Introdução
Na consulta de ortodontia os exames auxiliares de diagnóstico, como a ortopantomografia e a telerradiografia são indispensáveis para o correto diagnóstico e determinação do plano de tratamento. A ortopantomografia fornece informações acerca das estruturas ósseas faciais (como a maxila e a mandíbula), dos dentes e do seu suporte ósseo, da articulação temporomandibular e dos seios maxilares.1‑3
Este exame radiográfico é comummente utilizado na clínica com o intuito de diagnosticar a presença de quistos, dentes supranumerários, agenesias e dentes inclusos.2,3Por outro lado, a telerradiografia através da análise cefalométrica permite avaliar a relação esquelética vertical e horizontal dos principais componentes da face, como a base do crânio, maxila, mandíbula e processos alveolares, bem como avaliar o padrão de crescimento.3,4O ângulo goníaco, sendo um dos parâmetros avaliados na análise cefalométrica, permite determinar o padrão de crescimento mandibular avaliando a rotação mandibular: doentes que apresentam um ângulo elevado geralmente apresentam uma rotação para trás e para baixo da mandibula, e contrariamente, doentes que apresentam um ângulo menor, geralmente apresentam uma rotação para a frente e para cima.2,5‑7
A avaliação da rotação mandibular pode ser útil na determinação do plano de tratamento, uma vez que pode influenciar o padrão de extrações em doentes com classe II dentária e na decisão de opção cirúrgica em doentes com classe III esquelética. Por outro lado, o ângulo goníaco é considerado um importante indicador na avaliação da assimetria esquelética facial.6,7
A medição do ângulo goníaco na telerradiografia pode não ser precisa, uma vez que existe sobreposição dos ângulos goníacos direito e esquerdo. A avaliação deste ângulo na ortopantomografia permite superar esta limitação, pois estas estruturas
ósseas não se encontram sobrepostas e podem ser visualizadas individualmente, permitindo a medição do ângulo goníaco direito e esquerdo.2,6A individualização da medição do ângulo pode ser particularmente importante no diagnóstico das assimetrias mandibulares.8 No entanto, este método de diagnóstico também apresenta algumas limitações, uma vez que depende do posicionamento da cabeça, da inclinação do corpo mandibular e da incidência do feixe de radiação.4
O objetivo do presente estudo é averiguar a concordância entre as medições do ângulo goníaco na ortopantomografia e na telerradiografia, considerando os diversos padrões esqueléticos (classe I, II e III).
Material e métodos
Este estudo retrospetivo decorreu no Instituto de Ortodontia da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, no qual foram analisados os exames complementares de diagnóstico iniciais (ortopantomografia e telerradiografia de perfil) de 420 doentes.
A seleção da amostra de conveniência teve em conta os seguintes critérios de inclusão: indivíduos com idade superior a 18 anos que realizaram a ortopantomografia e a telerradiografia, na mesma máquina, e na posição natural da cabeça; radiografias com alta qualidade e nitidez.
Os critérios de exclusão aplicados foram os seguintes: indivíduos com história prévia de trauma ou de cirurgias na região da cabeça e pescoço; indivíduos com perda de peças dentárias; indivíduos portadores de síndromes craniofaciais; indivíduos com assimetria facial.
Após aplicação dos critérios supracitados, 345 doentes foram excluídos: 157 com idade inferior a 18 anos, 94 portadores de síndromes craniofaciais, 35 com exames radiográficos de diferentes tomografos, 23 não estavam orientados na posição natural da cabeça, 24 apresentavam ausência de peças dentárias,8 apresentavam assimetrias faciais e 4 tinham registos incompletos. Os restantes 75 doentes foram aleatoriamente selecionados considerando o tipo de classe esquelética (I, II e III), por forma a obter subgrupos com o mesmo número de indivíduos. A amostra final foi constituída por 60 doentes (38 do sexo feminino, 22 do sexo masculino), 20 por subgrupo, com idades compreendidas entre os 18 e os 55 anos.
Os sujeitos foram classificados esqueleticamente pela avaliação das normas cefalométricas, particularmente do ângulo ANB. Doentes com um ângulo ANB entre 0º a 4º foram diagnosticados com classe I esquelética, para ângulos ANB superiores a 4º atribuiu‑se a classificação de classe II esquelética e, se ANB inferior a 0º, atribuiu‑se uma classe III esquelética.
Na telerradiografia, o ângulo goníaco foi medido na intersecção do plano do ramo ascendente e do plano mandibular.
Na ortopantomografia, a medição foi feita na intersecção da tangente ao bordo inferior da mandíbula e a tangente ao bordo distal do ramo ascendente e do côndilo em ambos os lados (Figuras 1 e 2). A medição foi feita com recurso a um transferidor, e foram feitas três medições para cada ângulo goníaco pelo mesmo operador, tendo sido considerado o valor médio.
O investigador foi calibrado antes deste estudo com 15 ortopantomografias e telerradiografias. A calibração foi concluída quando o investigador obteve a mesma mensuração do ângulo goníaco comparativamente com um médico dentista especialista em Ortodontia.
Os dados obtidos foram estatisticamente analisados na plataforma estatística IBM SPSS v.24 tendo‑se adotado como nível de significância o valor 0,05. Utilizou‑se o teste ANOVA após se ter verificado o pressuposto da normalidade com o teste de Shapiro‑Wilk. Realizaram‑se testes post‑hoc (Tukey).
Resultados
Neste estudo foram incluídos 60 doentes com uma média de idades de 24 ± 7 anos. Na amostra selecionada, 20 indivíduos apresentavam classe I esquelética (4 do sexo masculino e 16 do sexo feminino) com uma média de idades de 24 ± 9 anos.
Os 20 indivíduos que constituíram o subgrupo da classe II esquelética (7 do sexo masculino e 13 do feminino) apresentavam uma média de idades de 24 ± 6 anos. A classe III esquelética foi composta por 20 indivíduos (11 do sexo masculino e 9 do sexo feminino) com uma média de idades de 23 ± 8 anos.
A média do ângulo goníaco foi de 127,30 ± 8,5 e 128,28 ± 7,8 graus nas panorâmicas e telerradiografias, respetivamente. A Tabela 1 representa a média e o desvio‑padrão dos valores obtidos distribuídos por classes esqueléticas. O coeficiente de correlação intra‑classe entre os exames de diagnóstico foi de 0,904 (IC95% [0,841, 0,943]), verificando‑se uma forte concordância entre os ângulos goníacos obtidos através da ortopantomografia e da telerradiografia.
Na comparação da mensuração do ângulo goníaco na ortopantomografia e na telerradiografia verificou‑se que ambos os exames radiológicos eram concordantes na medição do ângulo goníaco, uma vez que o coeficiente de correlação intra‑classe
para a Classe I foi de 0,809 (IC95% [0,525, 0,924]), o que indica uma forte concordância entre os valores das duas modalidades.
Esta tendência verificou‑se também na classe II e III, uma vez que o coeficiente de correlação intra‑classe para a Classe II foi de 0,916 (IC95% [0,766, 0,968]) e para a classe III foi de 0,931 (IC95% [0,827, 0,973]) o que revela uma muito forte concordância entre os valores. A Tabela 2 descreve estes resultados.
Por fim, observaram‑se diferenças entre as classes esqueléticas, com valores estatisticamente significativos (p=0,006).
Em particular observaram‑se diferenças entre a classe I e III (p=0,007), com uma diferença de 7,55º e 4,48º entre os valores médios da ortopantomografia e telerradiografia, respetivamente.
As diferenças nos valores médios entre a classe II e III foi de 9,94º para a ortopantomografia e de 7,4º para a telerradiografia (p=0,036). Entre a classe I e II não se observaram diferenças estatisticamente significativas (p=0,800).
Discussão
O presente estudo comparou a medição dos ângulos goníacos na ortopantomografia e na telerradiografia. Na prática clínica, a medição do ângulo goníaco é efetuada usualmente na telerradiografia, mas a sobreposição de estruturas anatómicas pode dificultar a mensuração do mesmo. A ortopantomografia permite superar esta limitação uma vez que não existe sobreposição do ângulo goníaco direito e esquerdo.
Neste estudo, verificou‑se que a medição do ângulo goníaco na ortopantomografia tem uma forte correlação com o obtido na telerradiografia, e que não existem diferenças significativas entre a medição do ângulo direito ou esquerdo da ortopantomografia com o ângulo medido na telerradiografia.
Apenas a comparação do ângulo esquerdo da ortopantomografia com a telerradiografia de perfil em pacientes classe I apresentou uma correlação moderada, o que pode ser explicado pelo princípio da distorção da imagem. Na tomada radiográfica da telerradiografia, o feixe de raios X apresenta‑se sob a forma de um cone, na qual a imagem do objeto radiografado no filme é maior do que o próprio objeto, o que produz uma deformação por aumento, sendo uma possível fonte de erros nas mensurações cefalométricas. Esta deformação por aumento é influenciada pelas distâncias foco‑objeto e objeto‑filme.
Assim, como o lado direito do doente é o mais afastado da fonte de emissão de raios x e, o mais próximo da película, a imagem do lado direito sofre menos deformação que o esquerdo. Esta tendência também se verifica nas amostras das outras classes esqueléticas analisadas.
Estes resultados estão em concordância com os resultados descritos na literatura,5-9
que reportam não existirem diferenças estatisticamente significativas na mensuração do ângulo em ambos os exames radiográficos. Estudos descritos na literatura avaliaram a medição do ângulo na ortopantomografia e na telerradiografia numa população que apresentava uma má oclusão de classe I e, concluíram, que não foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre os ângulos goníacos.6,9
No entanto, a qualidade da ortopantomografia deve estar assegurada, uma vez que a posição da cabeça pode influenciar o ângulo goníaco, uma vez que a rotação da cabeça altera a inclinação da mandibula.4
Relativamente às classes esqueléticas, verificaram‑se diferenças nos valores do ângulo goníaco entre classes. O subgrupo de classe III apresentou um valor médio superior aos restantes (ortopantomografia: classe I‑125,57º, classe II‑123,18º, classe III‑133,12º; telerradiografia‑classe I‑127,82º, classe II‑124,80º, classe III‑132,20º), o que pode ser explicado por a amostra de classe III deste estudo apresentar uma rotação posterior da mandíbula associado a um perfil hiperdivergente.
Um estudo de 2012 referiu que a medição do ângulo goníaco não é influenciada pela classe esquelética, podendo esta mensuração ser realizada em qualquer um dos exames radiológicos. Apesar deste estudo ir ao encontro dos nossos resultados, não estabelece a comparação entre a medição do ângulo goníaco e as classes esqueléticas como o presente estudo.2
O presente estudo, apresenta algumas limitações que devem ser consideradas na interpretação dos resultados. Cada subgrupo é constituído por 20 indivíduos, uma amostra superior poderia permitir uma comparação que evitasse a possibilidade de achados aleatórios entre os subgrupos das classes bem como a validação, nas normas cefalométricas, da individualização do valor do ângulo goníaco nas diferentes classes esqueléticas. Por outro lado, a diversidade da nossa amostra não permitiu realizar a comparação do sexo com o ângulo goníaco. Desta forma, estudos futuros devem comtemplar amostras com homogeneidade relativamente ao sexo por forma a retirar conclusões neste parâmetro. A selecção da amostra por conveniência pode limitar a generalização dos resultados. Contudo, o nosso estudo selecionou uma amostra com grupos pareados, na qual os doentes apresentavam fatores sociodemográficos comuns. Este fator permitiu diminuir o viés da nossa metodologia. Por fim, é importante salientar que apesar do aparelho radiográfico ter sido o mesmo na tomada radiográfica, o operador foi diferente.
Este fato, pode afectar o posicionamento do doente no cefalóstato, eventualmente criando um viés na medição do ângulo goníaco.
Tendo em consideração os resultados obtidos no presente estudo, é possível aferir que a ortopantomografia pode ser considerada uma alternativa viável para a medição do ângulo goníaco, especialmente em casos em que o contorno da mandíbula na telerradiografia não tem definição devido à sobreposição de estruturas. A avaliação dos ângulos goníacos na ortopantomografia pode também estar indicada em doentes que apresentam uma assimetria mandibular, uma vez que os ângulos podem ser visualizados separadamente, permitindo estabelecer um plano de tratamento individualizado.
Conclusões
A ortopantomografia e telerradiografia são métodos radiológicos viáveis para a medição do ângulo goníaco. Independentemente da classe esquelética, o ângulo goníaco pode ser medido em ambos os exames radiográficos. O valor do ângulo goníaco pode variar consoante a classe esquelética do doente.