Introdução
O hóquei em patins originou‑se na Inglaterra, no final do século XIX, com influências do hóquei no gelo.1 Em 1929, Portugal entrou para a Federação Internacional de Patinagem, sendo mundialmente considerado um dos países que mais domina a prática da modalidade.1O objetivo do jogo centra‑se em introduzir a bola na baliza adversária, apenas com a ajuda do stick.2 A prática deste desporto pode constituir um risco para a saúde oral.3‑5
Os praticantes desta modalidade para melhorar o seu desempenho desportivo ingerem regularmente bebidas desportivas (BD) e bebidas energéticas (BE)6, cujo crescente consumo está relacionado com o aparecimento de cárie dentária e de erosão dentária.3,4
Na prática desportiva, as BD e BE têm uma composição e objetivo diferentes. As BD, ou isotónicas, são constituídas por água, açúcar (6‑8%), e eletrólitos.3,7Enquanto que as BE, com maior percentagem de açúcar (11‑12%), contêm substâncias estimulantes, como a cafeína e taurina.3,7,8O intervalo de pH de ambas varia entre 2,6 e 3,2.8 Esta amplitude de valores de pH, inferior ao pH crítico (5,5), é capaz de iniciar o processo de desmineralização do esmalte dentário,9 conduzindo à erosão dentária.8 Adicionalmente ao efeito do pH, a constituição em hidratos de carbono fermentáveis, como a sacarose, potencia o desenvolvimento de cárie dentária.8
Para além do risco no consumo abusivo das BD/BE a que estão expostos os desportistas de hóquei em patins, também o risco de traumatismo orofaciais é elevado devido á velocidade, intensidade física e utilização de um stick ou aléu,10 pelo que a utilização de um protetor bucal (PB) reduz 1,6 a 1,9 vezes esse risco.11Este absorve e dissipa a tensão na área do impacto, no sentido de minimizar ou evitar traumatismos dentários, maxilares, e lacerações nos tecidos moles.5,12
Existem três tipos de PB: o pré‑fabricado, disponível em tamanhos universais; o termo‑moldável ou boil and bite, após imersão em água fervida, é moldado à arcada dentária superior;5 e o fabricado pelo dentista, financeiramente mais dispendioso, confere uma adaptação exata à arcada dentária, com maior durabilidade.5,12Especificamente, este tipo de PB detém o nível mais elevado de proteção, no campo dos traumatismos orofaciais.13,14
Segundo a Federação Internacional de Desportos sobre Patins, o PB não está contemplado no equipamento obrigatório dos atletas.15 Assim, a sua relevância tem sido subestimada, somando‑se o desconhecimento da sua função, o desconforto, a crença da sua ineficácia ou possível comprometimento do desempenho desportivo.16
O conhecimento do estado oral e do impacto de determinados hábitos, especificamente nos atletas de hóquei em patins, permitirá a possível identificação de necessidades para uma abordagem preventiva e para o aumento do conhecimento científico em Portugal.
Esta investigação estabeleceu os seguintes objetivos: 1) determinar a prevalência de cárie, erosão dentária, traumatismos orofaciais e maloclusão; 2) relacionar as alterações orais com o consumo de bebidas desportivas e energéticas e a utilização de protetor bucal; 3) avaliar a perceção dos treinadores quanto às causas de traumatismos orofaciais nos atletas.
Materiais e métodos
Para alcançar os objetivos propostos foi realizado um estudo observacional, analítico e transversal, autorizado pela Comissão de Ética da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa (FMDUL).
Para seleção da amostra foi dirigido um pedido de autorização a seis clubes, via correio eletrónico, dos vinte existentes no distrito de Lisboa. Destes, cinco responderam afirmativamente - Associação Patinagem Atlético Clube de Tojal, Futebol Clube de Alverca, Parede Futebol Clube, Sport Lisboa e Benfica e Sporting Clube de Portugal - constituindo‑se como uma amostra de conveniência. Os critérios de inclusão foram: ser atleta federado de hóquei em patins, ser do escalão sub20‑júnior (17-19 anos de idade) ou sénior (a partir dos 20 anos) ou ser treinador dos clubes que autorizaram a realização do estudo, e assinar o consentimento ou assentimento informado.
Dos 98 atletas dos 5 clubes, 7 recusaram ou não estavam presentes no dia da recolha de dados, tendo sido incluídos 91 atletas; todos os 14 treinadores foram incluídos. A amostra foi de 105 indivíduos.
Aos atletas menores de idade foi pedido o assentimento, após autorização dos encarregados de educação. Aos treinadores e restantes atletas foi pedido o consentimento informado.
O período da investigação decorreu entre fevereiro e maio de 2019. A recolha de dados decorreu nos clubes, paralelamente às sessões de treino de cada equipa, com uma duração média de 10 minutos por indivíduo, em salas com luz artificial determinadas pelos dirigentes.
A recolha de dados, dirigida aos atletas, foi efetuada através de questionário e observação oral; e aos treinadores, através de questionário.
O questionário dos atletas era constituído por vinte questões, recolhendo dados sociodemográficos, consumo de BD/BE, ocorrência de traumatismos orofaciais durante a prática desportiva e meios de prevenção. O questionário dos treinadores continha sete questões, com variáveis relativas à ocorrência de traumatismos orofaciais, na prática desportiva dos atletas, e meios de prevenção. Ambos os questionários foram elaborados pelos autores, com base na sequência lógica de dois questionários existentes.17 Os questionários foram validados por três peritos, e submetidos a um pré‑teste, numa amostra de cinco indivíduos (atletas e treinadores), sem necessidade de alterações.
A observação oral foi efetuada por um único observador e registador. A calibragem intra‑observador foi efetuada a 7% da população do estudo, com reavaliações em cada 10 observações.
A medida de concordância utilizada foi o coeficiente Cohen Kappa,18 tendo‑se obtido o valor de 0,989 (p<0,001).
Na observação oral, foram realizados o índice de Dentes Cariados, Perdidos e Obturados (CPO‑D);19 o índice Basic Erosive Wear Examination (BEWE),20 a avaliação da classificação de Angle,21 e da experiência de traumatismos orofaciais,22 dos quais traumatismos dentários - fratura dentária (até 1/3 da porção coronal, até 2/3 da porção coronal, mais de 2/3 da porção coronal), luxação, intrusão, extrusão e avulsão - fratura dos maxilares e lacerações nos tecidos moles - mucosa labial, mucosa jugal e língua. Para a observação oral, foram utilizados um espelho bucal e uma sonda exploradora, cedidos pela FMDUL.
Para garantir o anonimato, a cada questionário e folha de observação oral foi atribuído um número do estudo. A esta numeração fez‑se corresponder o respetivo clube, num documento no Microsoft Excel©, posteriormente destruído pelos investigadores.
A análise estatística dos dados foi efetuada com recurso ao software IBM SPSS Statistics® versão 25. Para a análise inferencial, após verificada a não normalidade das variáveis com o teste de Kolmogorov‑Smirnov, optou‑se pela utilização de testes não‑paramétricos.
Os testes de Mann Whitney e Kruskal Wallis foram utilizados para analisar diferenças no índice CPO‑D com as variáveis de consumo de BD/BE; e na experiência de traumatismos orofaciais e maloclusão com as variáveis de frequência de prática desportiva e utilização de PB. A Correlação de Spearman foi utilizada para analisar a presença de erosão com as variáveis de consumo de BD/BE, com nível de significância de 5%.
Resultados
Nos 91 atletas do estudo, 40,7% (n=37) eram do escalão sub20‑júnior e 59,3% (n=54) sénior, sendo a média de idade de 23,4 (±6,1) anos [17;38] e a dos treinadores de 40,8 (±8,7) anos [27;52]. A maioria dos atletas (58,3%) tinha 4 ou mais treinos semanais, em que 44,0% treinava mais de 6 horas por semana.
Na observação oral dos atletas, o CPO‑D foi de 3,2 (±3,0) [0;14], tendo sido a média de dentes obturados (2,48 ±2,57) a mais elevada. Ambos revelaram um aumento significativo com a idade (p=0,001 e p=0,002, respetivamente) (Tabela 1).
*Estatisticamente significativo; (dp) desvio padrao; †Teste de Mann‑Whitney
A erosão dentária esteve presente em 13,2% (n=12) dos atletas, verificando‑se o BEWE de 2,5 (±1,4), mais elevado no quarto e sexto sextante (0,8 ±0,4).
Dos atletas observados, 74,7% (n=68) consumia BD/BE, sendo que 60,3% (n=41) ingeria BD, 17,6% (n=12) BE e 22,1% (n=15) ambas. Estas bebidas eram consumidas em todos os treinos por 33,8% dos atletas (n=23) e em todas as competições por 44,1% (n=30), atendendo que a média do tempo de consumo foi de 4,1 (±3,2) anos [0,3;15,0].
Considerando a história de cárie da amostra, o elevado tempo de consumo das referidas bebidas correspondeu a um aumento do CPO‑D (p<0,001), número de dentes cariados (p=0,028) e obturados (p=0,004) (Tabela 1). Na vertente da erosão dentária, a sua presença esteve positivamente correlacionada com o consumo de BD/BE (ρ=0,227; p=0,031), o consumo em todas as competições (ρ=0,366; p=0,002) e o tempo de consumo (ρ=0,514; p<0,001) (Tabela 2).
*Estatisticamente significativo; Correlacao de Spearman
No contexto da traumatologia orofacial, 67,0% (n=61) sofreu pelo menos um traumatismo durante a prática desportiva, tendo sido mais frequente a laceração nos tecidos moles (Tabela 3). Dos 26 dentes fraturados, 80,8% (n=21) eram incisivos superiores. A nível de extensão da fratura, metade dos dentes (n=13) apresentou fratura até dois terços da porção coronal.
Dos 23 dentes afetados por luxação, 47,8% (n=11) eram incisivos superiores.
Apesar da maioria dos atletas (93,4%; n=85) ter reconhecido o PB como um meio de prevenção, apenas 22,0% (n=20) utilizava - destes, 75,0% (n=15) utilizava um fabricado pelo dentista e 20,0% (n=4) termo‑moldável.
A não utilização de PB foi justificada pela dificuldade na respiração e/ou na fala (59,2%; n=42), 16,9% (n=12) consideraram desnecessário e 9,9% (n=7) pelo elevado custo financeiro.
O maior número de traumatismos orofaciais correspondeu aos atletas que não utilizavam PB (p=0,240), bem como àqueles com maior número de treinos semanais (p=0,014) (Tabela 4).
†††
Nos atletas do estudo verificou‑se um overjet médio de 3,0 mm (±2,5) [‑4;15], em que 19,8% (n=18) apresentou maloclusão, dos quais 5,5% (n=5) com classe II (divisão 1). Esta classe de maloclusão (p=0,731) e a dimensão de overjet > 3,0 mm (p=0,797), não demonstraram significância com a ocorrência de traumatismos orofaciais.
Dos 14 treinadores inquiridos, 64,3% (n=9) presenciaram episódios de traumatismos orofaciais em atletas, sendo que 66,7% (n=6) afirmaram que a prática desportiva dos mesmos foi prejudicada.
Considerando‑se as causas de traumatologia orofacial, todos indicaram o contacto com a bola como a mais frequente, mas também as colisões (28,6%; n=4) e a agressão, propositada ou não, de outros atletas (21,4%; n=3). A relevância da utilização de PB foi reconhecida pela maioria dos treinadores (64,3%; n=9).
Discussão
Atualmente, as BD são preferencialmente eleitas pelos desportistas,6 em detrimento das BE, tal como foi observado nesta amostra. Essa preferência foi transversal, tanto a nível individual, como nos clubes desportivos, em que o hábito estava enraizado na prática desportiva, independentemente da existência de patrocínio de marcas.
A tendência de consumo de BD/BE, amplamente disseminada entre atletas para otimizar o rendimento desportivo,6 pode elevar o risco de alterações dentárias.3,4,8Nesta amostra, o elevado tempo de consumo de BD/BE foi acompanhado pelo aumento da média do número de dentes cariados e obturados, sendo que tal associação já tinha sido identificada.3,8
Segundo a classificação do índice BEWE, o nível de risco encontrado foi baixo, considerando‑se que em atletas profissionais, de diversos desportos, cerca de metade (48,7%) apresentou erosão dentária, revelando uma média de BEWE≥7.23
Os resultados obtidos foram igualmente inferiores quando comparados com uma prevalência de erosão dentária de 36,5%, em atletas de futebol e lacrosse, tendo sido o primeiro molar inferior o dente mais afetado,9 semelhante ao presente estudo, onde o quarto e sexto sextante exibiram os valores de BEWE mais elevados.
Em conformidade com alguns estudos,4,8 os resultados obtidos revelaram uma relação significativa entre a presença de erosão dentária e o consumo das designadas bebidas, não estando em concordância com outros estudos.9,24
A prevalência de traumatismos orofaciais encontrada foi consideravelmente superior à de uma revisão sistemática e meta‑análise, onde 22% de atletas de hóquei em campo apresentaram pelo menos um traumatismo dentofacial, durante a carreira.25
Clinicamente, existem situações capazes de elevar o risco de traumatismos dento‑alveolares, nomeadamente, a presença de maloclusão classe II (divisão 1) eleva cinco vezes essa predisposição.26Porém, um estudo não encontrou relação significativa,27 tal como foi observado nesta amostra. Também um overjet > 3,0 mm pode elevar essa suscetibilidade, sem significância;28 tendo‑se observado o mesmo neste estudo.
Contrariamente ao verificado, uma revisão sistemática encontrou uma elevada proporção (84,5%) de atletas de hóquei que utilizavam regularmente o PB.25Quanto ao tipo de PB, praticantes de hóquei em campo (70,0%) revelaram maior utilização de PB termo‑moldável,29 contrariamente à maioria da amostra em estudo que preferiu o fabricado pelo dentista.
Os atletas que utilizavam PB, e que tinham experiência de traumatismo orofacial, mencionaram que o início da utilização de PB sucedeu‑se após a ocorrência do traumatismo. Este aspeto revelou‑se comum a outro estudo, onde a experiência de traumatismo orofacial foi capaz de elevar duas vezes mais a probabilidade de o atleta utilizar regularmente o PB.25 Habitualmente, o principal obstáculo para a não utilização culmina na dificuldade na respiração,30tendo sido nesta amostra também referida a dificuldade na fala.
A principal causa de traumatologia orofacial foi o contacto entre atletas, em atletas profissionais de futebol.27 Contudo, a totalidade dos presentes treinadores referiu o contacto com a bola, e apenas 28,6% indicou o contacto entre atletas.
Este estudo apresenta algumas limitações: o abrangimento de apenas cinco clubes desportivos pode ter comprometido a representatividade dos resultados, pelas diferenças no uso de BD/BE e no estilo de vida entre atletas; deveriam ser abordados outros parâmetros para o estudo do impacto da ingestão de BD/BE na cárie e erosão dentária, como as propriedades das bebidas, quantidade e método de ingestão, constituição e características salivares, presença de desordem gástrica e alimentar, dieta habitual, determinados fármacos, estilos de vida e fatores ambientais;9 verificou‑se também dificuldade na comparação dos resultados encontrados com os de outros estudos, pelo recurso a diferentes índices, critérios de estudo e diagnóstico das superfícies dentárias observadas.
Conclusões
Nesta investigação, verificou‑se que os atletas com elevada presença de cáries consumiam BD/BE há mais tempo. A presença de erosão dentária também se relacionou com o consumo de BD/BE, em que os atletas que a apresentaram consumiam as referidas bebidas.
A prevalência de traumatologia orofacial durante a prática desportiva foi elevada, tendo‑se associado à não utilização de PB, ainda que sem significância, tal como a maloclusão.
Pela análise dos resultados, torna‑se relevante a necessidade de uma abordagem preventiva, centrada no consumo de BD/BE e na traumatologia orofacial. No sentido de expandir e aprofundar o tema, este estudo possibilitou a recolha de dados para a realização de estudos longitudinais.