Introdução
A displasia cementária periapical (DCP) é um distúrbio de formação e remodelação do tecido ósseo que durante o seu desenvolvimento sofreu alguma alteração durante a diferenciação celular, resultando num tecido malformado. A lesão não apresenta características neoplásicas e sua localização envolve habitualmente a região do periápice dos dentes anteroinferiores.1
Os pacientes que apresentam a DCP são predominantemente de meia idade, gênero feminino e de etnia negra. No entanto, isso não exclui a possibilidade de uma certa prevalência em indivíduos jovens e de outras etnias.1 Geralmente, os dentes relacionados com essas lesões demonstram vitalidade pulpar e são assintomáticos, sem sinais e sintomas clínicos evidentes.2
Os aspetos imagiológicos da DCP são primordiais para interpretar e diferenciar o processo da lesão que evolui em três fases: a fase inicial da instalação da displasia é constituída predominantemente por áreas radiolúcidas, quase regulares na região dos ápices de um ou mais dentes; na fase intermediária, as lesões apresentam áreas radiopacas irregulares entre as áreas radiolúcidas; e na fase final, as lesões apresentam‑se prevalentemente radiopacas, com halo radiolúcido irregular. Pode‑se inferir a importância do conhecimento desses aspetos radiográficos para o domínio do diagnóstico seguro da DCP, pois na sua fase inicial a mesma pode ser confundida com uma lesão periapical crónica de origem endodôntica. O que poderá diferenciá‑las será a resposta positiva ao teste de sensibilidade pulpar, que é um indicativo para DCP, enquanto que as periapicopatias apresentarão uma resposta negativa. Desse modo, não se deve realizar o tratamento endodôntico sem prestar um correto diagnóstico e também avaliar o quadro de evolução da patologia, considerando sempre optar por um tratamento mais conservador.1,3
As lesões cemento‑ósseas são estabelecidas em três grupos: focal, periapical e florida, diferindo quanto a sua localização e apresentação clínica/radiográfica, a denominação “focal” é utilizada quando a lesão é isolada; “periapical” quando há a presença de múltiplas lesões na região anterior de mandíbula; e “florida” para casos em que há envolvimento amplo de outras regiões dos ossos gnáticos. As três demonstram características histopatológicas semelhantes, ou seja, as lesões displásicas consistem de tecido conjuntivo fibroso com uma mistura de osso imaturo, lamelar, e partículas semelhantes ao cemento. Com a maturação, as trabéculas ósseas se tornam espessas e curvilíneas. Ainda, no seu estágio final, foi relatada a fusão das trabéculas e formação de massas lobulares compostas de material cemento‑ósseo, acelular e desorganizado.2,3
O diagnóstico precoce de displasia cementária periapical é essencial para melhor condução do planeamento terapêutico, que na maioria dos casos se traduz em acompanhamento clínico e radiográfico, com observação da estabilização da lesão sem causar nenhum dano ao paciente. Para tal, o clínico deve realizar uma anamnese detalhada, associada ao exame físico e radiográfico, assim como métodos de diagnóstico diferencial supracitados.2‑4
O objetivo do presente trabalho é relatar um caso clínico de displasia cementária periapical, com diagnóstico precoce ainda em fase inicial e acompanhamento de sete anos, com foco nos métodos diagnósticos e tratamento empregados disponíveis.
Caso clínico
Paciente do género feminino, 15 anos, faioderma, procurou atendimento odontológico privado, no ano de 2012, para avaliação de seus terceiros molares, que se encontravam inclusos, tendo sido pedida pelo clínico uma radiografia panorâmica.
Além da presença dos terceiros molares a radiografia revelou também uma área radiolúcida na região dos incisivos inferiores, próxima ao periápice dos dentes 32 e 33, em que o espaço do ligamento periodontal e a lâmina dura permaneciam preservados (Figura 1).
Apesar deste achado não ser a queixa principal da paciente, a mesma não relatava nenhum incomodo no local, negava traumatismos anteriores e ao exame físico observou‑se que os dentes se encontravam hígidos, com resposta positiva ao teste de sensibilidade pulpar, caracterizando vitalidade nos mesmos, ausência de aumento de volume na região e também de quaisquer sinais clínicos que justificassem a lesão observada na radiografia. A conduta inicialmente proposta a paciente foi a realização do tratamento endodôntico dos elementos próximos a lesão e, após a conclusão do mesmo, ela deveria retornar ao ambulatório para realizar a excisão cirúrgica da lesão. No entanto, a paciente optou por ouvir uma segunda opinião a respeito dos achados radiográficos e conduta clínica inicial, porém teve uma grande surpresa quando foi diagnosticada como DCP, e a conduta proposta por este foi a proservação e acompanhamento clínico‑radiográfico anual da patologia, ficando a mesma de decidir qual das duas condutas iria seguir.
Após 15 dias da consulta a paciente retorna e informa que trataria o caso conservadoramente, sendo assim estipulados períodos de retornos, onde se fariam radiografias de acompanhamento e caso houvessem alterações significativas outras condutas poderiam ser tomadas.
Posteriormente, no ano de 2014, foi observado pequeno crescimento da displasia, que se estendia lateralmente a unidade 33 até a unidade 41, ambos por mesial. Apresentava‑se uma lesão predominantemente osteolítica com conteúdo hiperdenso em seu interior, evidenciado imagem mista, que corresponde a fase intermediária da DCP (Figuras 2, 3, 4 e 5). Além disso, não houve evidências de expansão das corticais ósseas adjacentes e a paciente não acusava sintomatologia dolorosa.
Novamente o teste de sensibilidade pulpar teve resposta positiva em todos os dentes envolvidos, descartando a possibilidade de necrose pulpar.
Em 2015, as imagens sugeriam que a lesão permanecia na fase intermediária, sem nenhuma alteração considerável em sua extensão, embora tenha‑se notado um aumento da calcificação na lesão no exame de imagem (Figuras 6 e 7). Os elementos continuavam vitais, e a paciente não relatou sintomatologia dolorosa.
No ano de 2017, a lesão manteve sua extensão e os dentes, vitalidade. Observou‑se também notável formação óssea, abrangendo 2/3 da área radiolúcida (Figuras 8, 9 e 10), corroborando assim com a ideia do diagnóstico inicial de DCP.
Em 2019, sete anos após o atendimento inicial, notou‑se a continuidade do quadro de higidez dos dentes e mucosa, vitalidade pulpar e também ausência de qualquer aumento de volume na região (Figuras 11 e 12). Nota‑se, porém, um maior quadro da calcificação da massa central da lesão e apesar da inexistência de uma biópsia confirmativa, já que esta poderia expor a lesão e causar um quadro infeccioso, pode‑se sugerir fortemente que a lesão é uma DCP, pois na comparação dos exames de imagem a lesão evidenciava maior formação óssea, quando comparada a de 2017, além disso foi notado um crescimento da calcificação dentro da área radiolúcida, alojada próximo aos periápices das unidades dentárias. (Figuras 13 e 14).
Discussão e conclusões
Este presente relato de caso teve como objetivo enfatizar a importância de um correto diagnóstico clínico e proservação do caso através de sinais e sintomas clínicos e exames de imagem.
Este caso clínico seguiu todos os protocolos da instituição para acesso aos dados aqui descritos. Obtivemos também a autorização de divulgação de imagem por parte do paciente, mediante um termo de consentimento livre e esclarecido.
Com o intuito de potencializar a relevância clínica do presente relato e sua importância para o meio acadêmico‑científico, foi realizada uma busca ativa da literatura pela plataforma PubMed, utilizou‑se a seguinte estratégia de busca “Periapical cemento‑osseous dysplasia differential diagnosis”, desse modo alcançando 214 resultados. Foram incluídos na presente seleção quaisquer tipos de estudos; realizados em pacientes humanos; escritos na língua inglesa; com um período máximo de 5 anos desde sua publicação. No que se refere aos critérios de não‑inclusão temos: trabalhos que não contemplem a metodologia proposta acima, que não apresentem seu respectivo resumo na plataforma de busca e trabalhos duplicados. Um total de 199 artigos foram excluídos aplicando os critérios supracitados, e 15 foram incluídos em síntese qualitativa.
A displasia cemento‑óssea é uma lesão fibroso‑óssea benigna da região dentária dos maxilares com origem no ligamento periodontal. Aparece predominantemente em mulheres (88%) negras (32 a 64% dos casos), com pico de incidência na quarta e quinta décadas de vida.5,6A displasia cemento‑óssea é dividida em três grupos: displasia cemento‑óssea periapical (DCP), displasia cemento‑óssea focal e displasia cemento‑óssea florida.7
Tratando‑se da DCP, mantemos um padrão semelhante de prevalência populacional. Afeta mais frequentemente a região anterior da mandíbula, se caracteriza como uma lesão circunscrita, envolvendo dentes vitais, podendo se apresentar de forma múltipla e com tamanho < 1 cm.8 Sua aparência clínica varia de não expansível e assintomática a expansível e, às vezes, sintomática.9 A DCP geralmente não necessita de intervenção, mas recomenda‑se o acompanhamento.5,7,10
Seu diagnóstico diferencial varia de acordo com o estágio da lesão. No estágio osteolítico inicial, a DCP deve ser diferenciada da periodontite apical. Nos estágios mais avançados, pode incluir um fibroma ossificante, doença óssea de Paget, osteomielite esclerosante crônica e cementoma.7,10‑12A diferenciação da origem endodôntica e não‑endodôntica da radiolucência e a distinção dos marcos anatômicos por avaliação clínica apropriada e uso de testes de vitalidade podem dar uma oportunidade para evitar intervenções desnecessárias, como o tratamento endodôntico.4,5,7,9
Em geral, as lesões fibroso‑ósseas benignas dos maxilares representam um grupo diversificado de condições nas quais as condições clínicas, radiológicas e mesmo o diagnóstico histopatológico pode ser difícil de estabelecer. Conseguir um diagnóstico final preciso é de primordial importância, uma vez que definirá a ação terapêutica apropriada.11
Num estudo de prevalência, foram recuperados 35 casos de DCP no período de seis anos. Na grande maioria dos indivíduos, não foram observadas características de raça, idade e localização divergentes do habitual.13 Entretanto existem relatados casos de DCP, descritos como lesões múltiplas na mandíbula e na maxila, localizados na extensão de molares e pré‑molares,14,15,16 em pacientes leucodermas10,16e na segunda década de vida.10
A DCP apresenta um cenário característico habitual de acometimento, o qual é essencial no diagnóstico dessas lesões, dispensando a realização de biópsia.1,17,18No entanto, quando essas características clínicas e radiográficas divergem do habitual e há ausência de vitalidade pulpar, pode‑se optar pela mesma.2,17
O caso clínico relatado neste trabalho foi de uma paciente com 15 anos de idade, faioderma, que apresenta lesão na região periapical de incisivos inferiores, tendo apenas a idade como característica incomum na patologia. Em relação ao diagnóstico diferencial da DCP na primeira fase radiográfica, incluem‑se, as periapicopatias (quisto periodontal apical e granuloma).2,14 Estas apresentam uma resposta negativa no teste de vitalidade pulpar, enquanto que nos casos de DCP a resposta é positiva.2,4 Vale ressaltar que o diagnóstico só é confirmado através da avaliação do estágio de desenvolvimento dessas lesões por meio dos exames imagiológicos.2,4
Durante o período de 7 anos, a lesão progrediu ao longo das etapas inicial e intermediária. No primeiro ano de acompanhamento, apresentava uma imagem osteolítica, e, após dois anos sugeria o início da fase mista, progredindo com a calcificação (e consequente remissão) a cada ano subsequente.
Num estudo de acompanhamento radiográfico com 54 pacientes apresentando lesões displásicas periapicais e/ou de forma focal nos maxilares, pôde‑se perceber que também as lesões de DCP não aumentam de tamanho desde seu estágio inicial.19 A progressão da lesão de DCP é marcada pela esclerose e calcificação.18 O risco de necrose e infeção secundária aumenta por conta da isquemia dos tecidos afetados.16,20A quantidade de tecido duro, acelular e avascular, torna maior o risco de necrose, cicatrização tardia e infeção e inviabiliza a realização de procedimentos cirúrgicos nessas lesões onde a esclerose óssea está presente.18Da mesma forma, não é aconselhável a realização de biópsias e exodontias na região.16,18,20
No entanto, se observada alguma sintomatologia dolorosa, novas abordagens serão necessárias. Quando as lesões se tornam sintomáticas e extensas, a ressecção cirúrgica pode se tornar uma proposta viável de tratamento.16,19,20
As lesões displásicas normalmente não apresentam sintomatologia. Estas geralmente são ocasionadas por alguma infeção secundária.21 As causas da infeção secundária são complicações da saúde bucal, como doença pulpar, periodontite, e exposição da lesão ao meio bucal.19,21 Além disso, intervenções inadequadas, como o tratamento endodôntico, extracção dos dentes e excisão da lesão, também podem resultar numa infecção secundaria.21Num estudo de acompanhamento radiográfico realizado com 54 pacientes com lesões displasicas incluindo a DCP, 2/3 apresentaram sinais e sintomas inflamatórios ou atraso na cicatrizacao.19
As características radiográficas da lesão, sua localização, ausência de sintomatologia e principalmente presença de vitalidade pulpar, foram essenciais para a proposta do diagnostico inicial de displasia cementaria periapical. Sua confirmação se deu a partir do acompanhamento periódico da paciente, com atenção para o processo evolutivo da lesão.
Portanto, para o correto diagnóstico da displasia cementaria periapical torna‑se fundamental a realização dos testes de sensibilidade pulpar e avaliação radiográfica sucinta, incluindo a evolução dos seus estágios de desenvolvimento e os relatos do paciente, no que diz respeito a quaisquer sintomatologia dolorosa.
O tratamento ideal para DCP e a proservação, na maioria dos casos assintomáticos, traduzindo‑se num acompanhamento Clinico e radiográfico anual até sua estabilização. Nos casos sintomáticos esta indicada a realização de biopsia e tratamento de ressecção cirúrgica da lesão.