorbilidades associadas a uma débil saúde geral.16
Outros estudos relativos ao estado de saúde oral de pacientes portadores de deficiência intelectual relatam, para além das condições previamente descritas, problemas como: acentuados desgastes dentários devido ao bruxismo, e alta suscetibilidade a lesões traumáticas nos dentes e na boca.8,17
Também a prevalência de má oclusão foi encontrada como sendo superior e mais severa em indivíduos portadores de deficiência intelectual,18 constituindo‑se em um obstáculo para a aceitação e integração social do indivíduo, não apenas do ponto de vista estético, mas também porque afeta funcionalmente a cavidade oral.18,19
Assim, este trabalho tem como objetivo comparar os comportamentos e padrões de higiene oral, bem como a autoperceção da necessidade de tratamento em populações portuguesas adultas com e sem deficiência intelectual.
Material e Métodos
O presente trabalho enquadra‑se num estudo de prevalência, sobre os comportamentos e hábitos de saúde oral de uma amostra de 480 indivíduos com idades compreendidas entre os 18 e 64 anos. Trata‑se de uma amostra de conveniência da qual fazem parte 240 pessoas portadoras de deficiência intelectual leve vinculadas às instituições da Região Centro de Portugal filiadas na HUMANITAS e 240 indivíduos adultos sem deficiência intelectual, utentes da Clínica Dentária Universitária da Universidade Católica Portuguesa de Viseu.
Para inclusão dos indivíduos na amostra foram definidos os seguintes critérios:
1. Os indivíduos serem de nacionalidade portuguesa;
2. Terem idade superior a 18 anos;
3. Terem um relatório médico e avaliação psicológica que ateste a condição de deficiência intelectual leve. Esta é caracterizada por limitações significativas, tanto no funcionamento intelectual, raciocínio, aprendizagem e resolução de problemas, como no comportamento adaptativo, que abrange uma gama de habilidades sociais e práticas do quotidiano e surge antes dos 18 anos.20,21,22
4. Autorizarem a participação no estudo através de consentimento informado, livre e esclarecido.
Para a realização do estudo foi utilizado um questionário sociodemográfico e de saúde oral para caracterização da amostra, dos seus hábitos de higiene oral, hábitos alimentares, alcoólicos e tabágicos e avaliação do número de dentes naturais.
Foram ainda recolhidos dados relativos à autoperceção da necessidade de tratamento médico‑dentário e do estado dos dentes e gengivas.
O questionário foi previamente sujeito um pré‑teste numa amostra de conveniência de 20 participantes portadores de deficiência intelectual leve selecionados aleatoriamente, com o objetivo de avaliar o seu conteúdo, formulação, sequência e duração média de aplicação. Este procedimento permitiu verificar a compreensão e adequação das perguntas aos objectivos da pesquisa e à população em estudo. Os indivíduos foram ainda inquiridos acerca de eventuais dúvidas, palavras ou expressões que não compreendessem, não tendo sido apresentadas quaisquer dúvidas ou sugestões de alteração.
A aplicação do questionário foi feita sob a forma de entrevista, permitindo assim a sua utilização em pessoas com características que condicionassem o preenchimento, nomeadamente problemas de iliteracia, e evitando, deste modo, a exclusão de participantes.
Para o preenchimento dos questionários foram previamente distribuídos consentimentos informados escritos e explicados oralmente a todos os participantes. No caso das pessoas com deficiência, o consentimento foi assinado pelo próprio, na presença dos prestadores de cuidados ou, em situações de incapacidade física/ iliteracia, assinado pelos representantes legais. Os dados recolhidos para o estudo foram tratados de forma a garantir a sua confidencialidade, sendo os mesmos de uso exclusivo do investigador.
De modo a evitar possíveis enviesamentos nas respostas relativas ao número de dentes naturais presentes na cavidade oral, uma observação intraoral foi realizada nas instalações da Clínica Dentária Universitária e nas instalações de cada uma das instituições participantes. Nesta última os utentes foram sentados em cadeiras com apoios de braço, com suficiente apoio para a cabeça, de forma a que esta ficasse ligeiramente inclinada para trás e numa posição inferior à da examinadora, tirando partido da luminosidade natural e, sempre que necessário, artificial, de modo a obte‑se uma visibilidade e posicionamento adequados. Os enfermeiros de cada instituição, assim como outro pessoal auxiliar médico, estiveram presentes, ajudando a examinadora, quando necessário.
Foram tidos em conta os princípios de controlo de infecção cruzada, utilizando material descartável, esterilizado, e aberto somente no momento do exame clínico. Todo o material foi posteriormente levado para ser depositado em contentor próprio para contaminados.
Previamente à realização do estudo, este foi submetido à comissão de ética das várias instituições participantes tendo‑se obtido um parecer favorável de todas estas entidades. Toda a investigação foi realizada respeitando os princípios da declaração de Helsínquia, versão 2013.
A informação obtida foi analisada estatisticamente pelo programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS versão 22.0®). Foram realizadas análises estatísticas descritivas e inferenciais, com recurso aos testes estatísticos Qui‑Quadrado e Mann‑Whitney, adotando‑se um nível de significância de 5% (p< 0,05).
Resultados
Dos 240 indivíduos utentes da Clínica Dentária Universitária da Universidade Católica Portuguesa, 152 eram do género feminino e 88 do género masculino. A média das idades situou‑se nos 36 ± 12,1 anos, sendo o limite inferior 18 e o superior 61. Já nos indivíduos com deficiência intelectual leve, 122 eram do género feminino e 118 do género masculino, sendo a média de idades de 36 ± 12,1 anos (limite inferior 18 e superior 64).
Relativamente à condição oral, verificou‑se que 32,9% dos indivíduos da população com deficiência apresentava menos de 20 dentes, valor este substancialmente superior ao da população sem deficiência, na qual 10% dos indivíduos apresentava menos de 20 dentes. Note‑se, ainda, que em ambas as populações, esta variável foi avaliada pela equipa investigadora, de modo a evitar possíveis enviesamentos na resposta.
Também a percentagem de higienização oral diária foi inferior na população com deficiência (79,6% vs 94,2%), assim como o uso de fio dentário (7,1% vs 47,1%) ou elixir (24,1% vs 49,2%). Verificámos ainda na população com deficiência uma menor percentagem de visitas ao consultório médico‑dentário (28,4% vs 59,2%) nos últimos 6 meses, tal como é aconselhado para check‑ups periódicos,23 especialmente quando o motivo da consulta é rotina ou aconselhamento médico (18,8% vs 46,3%) (Tabela 1).
Note‑se ainda que a percentagem de indivíduos que foram a uma consulta de Medicina Dentária por motivo de rotina ou aconselhamento médico foi superior no género feminino (na população com deficiência χ2(2)=6,531; p=0,038 e na população sem deficiência χ2=4,038; p=0,231), ainda que tais resultados apenas tenham sido estatisticamente significativos na amostra com deficiência (Figuras 1 e 2). A percentagem de utilização de fio dentário foi, também ela, significativamente superior no género feminino nas duas populações, com deficiência (X2=6675,0; p=0,029) e sem deficiência (X2=5,122; p=0,032) (Figuras 3 e 4).
Quanto à autoperceção da necessidade de tratamento médico‑dentário é também na população com deficiência que encontramos uma maior autoperceção da necessidade de algum tipo de tratamento médico‑dentário (75,2% vs 56,7%), assim como uma autoperceção menos favorável do estado dos dentes e gengivas, já que menos de metade (37,4% vs 56,2%) da amostra descreveu a sua condição oral como boa ou superior, contrariamente à população sem deficiência (Tabela 2). É ainda no género feminino que encontramos uma autoperceção significativamente mais elevada da necessidade de tratamento médico‑dentário em ambas as populações (com deficiência χ2(1)=6,460; p=0,011 e sem deficiência χ2=7,324; p=0,03) (Figuras 5 e 6).
Quanto aos hábitos alimentares, cerca de 73% da população com deficiência afirmou consumir alimentos cariogénicos (biscoitos e bolos; geleias ou mel; pastilhas com açúcar; doces/guloseimas; refrigerantes) pelo menos uma vez por semana, valor este bastante significativo e similar ao da população sem deficiência (75,5%).
Verificámos também que 24,2% da amostra com deficiência intelectual leve era fumadora e 24% afirmou ter consumido bebidas alcoólicas no último mês. Já na população sem deficiência, 22,1% dos indivíduos eram fumadores e 57,1% consumiu bebidas alcoólicas no mês anterior. Em ambas as populações, a percentagem de fumadores (população sem deficiência X2=35,421; p=0,001; população com deficiência X2(1)=11,996; p=0,001) e o consumo de bebidas alcoólicas (população sem deficiência X2=51,330; p=0,001; população com deficiência X2=5542,0; p<0,001) foram superiores para o género masculino (Figuras 7, 8, 9 e 10).
Discussão
No presente estudo, 94,2% dos indivíduos da amostra sem deficiência realizam a higiene oral diariamente, 49,2% usa elixir oral e 47,1% usa fio dentário, sendo tais resultados semelhantes aos verificados na população geral portuguesa,24 em que 97,6% da amostra higieniza a cavidade oral de forma diária e 45,4% utiliza elixir oral. Como potenciais causas para os resultados encontrados na população sem deficiência podemos, eventualmente, apontar as escassas capacidades económicas de uma parte significativa da população, bem como a falta de consciencialização acerca da importância dos cuidados de higiene oral, pois a saúde oral não é considerada uma prioridade face a outras potenciais necessidades médicas.
Já na população portadora de deficiência intelectual leve, verificámos resultados inferiores uma vez que apenas 79,6% da amostra escova os dentes diariamente, 24,1% utiliza elixir oral e 7,1% faz uso de fio dentário. A reduzida adoção de hábitos adequados de higiene oral pode estar relacionada com fatores físicos, económicos, comportamentais, bem como com o escasso número de médicos dentistas e cuidadores dispostos a prestar serviços preventivos neste grupo populacional.9
Noutras populações portadoras de deficiência, encontramos igualmente resultados aquém do desejável no que se refere à higienização oral. Num estudo1 relativo a atletas portadores de deficiência intelectual, participantes do Special Olympics Special Smiles na Bélgica, verificou‑se uma diminuição no número de atletas que reportam higienizar a cavidade oral pelo menos uma vez por dia, de 84,6% em 2008 para 79,3% em 2013. Num outro estudo25 foi reportada uma inadequada higiene oral como a principal causa de doença periodontal em pessoas portadoras de algum tipo de deficiência, salientando ainda que existe uma relação entre o nível de higiene oral e o grau de deficiência.
No nosso estudo foi também observada uma menor percentagem de visitas ao consultório médico‑dentário nos indivíduos com deficiência (28,4% vs 59,2%) possivelmente devido às inúmeras barreiras que esta população encontra no acesso a adequados cuidados de saúde oral, desde condicionantes intrínsecas, socioeconómicas, barreiras relativas à acessibilidade e à reduzida perceção acerca da importância da saúde oral.9 Também Liu et al.26 e Pradhan et al.27 observaram que 76,4% e 73% dos inquiridos, respetivamente, não visitaram o médico dentista no último ano, valores estes próximos das estimativas para outros grupos desfavorecidos, como é o caso dos sem‑abrigo.27
A ausência de perceção da necessidade de tratamento como principal causa para não visitar regularmente o médico dentista foi também referida.28 Essa ausência de perceção surge principalmente pela falta de dentes, por simplesmente considerarem desnecessário, ou pela ausência de dor.28 Tal facto parece não ir de encontro aos resultados obtidos no nosso estudo, especialmente no que refere à população com deficiência, já que 75,2% destes indivíduos afirmaram sentir necessidade de algum tipo de tratamento.
Note‑se ainda que a percentagem de indivíduos que foram a uma consulta de Medicina Dentária por motivo de rotina ou aconselhamento médico, assim como a utilização de fio dentário foi superior no género feminino. Ainda assim, é neste grupo que encontramos uma autoperceção mais elevada da necessidade de tratamento médico dentário, o que evidencia uma maior preocupação e exigência das mulheres face à saúde oral, à sua aparência e à qualidade de vida. Outros estudos29,30,31observam igualmente relações significativas entre o género e os comportamentos em saúde oral. Exemplo disso é um estudo relativo à população Portuguesa,24 no qual os autores verificaram uma maior prevalência de escovagem dentária (77,3% vs 68,9%), de utilização de fio dentário (29,3% vs 17,6%), de elixir oral (52,4% vs 40%) e de visitas ao consultório médico‑dentário duas ou mais vezes por ano (26,4% vs 19,1%) no género feminino.
No que diz respeito ao número de dentes que os indivíduos apresentam na cavidade oral, 10% dos indivíduos da amostra sem deficiência apresentavam menos de 20 dentes, já no que se refere à população com deficiência intelectual, 32,9% dos indivíduos apresentavam menos de 20 dentes. Tal situação pode dever‑se, entre outras possíveis causas, à escassa procura de cuidados de saúde oral, à falta de colaboração nos tratamentos médico‑dentários, fazendo com que os dentes afetados por cáries sejam mais frequentemente extraídos do que tratados,6,31 e/ou devido à alta prevalência de doença periodontal em pessoas portadoras de deficiência intelectual.32 Tal é, aliás, verificado noutros grupos populacionais vulneráveis, como é o caso dos pacientes psiquiátricos,33 em que a grande maioria dos indivíduos enfatiza a extração dentária como a única experiência vivenciada na consulta de Medicina Dentária.
Em suma, a evidência sugere que os hábitos de higiene e saúde oral inadequados são mais prevalentes na população com deficiência do que na população sem deficiência.
Como limitações do nosso estudo enfatizamos o facto de este ser realizado em amostras de conveniência que poderão não ser representativas da população geral. Adicionalmente, a amostra da população sem deficiência poderá apresentar algum enviesamento na medida em que são pacientes de uma clínica dentária, e pela existência de uma ligeira disparidade na distribuição das características género e idade face ao grupo de comparação. Para além disso, e tendo em conta que, por vezes, os indivíduos tendem a sobrestimar os seus comportamentos reais, por influência do conhecimento prévio do que seriam considerados hábitos desejáveis/ideais1 e pela aceitabilidade social das suas respostas,34 consideramos que, à semelhança do que acontece noutros estudos,24 os nossos resultados possam constituir uma visão otimista da real situação atual, pelo que devem ser envidados esforços no sentido de promover adequados hábitos de higiene oral.
Salientamos assim que a importância de avaliar tanto a perceção de saúde dos pacientes quanto a presença ou ausência de hábitos de higiene, reside na necessidade de ter dados precisos para, em futuras linhas de investigação, planear e
desenvolver programas de promoção de saúde, ajudando a orientar as políticas de saúde oral e contribuindo deste modo para a definição e priorização do uso socialmente apropriado de recursos.
Conclusões
Os comportamentos de saúde oral da população portadora de deficiência intelectual em estudo são consideravelmente inferiores aos da população sem deficiência. Os resultados sugerem que a população portadora de deficiência intelectual em estudo apresenta comportamentos de saúde oral que constituem fatores de risco para a condição oral, situação esta evidenciada pelas elevadas percentagens de edentulismo apresentadas.
Apesar da condição de deficiência intelectual leve, a população em estudo apresenta uma clara perceção das suas necessidades de tratamento e do estado da sua saúde oral. Evidencia‑se, em ambas as populações, uma maior preocupação e cuidado do género feminino com a saúde oral.